A publicidade das interceptações telefônicas determinada pelo juiz Sérgio Moro, ao final da 24ª fase da operação Lava Jato, trouxe à tona a discussão sobre o desvio de finalidade na nomeação do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva como Ministro de Estado. Tal fato desencadeou uma série de ações judiciais, incluindo ações populares, mandados de segurança coletivo e arguição de descumprimento de preceito fundamental.
A controvérsia central diz respeito à observância dos elementos do ato administrativo, especificamente acerca da finalidade perseguida pela Presidente da República. No entanto, um aspecto técnico processual passou despercebido da comunidade jurídica, o qual consta da decisão monocrática do Ministro Gilmar Mendes, proferida em sede liminar nos autos do MS 34.070-MC/DF, impetrado pelo Partido Popular Socialista (PPS) visando a anulação do ato de nomeação do ex-presidente Lula, figurando como impetrada a Presidente da República.
Trata-se da determinação, constante da parte final da mencionada decisão, para que o ex-presidente Lula seja incluído no polo passivo do mandado de segurança coletivo, na qualidade de litisconsorte passivo necessário, providência não requerida pelo impetrante. Vale dizer, o Ministro determinou de ofício a inclusão de um terceiro em processo pendente, o que é característico da intervenção iussu iudicis.
A questão que se coloca, portanto, refere-se ao cabimento da referida figura no ordenamento jurídico processual vigente, sendo necessário averiguar as consequências atribuídas à omissão na inclusão de litisconsorte passivo necessário, bem como à legitimidade do magistrado para suprir a referida falha.
A intervenção iussu iudicis consiste no ingresso de terceiro em processo pendente por ordem do Estado-juiz. É dizer, o terceiro é coativamente integrado à lide por decisão do magistrado. “Na Itália, há previsão expressa (art. l07), que consagra a possibilidade de o juiz determinar o chamamento do terceiro se entender conveniente para o julgamento da causa”[1].
O direito brasileiro conviveu com a figura da intervenção iussu iudicis até o advento do CPC de 1973. É que o art. 91 do CPC de 1939 facultava ao juiz trazer ao processo terceiros que tivessem algum interesse jurídico na causa[2]. “Tratava-se da intervenção ‘iussu ludicis’, instituto que permite a atuação oficiosa de chamar terceiro ao processo desde que se acredite na conveniência dessa medida”[3].
O CPC 1973, todavia, não repetiu a experiência do Estatuto pretérito, optando por privilegiar o princípio da inércia ao prescrever que o juiz, caso verifique a ausência de litisconsorte necessário para o regular trâmite processual, ordene ao autor que adote providências a fim de que sejam todos os litisconsortes citados para integrar a relação jurídica processual (art. 47, parágrafo único).
Na mesma linha, o novel diploma processual civil estabeleceu no parágrafo único do art. 115 que “nos casos de litisconsórcio passivo necessário, o juiz determinará ao autor que requeira a citação de todos que devam ser litisconsortes, dentro do prazo que assinar, sob pena de extinção do processo”.
Comentando o art. 47, parágrafo único, do CPC de 1973, Humberto Theodoro Júnior, em lição que permanece atual, assinala:
A intervenção de terceiros é sempre voluntária, sendo injurídico pensar que a lei possa obrigar o estranho a ingressar no processo. O que ocorre, muitas vezes, é a provocação de uma das partes do processo pendente para que o terceiro venha a integrar a relação processual. Mas “a possibilidade de o juiz obrigar, por ato de ofício, o terceiro a ingressar em juízo deve hoje ser contestada. O juiz não pode, inquisitorialmente, trazer o terceiro a juízo”. O que ele faz, em casos como o do parágrafo único do art. 47, é determinar a uma das partes que, se quiser a decisão de mérito, cite terceiros (litisconsortes necessários), pois do contrário o processo será trancado sem ela. A coação legal exerce-se sobre a parte e não sobre o terceiro. Esse continua livre de intervir ou não. Não se lhe comina pena alguma. Suporta apenas o ônus de sujeitar-se aos efeitos da sentença, como decorrência da citação.[4].
Fundado nesta premissa, o Procurador-Geral da República, Rodrigo Janot, em parecer exarado em 07 de abril de 2016 nos autos do MS 34.070-MC/DF, ressaltou que “não poderia a relatoria desta ação impor a inclusão do Sr. LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA como litisconsorte passivo, mas apenas fazer intimar os impetrantes para que o requeressem”[5], sob pena de extinção do processo sem resolução de mérito. Não obstante o equívoco, arrematou o PGR
Conquanto o relator tenha determinado a inclusão de LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA na autuação e a citação deste como litisconsorte passivo necessário, este não requereu exclusão da relação processual. Pelo contrário, apresentou manifestações de defesa do ato impetrado (o que corresponde a encampação) e exerceu poderes processuais inerentes às partes, como suscitar prevenção na primeira oportunidade de se pronunciar nos autos.
De certo modo, apesar de apontar a determinação como contrária à lei, amoldou-se a ela. Em homenagem ao princípio da instrumentalidade das formas processuais, deve-se considerar o caso como de irregularidade, não de nulidade processual.
De fato, a conclusão do representante do Ministério Público está em consonância com o princípio da primazia do julgamento de mérito, que informa o novo Digesto Processual.
Outrossim, a decisão do magistrado colabora para o debate sobre a possibilidade de intervenção iussu iudicis atípica. Nesse sentido, leciona Fredie Didier Jr.:
Parece possível, no direito brasileiro, a partir da concretização dos princípios da adequação, da duração razoável do processo e da eficiência, a intervenção iussu iudicis atípica, sempre que o órgão jurisdicional, por decisão fundamentada, entender conveniente a participação do terceiro no processo[6].
Na prática forense, algumas decisões têm rompido com o dogma da inércia e adotado a intervenção iussu iudicis. Foi o que se verificou em decisões monocráticas proferidas pelo Ministro Celso de Mello, nos autos dos mandados de segurança 24.831, 24.845, 24.846, 24.848 e 24.849, julgados em conjunto por força de conexão, oportunidade em que o referido magistrado determinou, ad cautelam, a citação de líderes dos partidos de governo para participar do processo, embora sequer fossem litisconsortes necessários.
Enfim, a rigor, a intervenção iussu iudicis não foi contemplada pela legislação processual; na prática, contudo, tem aumentado o número de decisões judiciais que determinam a inclusão coativa de terceiro em processo pendente, medida que está em sintonia com a efetividade almejada pela nova Codificação. É imprescindível para tanto fundamentação exauriente, apta a justificar a excepcionalidade.
[1] DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil. Vol. 01: Introdução ao Direito Processual Civil e Processo de Conhecimento. 16ª ed. Salvador: Juspodivm, 2013, p. 376.
[2] “Art. 91. O juiz, quando necessário, ordenará a citação de terceiros, para integrarem a contestação. Se a parte interessada não promover a citação no prazo marcado, o juiz absolverá o réu da instância.
[3] NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de Direito Processual Civil. 2ª ed. São Paulo: Método, 2011, p. 196.
[4] THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil. Vol. 01: Teoria Geral do Direito Processual Civil e Processo de Conhecimento. 55ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 541/542.
[5] Disponível em <http://s.conjur.com.br/dl/parecer-janot-lula.pdf>. Acesso em 08.04.2016.
[6] DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil. Vol. 01: Introdução ao Direito Processual Civil, Parte Geral e Processo de Conhecimento. 17ª ed. Salvador: Juspodivm, 2015, p. 528