A constitucionalidade das audiências de custódia e a sua efetiva aplicação em defesa ao contraditório e ampla defesa

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Apresenta-se os aspectos mais relevantes que fundamentam a realização das audiência de custódia, abordando-se de maneira específica no presente trabalho a proteção aos direitos humanos da pessoa presa em flagrante e apresentada ao juiz em tempo hábil.

INTRODUÇÃO

Em fevereiro de 2015, o CNJ, em parceria com o Ministério da Justiça e o TJSP, apresentou e fez o lançamento do projeto Audiência de Custódia, que consiste na garantia da rápida apresentação de quem foi preso a um Juiz nos casos de prisões em flagrante. A concepção é de que o acusado seja apresentado e entrevistado pelo Juiz em uma audiência na qual serão ouvidos Ministério Público, Defensoria Pública ou advogado do preso.

Os intensos debates sobre as audiências de custódia vêm repercutindo de forma considerável no direito processual penal brasileiro. A conceituação e a validade são extraídas a partir de tratados internacionais ratificados pelo Brasil: a Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH, também conhecida como Pacto de São José da Costa Rica) e o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (PIDCP), todos já promulgados no ordenamento jurídico nacional, por meio dos Decretos nº 678/1992 e nº 592/1992, respectivamente.

No decorrer da audiência, o Juiz fará uma análise da prisão sob o aspecto da legalidade, da necessidade e da adequação, seja da continuidade da prisão ou de eventual concessão de liberdade, definindo ou não a aplicação de outras medidas cautelares. O juiz poderá avaliar, também, eventuais ocorrências de tortura ou de maus-tratos, entre outras irregularidades.

Dentre as várias finalidades das audiências de custódia, a mais importante, nas palavras de Renato Brasileiro de Lima, é “não apenas à averiguação da legalidade da prisão em flagrante para fins de possível relaxamento, coibindo, assim, eventuais excessos tão comuns no Brasil como torturas e/ou maus tratos, mas também o de conferir ao juiz uma ferramenta mais eficaz para aferir a necessidade da decretação da prisão preventiva (ou temporária) ou a imposição isolada ou cumulativa das medidas cautelares diversas da prisão (CPP, art. 310, I, II e III), sem prejuízo de possível substituição da prisão preventiva pela domiciliar, se acaso presentes os pressupostos do art. 318 do CPP (LIMA, 2015, p.927).

O atual projeto de implantação das audiências prevê, também, a estruturação de centrais de alternativas penais, centrais de monitoramento eletrônico, centrais de serviços e assistência social e câmaras de mediação penal, as quais serão responsáveis por representar ao Juiz opções ao encarceramento provisório.

Além de todo o exposto acima, há de se destacar ainda a desoneração do erário com a criação de critérios mais rigorosos para o encarceramento provisório, que deverão ser analisados por ocasião da audiência de custódia.

Desta forma, é assegurado de modo concreto ao infrator que encontra-se com sua liberdade cerceada em razão de prisão em flagrante o direito ao contraditório e a ampla defesa, uma vez que, ainda nos estágios iniciais da persecução penal, já será apresentado ao Juiz de Direito devidamente assistido por seu advogado ou defensor público, sendo este o momento em que o Magistrado irá analisar de que forma foi efetuada a prisão e se o imputado preenche os requisitos para ser solto ou se deverá permanecerá encarcerado, evitando-se, assim, que o Réu fique encarcerado desnecessariamente até que o Poder Judiciário se pronuncie acerca da sua situação.

Contudo, percebe-se, também, a necessidade de uma efetiva reflexão sobre a presença do Delegado de Polícia nesse processo, uma vez que, compondo a polícia judiciária, poderia o mesmo ser a autoridade ao qual o infrator deve ser apresentado e, portanto, substituir a presença do Magistrado, sobretudo nos mais longínquos quinhões do país, onde existe um número mínimo ou insignificante de Juízes?

Em outras palavras, poderia o Delegado de Polícia ser visto perante as normas internacionais sobre direitos humanos no contexto das audiências de custódia como a autoridade que deve apreciar a legalidade e a necessidade da prisão, tendo em vista que ainda há um grande receio contra a figura da autoridade policial, marcada pelos inúmeros abusos cometidos durante o regime ditatorial instalado no Brasil?

Desta forma, apresentados os aspectos mais relevantes que fundamentam a necessidade de enfretamento do tema relativo às audiência de custódia, abordar-se-á de maneira específica no presente trabalho a proteção aos direitos humanos da pessoa presa em flagrante decorrente do fato desta ser conduzida pela autoridade policial ao crivo do Poder Judiciário no prazo de 24 horas após a prisão, bem como os desafios para a efetiva implantação e realização dessas audiências no território nacional.

Propõe-se, ainda, a realizar um paralelo com a atual situação brasileira no que diz respeito às denúncias de violência policial, estabelecendo assim uma análise crítica ao modus operandi violento que foi institucionalizado pelas forças de segurança pública no Brasil, em especial no que diz respeito à população vulnerável e afrodescendente.

JUSTIFICATIVA

É notório a precária situação da população carcerária no Brasil e, consequentemente, os problemas que isso acarreta à sociedade brasileira, seja do ponto vista cultural e/ou econômico, seja do ponto de vista da ressocialização daqueles que cometeram crimes.

O Brasil é um dos países que mais prende no mundo. A sua população carcerária só aumenta a cada dia, sendo certo que a maioria desses presos não deveriam estar no sistema prisional se os mecanismos previstos no Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (Art. 9º, item 3), quanto na Convenção Americana sobre os Direitos Humanos (Pacto São José da Costa Rica, Art. 7º, item 5), ratificados pelo Brasil, o primeiro pelo Decreto 592/1992 e o segundo pelo decreto 678/1992, como também o que prevê o Código de Processo Penal brasileiro fossem realmente aplicados no que diz respeito à realização das audiências de custódia.

Essas, pela grande maioria de doutrinadores, são conceituadas como audiências que ocorreriam no prazo de 24 (vinte e quatro) horas após a prisão em flagrante de alguém, perante o Juiz, o membro do Ministério Público e o defensor do preso, com o objetivo de se avaliar a legalidade da prisão ou se o autuado se encontra lesionado.

Embora exista um emaranhado de normas que regulam a aplicação da pena, prevendo mecanismos de benefícios e ajustes das mesmas, de forma que poderiam melhorar o atual cenário do sistema carcerário, é certo que o encarceramento de diversos presos poderiam ser evitados, de forma a “desafogar o sistema” e melhorar o fluxo carcerário, casos as audiências de custódia sejam efetivamente implantadas e realizadas, o que consistiria em uma saída para o problema.

Registre-se que a alegação do não cumprimento das referidas audiências em razão da não existência de previsão na Constituição Federal e nem no CPP não se sustenta, pois tal instituto está previsto nos tratados internacionais já citados, cabendo esclarecer que estes mesmos tratados foram ratificados pelo Brasil por meio dos decretos também mencionados, tendo, portanto, força normativa, e, como tal, devem ser cumpridos por todos, sob pena de responsabilidade internacional.

Em meio a calorosas discussões sobre a constitucionalidade e a possibilidade de realização das audiências de custódia (ou audiências de garantia, como também é defendido por alguns pensadores) entre entidades de classe como as Associações de Delegados do Brasil, Associação dos Juízes Federais do Brasil, entre outras, onde estes rejeitam a possibilidade de aplicação do referido mecanismo, enquanto o mesmo é defendido fortemente pela Defensoria Pública, inclusive, no que tange à aprovação do PLS 544/2011, do Senador Antonio Carlos Valadares .

A título de experiência, no dia 07/02/2015, o Conselho Nacional de Justiça, o Tribunal de Justiça de São Paulo e o Ministério da Justiça implementaram um projeto intitulado como “Projeto Audiência de Custódia”, instituindo a efetiva aplicação das mesmas e um reaparelhamento do judiciário para alcançar os objetivos das audiências.

Todavia, tal iniciativa foi contestado pela ADEPOL/BR( Associação dos Delegados de Polícia do Brasil) que ajuizou a ADI (Ação Direta de Inconstitucionalidade) nº 5.240, com pedido de liminar, contra a “inédita e controvertida” audiência de custódia, sendo que, em 20/08/2015, o plenário do STF julgou improcedente a referida ADI, o que não findou as discussões sobre o tema, embora o próprio Ministro Presidente do STF, Ricardo Lewandowski, promova uma campanha no âmbito do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em defesa das audiências de custódia, as quais já estão sendo realizadas em 12 unidades da federação e, segundo o mesmo, até o final deste ano de 2015, ocorrerão em todo o país, o que “é uma revolução”, afirmou o Ministro Ricardo Lewandowski.

O propósito do referido trabalho é exatamente apontar as audiências de custódia como a via de solução para um grande problema da sociedade brasileira, qual seja, o da superlotação carcerária, que vem se arrastando ao longo dos anos sem soluções plausíveis, como também fazer uma reflexão acerca da sua constitucionalidade, uma vez que já está prevista no ordenamento jurídico brasileiro.

Do mesmo modo, a sua não implementação ou aplicação não pode esbarrar nas dificuldades materiais ou operacionais de se realizar as referidas audiências, afinal, não é fato justificável que alguém permaneça com sua liberdade cerceada injustificadamente, pois, mesmo tendo cometido uma das maiores atrocidades, deverá ser assegurado ao criminoso o direito à ampla defesa e ao contraditório, de forma que a legalidade e manutenção da sua prisão sejam aferidos por aquele que realmente tenha competência para tanto.

Daí advém a necessidade de que sejam realmente realizadas as audiências de custódia, tema deste projeto, de forma que se garanta a previsão contida em Tratados Internacionais ratificados pelo Brasil, os quais gozam de força de lei, garantido àquele que teve a sua prisão em flagrante delito efetuada o direito de ser ouvido e defender-se quanto a esta, ainda que no estágio inicial da persecução penal.

OBJETIVOS

  • GERAL

Esclarecer o real significado do que são as Audiências de Custódia, analisando a sua real efetividade no cotidiano brasileiro, de forma que todo preso possa ter o seu direito à ampla defesa e ao contraditório garantidos, como forma de se preservar os princípios constitucionais previstos na luta contra a injustiça e parcialidade.

  • ESPECÍFICOS

  • Reconhecer a necessidade de se efetivar as audiências de custódia, de forma a garantir o que está previsto em normas reguladoras, confirmando a sua constitucionalidade;
  • Proporcionar à pessoa privada de sua efetiva liberdade, através de esclarecimentos, o direito à ampla defesa e ao contraditório perante um Magistrado ou a quem tiver, por direito, competência para analisar a continuidade ou não de sua prisão.
  • Refletir sobre as dificuldades que a estrutura do Poder Judiciário tem para a realização dessas audiências.
  • Propor formas de efetivação das audiências de custódia nos mais longínquos quinhões desse Brasil, de forma que todos tenham o seu direito resguardado.

REFERENCIAL TEÓRICO

Abordado o conceito da audiência de custódia e como as mesmas foram incorporadas e estão sendo colocadas em prática no ordenamento jurídico brasileiro, especificamente no que tange à análise pelo Judiciário se a prisão em flagrante é legal ou não, e se é passível de aplicação de medidas cautelares, imperioso destacar que esse procedimento se reveste de mecanismos próprios e eficientes, em que não há espaço para a parcialidade e ao afastamento da lei em benefício daquele que está sendo acusado da prática de crime em situação de flagrante, sendo que é neste aspecto onde se encontra a maior importância das audiências de custódia, pois muitos, erroneamente, acham que sempre será realizada em favor do infrator para beneficiá-lo, mas o que se garante é a efetiva aplicação da Lei.

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Quanta à questão da constitucionalidade ou não das audiências de custódia no ordenamento jurídico brasileiro, esta resta superada pelo que impõe, como norma supralegal, o art. 7º, 5, do Pacto de São Jose da Costa Rica ou a Convenção Americana sobre Direitos Humanos:

“Toda pessoa presa, detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada por lei a exercer funções judiciais e tem o direito de ser julgada em prazo razoável ou de ser posta em liberdade, sem prejuízo de que prossiga o processo. Sua liberdade pode ser condicionada a garantias que assegurem o seu comparecimento em juízo.” (Art.7º., 5, Pacto de São Jose da Costa Rica).

Da mesma forma, o art. 9º, 3, do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos de Nova York:

Qualquer pessoa presa ou encarcerada em virtude de infração penal deverá ser conduzida, sem demora, à presença do juiz ou de outra autoridade habilitada por lei a exercer funções judiciais e terá o direito de ser julgada em prazo razoável ou de ser posta em liberdade. A prisão preventiva de pessoas que aguardam julgamento não deverá constituir a regra geral, mas a soltura poderá estar condicionada a garantias que assegurem o comparecimento da pessoa em questão à audiência, a todos os atos do processo e, se necessário for, para a execução da sentença.” (Art. 9º., 3, do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos).

Essas, normas internacionais foram incorporadas no ordenamento jurídico do Brasil desde o ano de 1992. Inclusive, é pertinente informar que tramita no Congresso o Projeto de Lei do Senado nº. 554/2011, dando a seguinte redação ao art. 306 do Código de Processo Penal:

“Art. 306. (…)

§ 1º No prazo máximo de vinte e quatro horas após a prisão em flagrante, o preso será conduzido à presença do juiz para ser ouvido, com vistas às medidas previstas no art. 310 e para que se verifique se estão sendo respeitados seus direitos fundamentais, devendo a autoridade judicial tomar as medidas cabíveis para preservá-los e para apurar eventual violação.

§ 2º Na audiência de custódia de que trata o parágrafo 1º, o Juiz ouvirá o Ministério Público, que poderá, caso entenda necessária, requerer a prisão preventiva ou outra medida cautelar alternativa à prisão, em seguida ouvirá o preso e, após manifestação da defesa técnica, decidirá fundamentadamente, nos termos art. 310.

§ 3º A oitiva a que se refere parágrafo anterior será registrada em autos apartados, não poderá ser utilizada como meio de prova contra o depoente e versará, exclusivamente, sobre a legalidade e necessidade da prisão; a prevenção da ocorrência de tortura ou de maus-tratos; e os direitos assegurados ao preso e ao acusado.

 § 4º A apresentação do preso em juízo deverá ser acompanhada do auto de prisão em flagrante e da nota de culpa que lhe foi entregue, mediante recibo, assinada pela autoridade policial, com o motivo da prisão, o nome do condutor e os nomes das testemunhas.

§ 5º A oitiva do preso em juízo sempre se dará na presença de seu advogado, ou, se não o tiver ou não o indicar, na de Defensor Público, e na do membro do Ministério Público, que poderão inquirir o preso sobre os temas previstos no parágrafo 3º, bem como se manifestar previamente à decisão judicial de que trata o art. 310 deste Código. ”

Evidentemente, fica clara a constitucionalidade da iniciativa do Conselho Nacional de Justiça quanto às audiências de custódia, pois não ataca ou contradiz, em absoluto, o princípio constitucional da reserva legal previsto na Constituição, em razão de não se estar legislando sobre matéria processual, não havendo invasão de reserva constitucional atribuída, com exclusividade, ao Poder Legislativo da União, fonte única de normas processuais. Ao contrário, aqui vislumbra-se um “controle concentrado de convencionalidade”, em que as Portarias e Resoluções dos Tribunais apenas estabelecem os procedimentos de efetivação do direito subjetivo do conduzido de estar na presença de um juiz imediatamente.

Entretanto, analisando legalmente, as audiências de custódia já deveriam acontecer independentemente de ato normativo. Aliás, qualquer juiz do Brasil deveria realizá-las.

Portanto, não obstante essa discussão, a audiência de custódia nos termos do Provimento Conjunto Nº 03/2015 do TJ/SP, CNJ e Ministério da Justiça, é protegida pelos sistemas constitucional e convencional vigentes no Brasil, vez que as normas sobre direitos humanos (descabida aqui a divergência doutrinária acerca dos direitos humanos e fundamentais) possuem aplicabilidade imediata, inclusive reconhecida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos – CIDH –, em Parecer Consultivo nº 07/1986.

Conforme, o Desembargador José Laurindo de Souza Netto ressaltou em seu voto: 

“E uma das principais vantagens da implementação da audiência de custódia no Brasil, importa na missão de reduzir o encarceramento em massa no país, porquanto através dela se promove um encontro do juiz com o preso.”. E asseverou: “Neste sentido, em que pese a Constituição brasileira silencie sobre a obrigatoriedade deste controle, (PIOVESAN, 2012, PÁG. 149), o juiz, que se destaca neste contexto, como representante do poder Judiciário, tem a obrigação de não só conhecer a proteção internacional, mas aplica-lo mediante controle de convencionalidade difuso, não podendo se furtar de realiza-lo.”. (Habeas Corpus Crime nº 1.358.323-2, da 3ª Vara Criminal do Foro Central da Comarca da Região Metropolitana de Curitiba)

Nas palavras de Piovesan:

O pressuposto básico para a existência do controle de constitucionalidade é a hierarquia diferenciada dos instrumentos internacionais de direitos humanos em relação à legalidade ordinária. A isto se soma o argumento de que, quando um Estado ratifica um tratado, todos os órgãos do poder estatal a ele se vinculam, comprometendo-se a cumpri-lo de boa-fé. (PIOVESAN, 2012, pág. 149)

Desta feita, pode-se inferir, que mesmo sob críticas e discussões sobre a legalidade das audiências de custódia previstas nas convenções e tratados internacionais, recepcionadas pela nossa legislação brasileira, é válida e constitucional a sua realização.

Portanto, diante de todos os argumentos já mencionados, constata-se que o Projeto Audiência de Custódia elaborado pelo CNJ não é algo novo ou sem qualquer embasamento jurídico, como alguns autores aduzem. Ele veio, finalmente, dar ordem de cumprimento para o que já há muito tempo já era legalmente previsto no ordenamento jurídico brasileiro, mas nunca foi satisfeito.

Somente uma baixa compreensão da constituição (controle de constitucionalidade) e dos tratados sobre direitos humanos (controle de convencionalidade) dá azo a que se imagine que um Tratado sobre direitos humanos carece de regulamentação por uma lei ou, pior, um mero ato administrativo. Assim, não é questão de inovar, mas de meramente enunciar o que desde sempre lá esteve. (TOSCANO Jr., 2015)

A audiência de custódia não é um procedimento para fins de que se colha provas materiais da ação do infrator. É o espaço democrático em que a arguição oral é garantida. Seu objeto é restrito, ou seja, não há interrogatório, nem produção antecipada de provas. Há uma prisão decorrente do flagrante e necessário será a análise jurisdicional da sua efetiva legalidade. A ação que era praticada exclusivamente pelo Magistrado, sem participação dos agentes processuais (Ministério Público e Defesa), agora tem sua composição totalmente transformada. Com isso, se dá também efetividade ao disposto no art. 282, § 3º, do CPP, no sentido de que o contraditório legitima o ato decisório, uma vez que pode acolher e rejeitar os argumentos, conta com a efetiva participação dos agentes processuais.

Tornou-se a audiência de custódia uma vertente no Brasil. Confrontando dados obtidos na publicação da pesquisa “Excesso de prisão provisória no Brasil: Um estudo empírico sobre a duração da prisão nos crimes de furto, roubo e tráfico” (2015) parte do Projeto Pensando o Direito, coordenado pela Secretaria de Assuntos legislativos do Ministério da Justiça (SAL-MJ), pesquisa realizada analisando a coleta de dados obtidos nos estados da Bahia e de Santa Catarina acerca das prisões provisórias lá existentes, entre os anos de 2008 a 2012, onde se encontrou uma desproporcionalidade entre prisões cautelares e sentenças condenatórias, o que conclui-se que há graves problemas com a qualidade do juízo acerca da necessidade da prisão cautelar. A constatação dessa hipótese está consagrado no padrão argumentativo das decisões judiciais que determinam a prisão e/ou denegam a liberdade, em geral alheias ao exame do problema concreto da ação praticada e dos riscos eventualmente representados pelo comportamento do indiciado ao processo.

Aos juízes basta, muitas vezes, a caracterização dos indícios de autoria e materialidade, que embora condicionem não podem ser tratados como determinantes legais da decisão (SAL, 2015, p. 84). Por isso, caberia ao juiz, numa Audiência de Custódia, conciliar e pesar, na operatividade de um sistema acusatório, os interesses da atividade investigativa e os direitos dos diversos atores que se desenvolvem no processo penal, dando plena vigência ao direito de defesa e ao devido processo, conforme consagrado pelas Convenções de Direitos Humanos das quais o Brasil é signatário.

Destarte, em relação à participação dos atores em tal audiência, como já visto, ela deve ser presidida por um juiz, a autoridade munida de competência para controlar a legalidade da prisão. Assim, não caberia ao Delegado de Polícia, ao contrário do que alguns defendem, em substituir esse papel privativo ao juiz, visto que ao delegado cabe somente a função de lavrar o flagrante, transformando em autos a narrativa dos condutores, e a função de conceder fiança, se for o caso, conforme determina o regime da Constituição e do Código de Processo Penal.

 Assevera Lopes Jr.:

Não cabe à autoridade policial deferir liberdade provisória ou medidas cautelares diferentes do previsto no artigo 319 do Código de Processo Civil. Para isso há reserva de Jurisdição. A polícia judiciária não é órgão do Poder Judiciário (é um paradoxo, mas é uma polícia judiciária não subordinada ao Poder Judiciário), mas do Executivo. Daí que a alegação de que o Delegado de Polícia seria a outra autoridade referida pela Convenção não se sustenta. (LOPES JR., 2015)

Neste aspecto, cumpre destacar que o Delegado de Polícia (infelizmente) só possui chancela legal para tutelar a liberdade do autuado em caso de crimes com pena de até 4 (quatro) anos, quando então poderá conceder liberdade provisória mediante o arbitramento de fiança. Portanto, persiste a sua impossibilidade em assegurar o status libertatis do preso nas demais hipóteses (delitos cuja pena ultrapasse os 4 anos).

Por isso, exsurge nítido que o juiz de direito é a única autoridade pública autorizada pelo direito brasileiro a receber, avaliar e garantir, sem quaisquer restrições legais e de forma imediata, a liberdade do preso, atendendo, desta feita, aos fins colimados pelas normas internacionais de direitos humanos.

Como também, em respeito à jurisdição, devem participar na audiência o Ministério Público e a defesa da parte, que arguirão, cada qual, suas razões pelas quais a constrição cautelar deve ou não ser mantida.

Partindo dessa análise, vislumbra-se que o objetivo principal da Audiência de Custódia é a garantia da oralidade no controle jurisdicional da prisão decorrente do flagrante, de forma que, com a concretização do contraditório com a participação efetiva de acusação e defesa, seja dada legitimidade à decisão do juiz. Dessa forma, não se admite a produção antecipada de provas nem a realização de interrogatório, podendo os agentes processuais somente juntar documentos para lastrear os respectivos pleitos. (LOPES JR., 2015)

A ONG HumanRightsWatch analisou de perto a implantação e funcionamento do programa de Audiência de Custódia no Maranhão, que já ocorre desde outubro de 2014, e elaborou um estudo que demonstra que o programa piloto lá realizado está ajudando a reduzir o número de presos provisórios, uma das principais causas da superlotação das prisões e do recrutamento de novos membros por facções criminosas:

Em quase metade dos casos que fizeram parte do programa piloto conduzido no Estado que registrou os piores índices de violência em prisões dos últimos anos, os juízes decidiram que não cabia prisão provisória e determinaram a liberação dos detidos. Nos casos em que as decisões foram baseadas apenas nos documentos policiais, os juízes determinaram a liberação do detido em apenas 10 por cento dos casos, embora o direito internacional preveja que a prisão provisória deve ser último recurso, privilegiando a liberdade. (HRW, 2015)

Isso porque, conforme já foi explicado, as audiências de custódia permitem que os juízes tenham mais informações para decidir se alguém foi detido legalmente e se estão presentes os elementos para se determinar a prisão provisória. Nelas, os juízes devem decidir apenas sobre a aplicabilidade da prisão provisória, não sobre a suposta responsabilidade do suspeito pelo crime de que está sendo investigado.

 Nesse sentido corrobora Toscano Jr.:

Na audiência de custódia não se aborda questão de mérito, senão a instrumentalidade da prisão e a incolumidade e a segurança pessoal do flagranteado, quando pairam indícios de maus-tratos ou riscos de vida sobre a pessoa presa. Não é o contato pessoal do juiz com o preso que o contamina. O distanciamento que é contamina de preconceitos, no sentido de conceitos prévios, sem maiores fundamentos. A presença do preso permite avaliar muito melhor o cabimento ou não da prisão. Traz a faticidade. (TOSCANO JR., 2015)

Dessa forma, se viabiliza o respeito às garantias constitucionais como o princípio constitucional do contraditório, conforme Art. 5º, LV, CF, além de se consolidar o direito de acesso à justiça do réu preso, com a ampla defesa garantida em momento crucial da persecução penal, sem, no entanto, implicar antecipação do interrogatório, já que o projeto prevê expressamente a impossibilidade de que este depoimento preliminar em juízo seja usado depois para condenar o réu.

Conclui-se, portanto, que a audiência de custódia é medida necessária para diminuir o número de presos provisórios e controlar a “nefasta política de encarceramento em massa” do Estado, que coloca, no mesmo lugar, indivíduos que são réus primários e sem antecedentes criminais junto dos presos que pertencem a facções criminosas.

Ademais, com a implementação das audiências de custódia será possível evitar os, infelizmente, ainda constatados, atos de tortura em muitas prisões em flagrante, embora uma parcela considerável e ainda preponderante dos agentes da segurança pública façam o seu trabalho pautados pela observância das garantias constitucionais.

A esse respeito, a ONG HumansRightWatch observou no Maranhão:

As audiências de custódia também são cruciais para prevenir a tortura e os maus-tratos pela polícia – um sério problema no Brasil. O juiz Fernando Mendonça disse à HumanRightsWatch ter identificado sinais de maus-tratos em três casos durante as audiências de custódia do programa piloto, os quais encaminhou ao Ministério Público. As evidências físicas dos maus-tratos provavelmente teriam desaparecido se os presos tivessem que esperar meses até serem conduzidos à presença de um juiz. (HRW, 2015)

Conclui-se, então, que o programa de Audiência de Custódia, além de mostrar o respeito do Brasil às obrigações relativas aos direitos humanos, tem grande potencial de ajudar no combate aos problemas crônicos do sistema carcerário em todo o País, como o encarceramento em massa e a prática de tortura, afinal, prisão não é um fenômeno que traz segurança, a qual deve ser mantida apenas para situações limite, aquelas que a sociedade não tolera.

De acordo com Baratta:

A resposta penal apresenta-se como resposta simbólica. A pretensão de que ela possa cumprir uma função instrumental de defesa social e de efetivo controle de criminalidade na qual se baseiam as teorias da pena, como a da prevenção geral e da especial deve, através de pesquisas empíricas, considerar-se como falsa ou não verificadas. (BARATTA, p. 51)

A limitação da liberdade de um indivíduo sem o devido prestígio ao contraditório é dos mais graves atentados aos direitos humanos, os quais as instituições públicas devem promover, e não cassar. O verdadeiro Estado de Direito não pode conviver com arbítrios concebidos na incongruência da sobreposição de papéis de juiz e acusador.

Porém, como foi visto, a audiência de custódia só servirá seu propósito se acompanhada de medidas que garantam sua gestão e funcionamento correto, como a garantia de defesa ao investigado através do fortalecimento das defensorias públicas, do monitoramento periódico do cumprimento de medidas cautelares alternativas, da mudança do discurso que dá demasiado valor à prisão.

Somente com essas mudanças será possível um sistema processual penal que garanta, em matéria de prisão cautelar, a acusatoriedade, a ampla defesa e o contraditório, o respeito à presunção de inocência, e o primado da liberdade frente o caráter excepcional da prisão cautelar, tal qual a Constituição brasileira e os tratados internacionais de direitos humanos assinados pelo Brasil preveem.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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______. Senado Federal. Projeto de Lei do Senado PLS 554/2011. Altera o § 1º do art. 306 do Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal), para determinar o prazo de vinte e quatro horas para a apresentação do preso à autoridade judicial, após efetivada sua prisão em flagrante. Disponível em:< http://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/102115>. Acesso em: 27 de out. 2015. Texto Original.

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Procurador Federal

Carlos Pierre Rodrigues de Oliveira

estudante de direito cursando o 7 semestre

Leonardo Borges Pinheiro

Bacharelando em Direito pela Faculdade Paraíso do Ceará - FAP

Geocondes Correia de Lima

Sou Sgt da PMCE, tenho bacharelado no curso de história pela URCA, e atualmente sou acadêmico de direito em fase de conclusão..

Francisco Gleison de Melo Alencar

Graduando em Direito pela Faculdade Paraíso do Ceará

José Ivânio Fernandes

Estudante de Direito da Faculdade Paraíso do Ceará em Juazeiro do Norte!

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