Artigo Destaque dos editores

A crise da democracia representativa.

O paradoxo do fim da modernidade

Exibindo página 2 de 2
Leia nesta página:

Poder local e o resgate da democracia social

Discutimos a democracia e a organização territorial do estado brasileiro. Agora é importante discutirmos a fascinante experiência de construção da democracia participativa no Brasil, para então verificarmos a importância de continuarmos em direção a descentralização coordenada e concertada.

O Brasil vem vivendo experiência muito importante de democracia participativa, que se iniciou com a primeiro orçamento participativo municipal em Pelotas, Rio Grande do Sul sendo depois levada para administração de Porto Alegre. É importante lembrar que a organização da sociedade civil que permite o avanço do poder local democrático participativo, encontra suas bases nos movimentos de resistência à ditadura civil-militar de direita (1962–1985), no movimento de formação das comunidades eclesiais de base e no movimento sindical no final da década de 70, movimentos que estão na base da criação do Partido dos Trabalhadores, hoje no poder federal, em alguns estados membros e em diversos municípios.

O orçamento participativo é um importante mecanismo de democracia direta e de participação direta do cidadão e de grupos de cidadãos, na construção da democracia local do Brasil. [7]

Já discutimos em outros trablhos a questão da crise da democracia representativa e o fortalecimento de uma nova democracia representativa a partir do fortalecimento da participação popular ou da democracia participativa. Podemos perceber na experiência brasileira, que uma forma para se resgatar e fortalecer a democracia representativa é o fortalecimento da participação popular através da criação de mecanismos que ofereçam permeabilidade ao poder do estado, criando canais de participação cada vez maiores, superando gradualmente a velha dicotomia liberal entre estado e sociedade civil. Essa participação popular desejada, que resulte em decisão, mais democracia e controle social efetivo ocorrerá de maneira efetiva e eficiente, justamente, no poder local.

No Brasil, observamos a busca de uma maior descentralização e o fortalecimento do poder local integrado em uma federação. É importante ressaltar que não basta descentralizar, é fundamental que o processo de descentralização leve em consideração a democracia participativa local e que busque um desenvolvimento territorial equilibrado reduzindo as desigualdades sociais e regionais. Para que isto ocorra é necessária uma correta distribuição de competências entre as diversas esferas de poder no território, desde a União, passando pelos estados membros, chegando aos municípios. As esferas de coordenação de políticas macro de desenvolvimento equilibrado, têm de permanecer com os entes territoriais maiores, que poderão desta forma produzir o equilíbrio através de políticas de compensações tributárias para as diferentes realidades regionais e municipais.

Para nós no Brasil, que não vivemos um Estado Social efetivo, que fosse capaz de oferecer saúde, educação e previdência de qualidade para todos, o caminho para a inclusão e efetiva participação do nosso povo como cidadãos é o da fragmentação coordenada do poder, a descentralização radical de competências fortalecendo os estados e principalmente os municípios, assim como tornar permeável o poder, com a criação de canais de participação popular permanentes, como os conselhos municipais, o orçamento participativo e outros mecanismos de participação, assim como o incentivo permanente a organização da sociedade civil, e o fortalecimento dos meios alternativos de comunicação como as rádios, jornais e televisões comunitárias. Podemos, e assim estamos fazendo, construir uma democracia social e participativa a partir do poder local.

No Brasil, menos de um ano após a promulgação da Constituição democrática e social de 1988, assistimos o início do desmonte da nova ordem econômica e social prevista pela Constituição. Nesse mesmo momento, como suporte teórico do desmonte do estado social, cresceu a crítica simplificadora e reducionista, importada dos Estados Unidos e de alguns autores europeus, proveniente do novo pensamento neoliberal e neo conservador e ratificada por parte nova esquerda (como o novo trabalhismo de Tony Blair). Esta crítica ao estado social que vem dar suporte ao seu desmonte, aponta o caráter assistencialista como gerador de um exercito de clientes que se amparam no estado, não mais produzindo, não mais criando, enfim, o estado social de caráter autoritário por retirar espaços de escolha individual é gerador de não cidadãos, ao incentivar as pessoas a viverem às custas do estado. Esta crítica extremamente simplificadora e parcial, que toma uma parte de um problema pontualmente localizado no tempo e no espaço como sendo regra para explicar a crise do estado social, ganhou força inclusive à esquerda, o que muito contribuiu para a desconstrução do estado de bem estar social em diversas partes do globo. O estado não deve sustentar os que não querem trabalhar pois esta postura do estado incentiva a expansão dos não cidadãos e sobrecarrega os que trabalham e o setor produtivo com uma alta carga tributária. O pobre deve trabalhar para ter acesso ao que necessita e como não há trabalho para todos, (nem mesmo o trabalho indesejável e mal pago destinado a estes excluídos) aumenta a população carcerária. O estado social assistencialista é substituído pelo estado penal da era neoliberal. O criticado cliente do assistencialismo da segurança social foi transformado em cliente do sistema penal da segurança policial.

Neste novo paradigma a pobreza não decorre das barreiras sociais e econômicas mas sim do comportamento do pobre. O Estado não deve atrair as pessoas a uma conduta desejável através de reconhecimento mas deve punir os que não agem como o desejado. O não trabalho passa a ser um ato político que exige o recurso a autoridade. O estado social passa a ser visto como permissivo pois não exigia uma obrigação de comportamento a seus beneficiários. A direita conservadora mais reacionária e a autoproclamada vanguarda da nova esquerda dão eco a vozes como a de Charles Murray que afirma que as uniões ilegítimas e as famílias monoparentais seriam a causa da pobreza e do crime, e por sua vez, o estado social com sua política permissiva incentivava estas práticas. Além disto, a classe média produtiva se revoltava cada vez mais com a obrigação de pagar tributos para sustentar estas práticas. [8] Esta absurda tese sem nenhuma base científica defendia cortes radicais nos orçamentos sociais e a retomada por parte da polícia dos bairros antes operários, hoje ocupados pelos clientes preferenciais do sistema social que tem de deixar de existir.

O resultado destas políticas (tanto da direita conservadora como da nova esquerda) é conhecido nosso no século XXI: mais exclusão, mais concentração econômica, mais violência, mais controle social, mais desemprego, menos estado de bem estar e mais estado policial. O mais grave é o fato de que, ainda hoje, vozes que se dizem democráticas e a esquerda, continuam sustentando o mesmo discurso contra o estado social, defendendo uma sonhada e desejável democracia dialógica construída pela sociedade civil livre, sem perceber que os novos excluídos social e econômicos estão excluídos do diálogo democrático, passando a fazer parte da crescente massa de clientes do sistema penal em expansão.

Importante notar que esta sociedade civil que hoje se organiza em nível local e global, e se comunica, organiza e age local e globalmente, em muitas manifestações resiste ao desmonte do estado de direito, das conquistas dos direitos sociais e busca uma nova ordem econômica onde não haja exclusão econômica.

Com menos vigor e contundência que os movimentos sociais, mas com importante papel no cenário de resgate de um paradigma social, o discurso e a prática de novos governos de centro esquerda na América Latina como no Brasil, Venezuela, Equador e Argentina, demonstram uma retomada do papel do estado na economia e na questão social, abandonando gradualmente o modelo neoliberal.

No Brasil, o caminho para construção de uma democracia participativa e dialógica, de resistência ao desmonte do estado social e democrático de direito para pela questão local.


Poder local e defesa da democracia

Como já mencionamos anteriormente, a crise da democracia representativa tem demonstrado como é possível a utilização de mecanismos, que foram criados para a democracia, a favor da perpetuação do poder.

As constantes reconstruções conceituais históricas da idéia de democrática e a manipulação da opinião pública através da propaganda e da criação de sentimentos comuns com o fortalecimento da emoção sobre a razão, não é um tema novo, e para aprofundar a questão é importante conhecer a obra de Carl Schimitt e a crítica que se tem construído sobre esta obra.

Citando Marcia Felicíssimo [9], entre Hitler e Schimtt existem acordos significativos mas a teoria de Schimitt é mais ampla, pois se adequa a diversas situações de controle e de construção da inclusão e da exclusão, portanto teoria que pode se revestir de diferentes formas e estéticas, sendo clara a sua vivência até os dias de hoje. Nas palavras da pesquisadora: Para Schimitt este (a questão da superioridade da raça em Mein Kampf) é apenas um expediente, dentre muitos outros possíveis, a idéia de povo ou nação deve ser trabalhada, manipulada, pelo líder, tal como Hitler estava a fazer dentro da herança germânica específica que recebeu identificando o inimigo que possibilitaria a união de pessoas tão diversas e de interesses tão distintos quanto as que compunham a Alemanha de então, pra torná-la uma unidade, uma totalidade política, mediante a exclusão de alemães da própria condição de alemães. A teoria schimittiana não tem bases biológicas e nem o anti-semitismo é o seu centro, pelo contrário, para Schimitt é importante apenas que o líder seja hábil o bastante para manipular os ódios e idiossincrasias herdadas na construção do inimigo que poderá politizar as relações [10] e criar o ambiente totalitário da comunidade política orgânica, unitária do povo verdadeiramente alemão contra outros alemães considerados agora inimigos infiltrados. [11]

Em outro momento a autora ressalta que pode-se ver o influxo da teoria de Schimitt diretamente na concepção de Hitler na unidade do povo: Se para Hitler a unidade do povo se funda no sangue é apenas porque o inimigo eleito pela tradição requeria e tornava plausível essa escolha. Para Schimitt o elemento determinante é que o sentimento de pertinência seja trabalhado de forma ativa pelo líder valendo-se concretamente das herança recebida capaz de fornecer um sentimento de naturalidade e de enraizamento no passado da noção de povo, estratégia autoritariamente reconstruída. A Gemeinschaft, a comunidade orgânica surge na medida em que se criam politicamente as condições de plausibilidade para opor drasticamente o compartilhamento de valores [12], o cultivo das tradições e a comunhão da forma de vida existencial da maior parcela da população às das minorias, pintando-as como inimigas. Esses são os elementos que para Schimitt podem e devem ser manipulados para promover a integração e que podem permitir a constituição do povo-nação pelo líder, núcleo da verdadeira democracia. Como Hitler, Schimitt duvida radicalmente da utilidade da discussão pacífica. Contra a discussão ele propões a decisão. [13]

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

A crise da democracia representativa se agrava com a cada vez maior influência do poder econômico nas campanhas eleitorais e a resistência que assistimos vêm com a força dos fóruns populares dialógicos e democráticos, onde a partir de organizações que surgem em torno de questões locais, ganha-se a perspectiva da indissociabilidade dos níveis territoriais das soluções, ou seja, a construção de um novo ser humano, que perceba a precariedade do materialismo, do consumismo e do desenvolvimentismo capitalista frente as necessidades ambientais, ecológicas e espirituais

Hoje, em varias democracias representativas, vende-se um representante como se vende um sabão em pó. Quem fabricar melhor seu representante, tiver mais dinheiro para contratar uma boa empresa de "marketing" e conseguir muito tempo de mídia, conquista e mantém o poder. Nos Estados Unidos, um Senador democrata gastou 60 milhões de dolares para se eleger nas eleições de 2000. Nos EUA o salário de um Senador é de 150.000 dolares ano, para um mandato de seis anos. (informação disponível no site "cnnenespanol.com" em Dezembro de 2000). Quais interesses sustentam este Senador? Quem ele representa? O povo? Hoje se sabe que na "grande democracia do norte", só tem chance de chegar ao poder quem tem atrás de si os milhões de dólares das mega corporações da industria armamentista, da industria de tabaco, da industria farmacêutica e outras.

Qual a alternativa para este mega poder global? Podemos dizer que a resistência ocorre hoje em dois flancos: a sociedade global e a sociedade local, duas faces de uma mesma moeda. O cidadão é hoje global e local. A sociedade de comunicação deve fincar sua bases em um território, núcleo de organização social e de criação de modelos econômicos e sociais alternativos capazes de gerar novos valores alternativos ao materialismo da sociedade de consumo e a lógica perversa da concorrência. O núcleo local é o principal na transformação de valores e de realização de justiça social e econômica. Simultâneamente, este núcleo local deve estar em comunicação permanente com outros núcleos (organizações sociais; ONG’s, municípios, comunidades de bairro, rádios, jornais e televisões comunitárias, etc) de todo o mundo. A inserção destes núcleos na comunicação global garante seu arejamento e evolução constante, afastando o perigo ultra-nacionalista, a exclusão étnica, racial, religiosa, cultural ou a mais sofisticada forma de exclusão ainda nascente mas não menos assutadora, a exclusão genética.

O contato com o diferente, com valores e fórmulas de busca da felicidade diferentes, ou seja, o pluralismo e a diversidade cultural nos permite evoluir e resistir a massificação das empresas globais, onde em qualquer parte do globo se come o mesmo sanduíche, a mesma pizza ou o mesmo frango frito.

A pergunta que se segue é a seguinte: como criar uma sociedade reflexiva no Brasil? Esta pergunta pode ganhar diversas formas diferentes com o mesmo sentido, mudando entretanto o referencial teórico: Como possibilitar um agir comunicativo efetivo? Como construir uma democracia dialógica? Como construir uma democracia radical? Enfim, qual caminho devemos seguir para efetivar no Brasil a democracia participativa efetiva?

A construção de uma democracia dialógica, radical, participativa no Brasil passa, por este motivo, por uma discussão territorial, e especialmente no nosso caso pela discussão do pacto federativo. Só no nível local conseguiremos incluir uma população que deseja e luta por justiça.

O povo sabe o que quer, e aos poucos está aprendendo a diferenciar o discurso da prática política. Todos os discursos podem ser iguais, mas poucos tem um projeto e uma prática de libertação política e de libertação da miséria. O povo simples pode não saber ainda a diferença teórica entre neoliberalismo e socialismo, mas sabe a diferença entre ser escravo e ser dono da sua própria vida. Se a discussão teórica a respeito do neoliberalismo está distante da compreensão de muitos no Brasil, ao trazermos esta discussão para a concretude do município ela fica clara para todos: neoliberalismo significa a má qualidade do ensino ou a falta da escola; a má qualidade da saúde ou a falta do posto de saúde e do hospital; a falta de saneamento e etc. No Município as teorias ganham concretude.

O caminho que tem sido trilhado tem sido até o momento o da busca da descentralização radical. Entretanto, esta descentralização de nada adianta sem a mudança das bases de poder no município, criando mecanismos de participação popular como os conselhos municipais ou o orçamento participativo.

A democracia participativa no Brasil não pode esperar a construção de um Estado Social, improvável, se não for construído de maneira participativa.

Um conjunto de reformas que afastem os problemas da democracia representativa no Brasil, como a proposta pelo atual governo, se faz necessária para facilitar o processo de transformação social e econômica e o fortalecimento da sociedade civil organizada com a busca da superação da dicotomia estado e sociedade civil.

Entretanto este conjunto de reformas por si só não tem a força de transformação da realidade uma vez que elas são principalmente estruturais. Nada ocorrerá sem uma sociedade civil ativa e organizada, o que vem ocorrendo de maneira crescente na história recente do Brasil.

Em Porto Alegre a democracia local começou a ser construída a partir da administração do PT, com a importante experiência do orçamento participativo. Excluindo-se os recursos constitucionalmente vinculados a determinados serviços como saúde, educação e o pagamento do funcionalismo público todos os outros recursos da Prefeitura eram destinados para discussão popular.

A peculiaridade da experiência de Porto Alegre foi o fato da existência de uma sociedade civil com grau de organização já bastante desenvolvido. Existia portanto uma comunidade de moradores já organizada que realizou o diálogo com o executivo municipal nessa primeira experiência.

Existia por parte da associação dos moradores e do de setores do Partido dos Trabalhadores uma proposta da formação de conselhos populares. A nova administração local entretanto apresentou uma proposta fechada. Neste ponto, a proposta das associações dos moradores rejeitando o modelo pronto e propondo a construção do processo de participação a partir dos próprios morados foi fundamental para se evitar um equívoco inicial. Se a proposta é participação popular, como já chegar com tudo pronto, estabelecendo a forma como o povo deve participar? Esse é um dado importante na história da construção do orçamento participativo. A partir desta experiência, a forma de iniciação do processo é através do diálogo que permita atrair a população para participar na construção das regras que servirão para normatizar o próprio processo de participação popular. Em outras palavras a população irá dizer como se dará a sua participação. É o processo de construção das regras que regulamentam o processo participativo da construção do orçamento.

Nessa primeira experiência e a partir desse conflito inicial foi estabelecida uma das mais importantes características do orçamento participativo de Porto Alegre: as comunidades populares devem se auto-regulamentar. Não existe um regulamento previamente elaborado pela Prefeitura, nada é imposto. Em cada regional será organizada uma Assembléia Popular convocando o povo para o debate de criação das regras de funcionamento do processo de orçamento participativo. Portanto são as assembléias populares que fazem o regulamento para seu próprio funcionamento. Eles se auto-regulamentam sendo dever da Prefeitura fornecer os dados técnicos indicando o recurso disponível e as carências de cada região do município.

Em muitos casos, na votação popular o governo não dispõe de representante. Entretanto há experiências diferenciadas. No que diz respeito ao processo de auto-regulamentação, um novo regulamento será elaborado todo ano, iniciando-se o processo em Dezembro e Janeiro, no final do ano fiscal e inicio do outro ano.

Após este processo inicial, em Março será o momento onde o Governo, através de uma Secretaria (pode-se criar uma secretaria especial para o orçamento participativo, ou pode o orçamento estar ao encargo da secretaria de planejamento, ou na secretaria da fazenda) levará às diversas regionais, às diversas assembléias populares, a disponibilidade de recursos, as obras necessárias, as obras em curso, o custo para cada obra, enfim, os dados técnicos para a tomada de decisão popular. Serão então discutidos quais os critérios para se repartir recursos entre as diversas regiões. Posteriormente serão escolhidos os conselheiros em cada uma dessas regiões para participar de uma reunião específica para a discussão da repartição dos recursos entre as diversas regionais. Os critérios têm que observar os aspectos técnicos e democráticos.

Os critérios normalmente adotados levam em consideração aspectos demográficos, a carência territorial de bens, a existência ou não de uma estrutura de saneamento melhor, existência de estrutura de saúde e educação e por fim é observada a exequibilidade da demanda, ou seja, se o que a população deseja é possível ser feito.

É necessária portanto uma assessoria técnica por parte da Prefeitura com relação á exequibilidade da obra. No município de Belo Horizonte inseriu-se, a partir de 1993, o novo mecanismo chamado de caravana do orçamento participativo, quando os conselheiros escolhidos em cada regional [14] vão estar discutindo a repartição dos recursos entre as regionais. A decisão da divisão de recursos é precedida de visitas às várias regiões e bairros da cidade, verificando de perto as carências, necessidades e infra-estrutura existente.

Este mecanismo tem se mostrado eficaz, permitindo aos conselheiros, originários de diferentes regiões, que conheçam a realidade do todo, (lembrem-se que estamos falando de cidades de doze milhões de habitantes como São Paulo, dois e meio milhões de habitantes como Belo Horizonte ou dois milhões como Porto Alegre). Os conselheiros que representam regiões distintas, podem com isto conhecer a realidade de todas as regiões do município, processo que tem tido resultados interessantes, pois gera conhecimento e sensibilidade dos problemas locais, permitindo a superação de um sentimento egoísta. No momento da votação é costume se estabelecer três prioridades de intervenção do estado municipal.

Os representantes do executivo municipal são em geral assessores técnicos com direito a voz mas sem direito a voto. Toda a deliberação é uma deliberação popular. Após tomadas as decisões, estas são encaminhadas para o executivo, para que técnicos possam montar a lei orçamentária, que será encaminhada no final do ano para a câmara dos vereadores (o legislativo municipal).

Não é necessário que haja uma vinculação obrigatória do executivo municipal em relação as decisões populares no momento da montagem da lei orçamentária, uma vez que surge com o crescimento da participação popular, uma clara vinculação eleitoral. Aquele Prefeito (ou governador), que não respeitar o que o povo deliberou, dificilmente será eleito para qualquer cargo, pelo menos naquele nível territorial. Ocorre portanto um controle social.

Outra questão pode surgir: o legislativo é obrigado a aprovar o projeto de lei proposto pelo executivo a partir da deliberação popular? É claro que não. É uma proposta do executivo para o legislativo segundo a Constituição do Município (a lei orgânica), ou seja, o executivo não está obrigado a observar as deliberações populares nem o legislativo está obrigado a aprovar o projeto de lei orçamentária. Mas vale o mesmo raciocínio: se a Câmara não aprovar a deliberação da população, deve ter explicações convincentes para o seu eleitorado. Neste mecanismo podemos perceber uma revalorização da democracia representativa a partir do funcionamento da democracia representativa.

Pode-se perceber nas experiências relatadas o orçamento participativo atua de forma complementar a democracia representativa, ele não substitui a democracia representativa, existe o prefeito, os legisladores, a aplicação de recursos públicos através da proposta de uma lei orçamentária por parte do executivo que deverá ser aprovada pelo legislativo, ou seja, a democracia participativa não substitui a democracia representativa, mas contribui para seu aperfeiçoamento. Em outras palavras a democracia participativa garante que a democracia representativa seja mais democrática. Depois da implementação do orçamento participativo em Porto Alegre, e com o fato do governo de Porto Alegre ter sempre implementado com sucesso a grande maioria das decisões populares, o PT (Partido dos Trabalhadores) administra a quatro mandatos a Prefeitura de Porto Alegre. Breve serão completados 16 anos de poder. O sucesso do orçamento participativo é demonstrado pelo crescente interesse de municípios brasileiros e em todo o mundo pela adoção deste mecanismo. No Brasil, entre 1989 e 1992, 12 municípios realizaram o orçamento participativo. De 1993 a 1996 foram 36 municípios. De 1997 a 2000 foram 103 municípios e de 2001 até hoje, início de 2004, estima-se que cerca de 300 municípios adotam o orçamento participativo.

Durante este tempo ocorreram algumas experiências intermediárias, ou seja, algumas experiências de orçamento participativo meramente consultivo, o que não resultou em muito sucesso. Por exemplo, na Prefeitura de Recife, em Pernambuco, foi criado um orçamento participativo de caráter consultivo. Eram realizadas reuniões com a população, ouvia-se a população e depois o executivo fazia as suas próprias escolhas e remetia isso para a Câmara.

Esta experiência resultou numa correspondência entre aquilo que o povo queria em termos de orçamento participativo e o que realmente era efetivado em torno de 30% a 40%, enquanto que no sistema deliberativo, o resultado de efetivação das obras escolhidas pelo povo tem a média de 87% das deliberações populares, ou seja, 87 % do que o povo escolhe se concretiza em obras públicas para a população do município. Este resultado pequeno do sistema consultivo em relação ao sistema deliberativo têm afastado o povo das Assembléias consultivas, o inverso do que ocorre no sistema deliberativo que a cada ano recebe mais participação popular.

A democracia participativa têm de se inserir dentro das reflexões sobre a resistência ao poder econômico global, ao neo-liberalismo, uma vez que o grande capital, as grandes corporações globais detêm um enorme poder de propaganda; eles detêm os meios de comunicação detêm o poder econômico e impõe aos estados nacionais, uma situação de exclusão, de miséria e de humilhação insuportável.


Notas

01. Remeto o leitor a leitura do capitulo dois do meu livro Direito Constitucional, tomo I, e dos capítulos 1, 2 e 9 do Direito Constitucional, tomo II, da editora Mandamentos, Belo Horizonte, edição de 2002.

02. COMFORT, Megan. Manière Voir, n.71, bimestriel, octobre-novembre 2003, Lê Monde diplomatique, pag.66.

03. National Comission on Correctional Health Care, The health status of soon-to-be-released imates, Chicago, 2002.

04. Podemos mencionar também da democratização dos estados nacionais da América Latina e diversas novas democracias africanas

05. TODD, Emanuel. Depois do Império, Editora Record, Rio de Janeiro, 2003, página 28.

06. Muller,Friedrich, Quem é o povo. São Paulo: Max Limonad, 1998.

07. Há uma vasta literatura sobre o tema da qual citamos: SANCHEZ, Félix. Orçamento Participativo – teoria e prática, Editora Cortez, São Paulo, 2002; GENRO, Tarso e SOUZA, Ubiratan de. Orçamento Participativo – a experiência de Porto Alegre, Editora fundação Perseu Abramo, São Paulo, 4 edição, 2001; CALDERÓN, Ignácio, CHAIA, Vera (organizadores). Gestão Municipal: descentralização e participação popular, Editora Cortez, São Paulo, 2002; MARICATO, Ermínia. Brasil, cidades – alternativas para a crise urbana, Editora Vozes, Petrópolis RJ, 2 edição, 2001; DANIEL, Celso e outros. Poder Local e Socialismo, Editora Fundação Perseu Abramo, São Paulo, 2002.

08. Esta crítica esta muito bem construída no livro de LOIC WACQUANT, Prisões da Miséria, editora Jorge Zahar editor, Rio de Janeiro, 2001.

09. FELICISSIMO, Márcia Regina. O Conceito de representação política na teoria de Carl Schimitt, Belo Horizonte, 2001, UFMG.

10. A realidade política do Estados Unidos da América pós 11 de setembro retrata a utilização de todos estes mecanismos, como a criação do inimigo (o radical islâmico e não mais o comunista embora as referencias a esquerda continuem muito presentes), a restrição da liberdade de imprensa com a crítica aos não patriotas como sendo todos os que criticam a nação, criando uma unidade, excluindo todos os norte americanos que se coloquem contra a posição do governo, do líder, fato bem marcante no já referido Ato Patriótico II antes mencionado. Em documento intitulado Em defesa da civilização publicado nos EUA após o atentado de 11 de setembro encontramos o seguinte escrito: Os ataques a Nova York e ao Pentagano reacenderam o respeito por nosso país. Acadêmicos que ignorem isso arriscam-se a tornar-se tão irrelevantes quanto os sovietólogos do passado(...) A América é mais do que a soma de seus problemas. A alguns dos intelectuais da nação pode faltar esta perspectiva sobre o onze de setembro, mas é uma preciosa parcela de sabedoria que podemos tirar do atentado. ( SCOWEN, Peter. O livro negro dos Estados Unidos, editora Record, São Paulo, 2003).

11. FELICISSIMO, Márcia Regina. Ob.cit. pág 15.

12. Geralmente esta homogeneidade de valores é simplificada da massa de absolutamente iguais, mas pode ser construída numa massa de absolutamente diferentes. A igualdade de todos reside no fato do egoísmo de cada um na construção de sua vida segundo os valores comuns baseados no egoísmo, materialismo, individualismo e na negação do comunitarismo e de todo aquele que negue estes valores. Portanto, os diferentes são incluídos desde que se adequem ao que pode ser tolerado como diferente. Os diferentes iguais (segundo o paradigma vigente) são aceitos, os diferentes que negam este paradigma de diferença não são aceitos, portanto são excluídos.

13. FELICISSIMO, Márcia Regina, ob.cit.pág.16.

14. As regionais são divisões admininstrativas geralmente desconcentradas, portanto submetidas hierarquicamento ao executivo municipal. Entretanto começam experiências de descentralização administração o que implica em criação por lei de um ente territorial autônomo com competências administrativas próprias.

Assuntos relacionados
Sobre o autor
José Luiz Quadros de Magalhães

Especialista, mestre e doutor em Direito Constitucional pela Universidade Federal de Minas Gerais<br>Professor da UFMG, PUC-MG e Faculdades Santo Agostinho de Montes Claros.<br>Professor Visitante no mestrado na Universidad Libre de Colombia; no doutorado daUniversidad de Buenos Aires e mestrado na Universidad de la Habana. Pesquisador do Projeto PAPIIT da Universidade Nacional Autonoma do México

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MAGALHÃES, José Luiz Quadros. A crise da democracia representativa.: O paradoxo do fim da modernidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 223, 16 fev. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4828. Acesso em: 29 mar. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos