Artigo Destaque dos editores

A crise da democracia representativa.

O paradoxo do fim da modernidade

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Resumo:


  • A democracia é um tema central nas ciências sociais, evoluindo desde sua concepção na antiguidade até as atuais discussões sobre democracia participativa e estado democrático de Direito.

  • Observamos uma crise nas democracias liberais e representativas, marcada pela influência do poder econômico na mídia e na política, mas também surgem alternativas democratizantes como a globalização das comunicações e a mídia alternativa.

  • A democracia participativa e dialógica sugere a necessidade de democratizar a democracia representativa, utilizando mecanismos que promovam maior envolvimento popular e limitação do autoritarismo.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Assistimos a crise da democracia liberal, da democracia social e a insuficiência da democracia representativa, além da apropriação do discurso democrático pelo poder econômico privado.

Um dos temas mais discutidos no âmbito das ciências sociais é a democracia. Podemos no decorrer da história encontrar uma grande e rica viagem do seu sentido, desde sua inicial construção no pensamento e na prática da antiguidade até as sofisticadas e variadas discussões sobre a democracia participativa, a democracia dialógica e a construção do estado democrático de Direito.

Assistimos nestes tempos de profundas transformações a crise da democracia liberal, da democracia social e a insuficiência da democracia representativa além da apropriação do discurso democrático pelo poder econômico privado, concentrado nas mãos de poucos, incluindo o importante poder de controle e manipulação da mídia global. No mesmo momento, entretanto, percebemos claramente o surgimento e fortalecimento de alternativas. A globalização das comunicações, a Internet, a mídia alternativa, as TV s comunitárias, os jornais locais, as rádios comunitárias, enfim toda uma gama de informação democrática alternativa, que, uma vez organizadas em rede (e obviamente não me refiro aqui as falsas redes meramente reprodutoras de um conteúdo produzido por uma única fonte, mas em uma rede democrática, sem centro, multi paradigmática, uma rede de comunicações entre diversas culturas, que se unem em torno de princípios – e não conceitos – comuns) o mundo pode ser transformado em direção a um processo dialógico de construção permanente de uma grande democracia global.

Partindo de um conceito de democracia participativa e dialógica, podemos ir percebendo outros impasses contemporâneos. Um desafio muito claro está na necessidade de democratizar o que no senso comum ainda é aceito como democracia, ou seja, desenvolver mecanismos que possam fazer com que a democracia representativa, vitima do marketing, da concentração econômica e da opinião pública possa ser mais democrática do que ela já conseguiu ser no passado. Os exemplos do comprometimento e da necessidade de adaptar esta democracia representativa de forma que ela possa ser democratizada estão claros a nossa volta, pois se acentua nos momentos de graves conflitos de interesses como no caso da segunda guerra do golfo. Várias indagações surgem a partir da constatação de fatos:

I - na Espanha o Primeiro Ministro Aznar decide contra mais de oitenta e cinco por cento da opinião pública espanhola apoiar a guerra e os espanhóis se perguntam se vivem em uma democracia;

II - nos Estados Unidos o presidente manipulando uma mídia concentrada e controlada pelo poder econômico privado consegue o apoio de setenta por cento da população para uma guerra injustificada perante a opinião pública mundial. Os norte-americanos, em sua maioria, tem certeza que vivem em uma democracia (na realidade americana percebemos como é mais importante a crença na democracia do que sua efetividade);

III - nos países islâmicos governos alinhados com os EUA são obrigados pelas manifestações públicas a mudar seu discurso para acalmar os ânimos que podem, se mais exaltados, ameaçar o seu poder não democrático.

Diante destes três fatos da história contemporânea podemos nos perguntar: democracia e opinião pública são conceitos complementares. Responder sim a esta questão seria de uma insuportável simplificação, ao passo que ao justificar o não, poderemos sempre parecermos parciais.

Entretanto, há um ponto central nos três fatos acima enumerados: o atendimento da opinião pública não é sinal de democracia, não se confunde com democracia e pode ser usado contra a democracia, enquanto de outro lado a opinião pública pode forçar a democratização e limitar o autoritarismo. A construção de uma sociedade democrática e o funcionamento de processos democráticos dialógicos exigem uma análise extremamente mais complexa da sociedade, das instituições, da cultura, da história e do momento histórico vivido, do que simplesmente a sua redução ao normal funcionamento de um parlamento, de eleições periódicas e da realização de consultas populares através de referendos e plebiscitos, ou pesquisas de opinião.

Um outro aspecto referente a construção do senso comum sobre democracia está no discurso econômico: a cultura jornalística ocidental como a construção teórica simplificadora de alguns manuais de Direito, reproduzem, ainda hoje, o conflito do pós segunda guerra de maneira simplificada e parcial. Desta forma é comum encontrarmos afirmativas de que países onde não há a adoção de uma economia capitalista [1] não podem ser democráticos, mesmo que tenham eleições periódicas com grande participação popular.

Situações grotescas surgem a partir desta manipulação dos meios de comunicação: os leitores devem se recordar dos discursos recorrentes dos presidentes norte americanos no sentido de recuperar a democracia e os Direitos Humanos em Cuba. Este discurso foi repetido pelo presidente George W. Bush em 2003 quando afirmou que o seu governo não poupará esforços para resgatar os Direitos Humanos nas ilhas cubanas. Ora se procurarmos os dados divulgados pela ONU anualmente vamos verificar que Cuba detém os melhores índices na América Latina no que diz respeito ao oferecimento de direitos sociais como saúde e educação, com um índice de criminalidade muito baixo e uma população carcerária pequena. De forma diferente os EUA oferecem índices alarmantes, com uma população carcerária que ultrapassa 2.700.000 (dois milhões e setecentos mil detentos), população permanente entre os milhões que entram e que saem do sistema carcerário, com um número de condenações a morte só superado pela China. Segundo dados divulgados [2] em artigo do sociólogo da London School of Economics, Megan Comfort, dos 9.000.000 (nove milhões) de detentos liberados no curso do ano 2002, mais de 1.300.000 (um milhão e trezentos mil) eram portadores do vírus da hepatite C, 137.000 (centro e trinta e sete mil) portadores do vírus da AIDS e 12.000 (doze mil) com tuberculose, o que representa respectivamente 29%, 13% a 17% e 35% do número de norte-americanos tocados por estas doenças. [3]

O presidente norte-americano ao se referir a situação dos Direitos Humanos em Cuba talvez se referisse aos mais de 600 presos na base militar dos Estados Unidos em Guantanamo (território sob ocupação norte-americana na ilha principal de Cuba), sem direito a advogado, a um processo com ampla defesa e contraditório, sem sequer direito a uma acusação formal e submetidos a torturas sofisticadas diariamente, como a supressão dos seus cinco sentidos e a perda da referência de tempo e espaço. Muitos destas pessoas se encontram nesta situação a mais de dois anos, inclusive cidadãos norte-americanos.

Segundo o Patriot Act II nomeado de Domestic Security Enhancement Act, proposto pelo governo dos EUA, e mais duro que o USA Patriot Act, está previsto o fichamento do DNA de estrangeiros suspeitos ou de cidadãos norte-americanos suspeitos de terrorismo, prevendo ainda os pontos seguintes:

I - um cidadão norte-americano pode ser expulso dos Estados Unidos. Isto se com a intenção de se desfazer da sua nacionalidade, um cidadão norte americano se torna membro ou fornece aporte material a um grupo que os Estados Unidos tenham qualificado de organização terrorista;

II - um juiz poderá decidir que um norte-americano não merece mais ser cidadão, se sua conduta demonstrar sua intenção de não sê-lo;

III - abandono dos procedimentos judiciais que enquadram as atividades de segurança nacional permitindo detenções secretas.

Estes são alguns exemplos da nova lei proposta, que entretanto encontra alguma resistência desde a esquerda do partido democrata a direita do partido republicano.

Um exemplo recente de como a democracia representativa se torna intolerável quando esta afeta os interesses da elite econômica minoritária é o caso da Venezuela de Hugo Chaves, que guardadas as diferenças históricas nos faz lembrar do golpe de 1964 no Brasil ou do golpe de 1973 no Chile.

O atual governo da Venezuela foi eleito democraticamente com amplo apoio da população, embora tivesse contra si a grande mídia privada, o que mostra que o poder da mídia é grande, entretanto não infalível. Após o governo ser eleito (primeira eleição) convocou um processo constituinte democrático como raros na história. Foi eleita (segunda eleição) uma assembléia constituinte, a constituição foi votada e aprovada, depois submetida a referendo popular (terceira eleição). A assembléia foi dissolvida (pois trata-se de poder temporário) e foram convocadas eleições para o parlamento e novamente para presidente da república (quarta e quinta eleição). Após todo este processo o governo eleito começou a promover mudanças na economia e na sociedade que afetaram interesses de uma elite que sempre se beneficiou de privilégios deixando 80% da população na pobreza ou abaixo da linha de pobreza. Esta elite então, em nome da democracia, patrocina um golpe de estado com apoio de parte das forças armadas, depois de campanha da mídia, de sua propriedade, desmoralizando o governo. O golpe fracassou e seguiu-se uma greve na estatal de petróleo (principal fonte de recursos da Venezuela) com a intenção de inviabilizar economicamente o governo. A greve foi superada com enormes prejuízos econômicos. Agora depois de tudo a oposição tenta um plebiscito para tirar o governo, que não pôde governar como devia diante de tamanha instabilidade, mas que mesmo assim apresenta resultados sociais e econômicos positivos. A quem pertence a palavra democracia. Quem procura deter o monopólio da construção e divulgação do conceito de democracia. Os mesmos que quando a democracia, que lhes é favorável, se torna desfavorável, em nome da democracia, acaba ou tenta acabar com a democracia.

A democracia não é um lugar onde se chega. Não é algo que se possa alcançar e depois se acomodar pois é caminho e não chegada. É processo e não resultado. Desta forma a democracia existe em permanente tensão com forças que desejam manter interesses, os mais diversos, manter ou chegar ao poder para conquistar interesses de grupos específicos, sendo que muitas vezes estas forças se desequilibram, principalmente com a acomodação da participação popular dialógica, essência da democracia que defendemos, e o desinteresse de participação no processo da democracia representativa, pela percepção da ausência de representatividade e pelo desencanto com os resultados apresentados.

Desta forma os que detém determinados poderes transformam os processos a seu favor. Já trabalhamos a transformação de mecanismos que serviram a democracia norte-americana como financiamento de campanha, colégio eleitoral, bipartidarismo, imprensa privada, em mecanismos de controle e perpetuação de poder e remetemos o leitor aos nossos livros Direito Constitucional, tomo I e II, da editora Mandamentos (Belo Horizonte, 2002). Este desvirtuamento do processo democrático se aprofunda com a concentração econômica do final do século XX. Emanuel Todd, que combate a visão economicista do mundo observa o fenômeno no paradoxo da democratização de estados que viveram autoritarismos históricos enquanto antigas democracias se desvirtuam em novas oligarquias populistas e ou belicistas:

No exato momento em que começa a ser implantada na Eurásia [4], a democracia enfraquece onde ela nasceu: a sociedade norte-americana transforma-se num sistema de dominação fundamentalmente desigual, fenômeno perfeitamente conceituado por Michael Lind em The next American Nation. Encontramos em especial, neste livro, a primeira descrição sistemática da nova classe dirigente americana pós-democrática, the overclass.

Mas não há que ter inveja. A França está quase tão avançada quanto nos Estados Unidos neste caminho. Curiosa democracia, esses sistemas políticos nos quais se defrontam elitismo e populismo, nos quais subsiste o sufrágio universal, mas as elites de direita e de esquerda entendem-se para impedir qualquer reorientação da política econômica que levasse a uma redução das desigualdades. Universo cada vez mais absurdo no qual o jogo eleitoral deve conduzir, ao cabo de um titânico confronto nos meios de comunicação de massa, ao status quo. [5]

Todd se refere na França atual a um mecanismo sociológico e político de bloqueio no qual no qual as aspirações dos 20% de baixo são bloqueadas pelos 20% de cima que controlam ideologicamente os 60% do meio. O resultado é que o processo eleitoral não tem qualquer importância prática sendo que o índice de abstenção avança de maneira sensível.

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Democracia local e federalismo

Muitas outras questões podemos formular a respeito do conflito em torno da palavra democracia. Muitos foram os sentidos do seu conceito, mas a democracia que acreditamos neste momento de transformação da sociedade, é a democracia que se constrói do dialogo livre, no livre pensar no seio de um sociedade onde a construção de espaços de comunicação sejam possíveis, o que depende da construção da cidadania como idéia de dignidade, libertação da miséria e respeito humano. Não há efetiva liberdade sem meios para exercê-la, e estes meios são os direitos que libertam o ser humano da miséria e da ignorância.

A seguir procuraremos demonstrar a importante relação entre as alternativas democráticas e o poder local. Para isto vamos estudar a experiência brasileira conhecendo primeiro a organização territorial do Estado brasileiro para depois estudarmos as experiências locais de democracia participativa, especialmente o orçamento participativo, mecanismo de democracia que permite a superação da velha dicotomia liberal entre estado e sociedade civil através da criação de mecanismos de participação que permitem a permeabilidade ou porosidade do poder do estado, o que só é possível ocorrer, de maneira efetiva e eficaz, no nível local, onde está o menor espaço territorial.

O tema da organização territorial dos Estados contemporâneos é hoje de grande importância para a construção da democracia participativa e do conceito de cidadania compreendido a partir da teoria da indivisibilidade dos direitos fundamentais.

Mais do que nunca, é fundamental que encontremos soluções efetivas de implementação de uma democracia participativa, fundada na cidadania, e, para que isso ocorra no Brasil, não podemos aguardar a construção de um estado social avançado, que crie as bases da participação consciente da população, uma vez que, com a globalização neoliberal, não só o estado social, mas o estado nacional está em crise.

Não podemos, também, simplesmente abandonar a estrutura e o papel do estado, em vários níveis de organização territorial, apenas afirmando que toda a solução passa pela sociedade civil organizada. Se esta afirmativa é hoje considerada por alguns autores europeus, sem dúvida ela não se aplica aos países que não se enquadram na realidade da União Européia.

O federalismo

Existem várias formas de estados federais no mundo contemporâneo. O federalismo não é hoje a única forma descentralizada de organização territorial, sendo que a partir da década de setenta do século XX assistimos um grande movimento em direção a uma acentuada descentralização, com inspirações políticas e econômicas diferenciadas, mas que marcam um caminho trilhado pelos estados democráticos, sendo que as formas meramente desconcentradas, com poder centralizado subsistem hoje praticamente em estados autoritários, nas suas variadas formas ainda encontradas.

O federalismo clássico formou-se a partir das experiência histórica norte-americana, formado por duas esferas de poder, a União e os estados (federalismo de dois níveis), e de progressão histórica centrípeta, o que significa que surgiu historicamente de uma efetiva união de estados anteriormente soberanos, que abdicaram de sua soberania (ou de parcelas de sua soberania) para formar novas entidades territoriais de direito público, ou seja: o Estado federal (pessoa jurídica de direito público internacional) e a União (pessoa jurídica de direito público interno). A União constitui-se numa das esferas de poder, ao lado dos estados membros, diante dos quais não se coloca em posição hierarquizada.

Importante ressaltar, neste ponto, alguns aspectos importantes a respeito das formas descentralizadas de estado em relação ao federalismo. O federalismo clássico de dois níveis diferencia-se de outros estados descentralizados, como o estado autonômico, regional ou unitário descentralizado, pelo fato de ser o único cujos entes territoriais autônomos detêm competência legislativa constitucional, ou, em outras palavras, um poder constituinte decorrente. Assim:

a)No estado unitário descentralizado, as regiões autônomas recebem por lei nacional competências administrativas, caracterizando a descentralização pela existência de uma personalidade jurídica própria e eleição dos órgãos dirigentes. Esta descentralização de, apenas, competências administrativas, pode ocorrer em nível municipal, departamental (provincial) ou regional, em um nível ou em vários níveis simultaneamente.

b)No estado regional, as regiões autônomas recebem competências administrativas e legislativas ordinárias, elaborando o seu estatuto, mas sempre com o controle direto do estado nacional. Neste caso a descentralização avança para, além de competências administrativas, geralmente, em quatro níveis, também de competências legislativas ordinárias, em dois níveis.

c)No estado autonômico, o interessante modelo espanhol da Constituição de 1978, vemos outro modelo altamente descentralizado. Neste modelo ocorre uma descentralização administrativa em quatro níveis e legislativa ordinária em dois níveis, diferenciando-se este modelo de estado regional pela forma ímpar de constituição das autonomias, onde a Constituição espanhola de 1978 permitiu que a iniciativa partisse das províncias para constituírem comunidades autonômicas autorizando que estas elaborassem seus estatutos, que, para terem validade, devem ser aprovados pelo parlamento nacional (as Cortes Gerais – câmara de deputados e senado), transformando-se em lei especial, que só poderá ser alterada por iniciativa das comunidades autônomas a cada cinco anos, pelo mesmo processo legislativo.

d)No estado federal, os entes descentralizados detêm, além de competências administrativas e legislativas ordinárias, também competências legislativas constitucionais, o que significa que os estados membros elaboram suas Constituições e as promulgam, sem que seja possível ou necessária a intervenção do parlamento nacional para aprovar esta Constituição estadual (como é necessário em relação aos estatutos das regiões autônomas no estado regional e no estado autonômico). Esta Constituição dos estados membros sofrerá apenas um controle de constitucionalidade a posterior, o que é um controle técnico que não caracteriza, juridicamente, hierarquia entre os estados membros e a União.

e)Não estamos considerando, como característica diferenciadora entre estes tipos de estados, a descentralização de competências jurisdicionais, que pode ou não ocorrer sem descaracterizar os modelos acima mencionados.

f)O grau de descentralização ou o número de competências legislativas e administrativas transferidas aos entes descentralizados também não é hoje mais elemento diferenciador entre o estado federal e as outras formas descentralizadas de estado, pois há estados federais centrífugos, onde o número de competências legislativas e administrativas dos estados membros é inferior ao das regiões autônomas na Espanha, por exemplo. O nosso federalismo é ainda um dos modelos menos descentralizados, bastando, para confirmar esta afirmativa, ler a distribuição de competências legislativas e administrativas nos artigos 21 a 24 da Constituição Federal de 1988.

O Estado Federal brasileiro centrífugo, de dois níveis e formalmente simétrico

O federalismo centrípeto dirige-se ao centro, pois historicamente originário de estados soberanos que formaram, no caso norte-americano, uma confederação (1777) e posteriormente uma federação (1787). A história norte-americana mostra que nos mais de duzentos anos de existência da federação, a União vem gradualmente centralizando competências incorporando competências dos Estados lentamente e de maneira não constante, todos estes anos. Entretanto, ao contrário do que uma leitura apressada possa sugerir, o federalismo centrípeto, justamente por estes motivos, é o mais descentralizado, pois se originou historicamente de estados soberanos que se uniram e abdicaram de parcelas de sua soberania. Por este motivo os estados membros mantém um grande número de competências administrativas, legislativas ordinárias e legislativas constitucionais. Esta terminologia com freqüência causa confusão e por vezes é empregada de maneira equivocada.

Desta forma, o grau de descentralização é muito grande, representado pelo grande número de competências administrativas, legislativas e jurisdicionais dos estados membros, que ainda transferem diversas competências para os municípios, ou outros entes territoriais menores assemelhados. Embora caminhem em direção ao centro este movimento não é uniforme uma vez que em momentos de crise há um fortalecimento do centro enquanto nos momentos de crescimento e estabilidade há um fortalecimento dos estados membros. Tampouco não se pode afirmar até quando permanecerá uma tendência ao fortalecimento do centro (embora com momentos de menor duração de tendência contrária) tomando-se o movimento histórico global.

Importante portanto lembrar que o federalismo centrípeto (como são exemplo EUA e Suíça) são formados a partir de estados soberanos que formaram uma confederação e depois uma federação. Por este motivo percebe-se uma tensão típica destes modelos, onde o movimento constitucional é centrípeto para resistir a uma matriz de poder e cultura política centrífuga, movimento exatamente oposto ao nosso modelo.

O federalismo brasileiro, ao contrário do norte-americano, é um federalismo centrífugo (movimento constitucional em tensão com um movimento político e cultural centrípeto em nossa história independente até os dias de hoje) e absolutamente inovador ao estabelecer um federalismo de três níveis, incluindo o município como ente federado, e, portanto com um poder constituinte decorrente. A partir da Constituição de 1988, os municípios brasileiros não só mantém sua autonomia como conquistam a posição de ente federado, podendo, portanto, elaborar suas Constituições municipais (chamadas pela Constituição Federal de leis orgânicas), auto-organizando os seus poderes executivos e legislativo e promulgando sua Constituição sem que seja possível ou permitida a intervenção do legislativo estadual ou federal para a respectiva aprovação. O que ocorrerá com as Constituições municipais será apenas o controle aposteriori de constitucionalidade, o mesmo que ocorre com os Estados membros.

Alguns autores têm rejeitado a idéia do município como ente federado (que caracteriza o federalismo de três níveis criado pela Constituição de 1988), por ser uma idéia nova, mas seus argumentos (ausência de representação no Senado, impossibilidade de falar-se em União histórica de municípios, ausência de poder judiciário no município) são frágeis ou inconsistentes diante da característica essencial do federalismo, que difere esta forma de Estado de outras formas descentralizadas, ou seja a existência de um poder constituinte decorrente ou de competências legislativas constitucionais nos entes federados.

O processo histórico de união de estados soberanos não existiu no Brasil, assim como em vários estados federais, e, quanto à inexistência de representação no Senado, existem estados federais unicamerais (Venezuela), assim como existe o bicameralismo em estados unitários (França), regional (Itália), autonômico (Espanha), sendo que, no caso brasileiro, o nosso Senado na realidade não cumpre um papel de uma casa de representação dos estados (isto é apenas formal), mas sim uma casa extremamente conservadora, que pela ausência de distinção constitucional ou infra-constitucional de competências entre as duas casas, distorce a representação popular e a simetria constitucional buscada formalmente no Senado através da representação igualitária (três senadores por estado).

Quanto ao aspecto centrífugo do nosso federalismo, ele é extremamente importante para a interpretação da Constituição e rejeição de aspectos inconstitucionais presentes em recentes medidas provisórias, leis, atos de governo e até emendas inconstitucionais, que tendem a abolir o federalismo ao centralizar competências, movimento contrário a lógica federal constitucional centrífuga de busca de descentralização, caminho para aperfeiçoamento do nosso modelo federal.

O nosso estado federal surgiu a partir de um estado unitário, criado pela Constituição de 1824. O seu processo de formação é, portanto, exatamente o inverso do norte-americano, o modelo inicial, com o qual não pode ser equiparado. A Constituição brasileira de 1891, copiando várias instituições norte-americanas, copia deles o federalismo, mas, como a história não pode ser copiada e o modelo norte americano, tanto de Suprema Corte, como de presidencialismo, bicameralismo, e federalismo, são modelos históricos, a nossa cópia têm muitas diferenças com o modelo original.

A visão de nosso federalismo como federalismo centrífugo explica a nossa federação extremamente centralizada, que, para aperfeiçoar-se, deve buscar constantemente a descentralização. Somos um Estado federal que surgiu a partir de um Estado Unitário, o que explica a tradição centralizadora e autoritária que devemos procurar abandonar para construir uma federação moderna e um Estado democrático de Direito. A Constituição de 1891 construiu um modelo federal descentralizado (em comparação com os outros modelos federais das constituições de 1934 e 1946 e os federalismos meramente nominais das constituições de 1937, 1967 e 1969), mas artificial, pois não houve união de estados soberanos, mas sim uma divisão para se criar uma união artificial, que, por este mesmo motivo, recuou nas Constituições brasileiras posteriores. Não se pode negar a história, mas sim trabalhar com ela para fazer evoluir o nosso estado para modelos mais descentralizados e, logo, mais democráticos. Por isto, um federalismo de três níveis teria que surgir no Brasil para fazer avançar a democracia em um país de tradição municipalista, como ocorreu com a Constituição democrática de 1988.

A federação descentralizada de 1891 recua no grau de descentralização em 1934 e 1946, sendo que, na Constituição de inspiração social-fascista de 1937, a federação foi extinta. A conexão entre autoritarismo e centralização é muito forte na nossa história. Nas Constituições de 1967 e principalmente de 1969 (a chamada Emenda nº1), temos uma federação nominal, sendo que de fato o Brasil retorna a um Estado unitário descentralizado, sendo, portanto, esta descentralização quase que exclusivamente administrativa. Lembremos que os requisitos básicos de um Estado unitário descentralizado não estavam presentes em 1969: personalidade jurídica própria dos entes descentralizados com eleição dos administradores regionais. No Brasil da ditadura que se instalou pós-64 e com a Constituição de 69, os governadores não eram eleitos, assim como os senadores. Uma ditadura mais sofisticada que outras ditaduras latino-americanas, pois dava-se o trabalho de eleger um novo general de quatro em quatro anos, em um sistema de eleição indireta e bipartidário, muito semelhante ao modelo presidencial norte-americano.

A Constituição de 1988 restaura a federação e a democracia, procurando avançar um novo federalismo centrífugo (que deve sempre buscar a descentralização) e de três níveis (incluindo uma terceira esfera de poder federal: o município). Entretanto, apesar das inovações, o número de competências destinadas à União em detrimento dos estados e municípios é muito grande, fazendo com que nós tenhamos um dos estados federais mais centralizados do mundo. Isto ainda é uma grave distorção, que tem raízes no autoritarismo das "democracias formais constitucionais" que tomaram conta da América Latina na década de noventa, com a penetração do perverso modelo neoliberal: os neo-autoritarismos ou o neo-presidencialismo autoritário, segundo o constitucionalista Friedrich Muller. [6]

A compreensão do nosso federalismo como federalismo centrífugo é de fundamental importância para sua leitura constitucionalmente correta e para que se exerça uma leitura constitucionalmente adequada das regras infra-constitucionais, assim como um correto controle de constitucionalidade, coibindo contratos, medidas provisórias, atos administrativos e emendas à constituição inconstitucionais, pois tendentes a abolir a nossa forma federal (centrífuga), limite material expresso ao poder de emenda à constituição, e, logo, restrição a qualquer ação contrária à forma federal centrífuga. Não é necessário lembrar, que se uma emenda centralizadora, logo, tendente a abolir a forma federal, é inconstitucional, inconstitucional também será qualquer outra medida neste sentido.

Desta forma, o reflexo desta compreensão ocorre, por exemplo, na leitura correta das limitações materiais previstas no artigo 60, § 4º, quando dispõe que é vedada emenda tendente a abolir a forma federal. Alguns autores referem-se a este dispositivo como cláusula pétrea. Não acreditamos que esta terminologia seja a mais adequada para nomear as limitações materiais do poder de reforma na atual Constituição, uma vez que não estamos nos referindo a cláusulas imutáveis, mas sim a cláusulas não modificáveis em um certo sentido. No caso específico da vedação de emendas tendentes a abolir a forma federal, esta limitação só pode ser compreendida a partir do sentido do nosso federalismo, no caso um federalismo centrífugo.

Isto quer dizer que:

1. O artigo 60 não veda emendas sobre o federalismo, mas emendas tendentes a abolir a forma federal.

2.Ao vedar emendas tendentes a abolir a forma federal, no nosso caso específico, em um federalismo centrífugo, que tem um movimento constitucional em direção à descentralização, só serão permitidas emendas que venham a aperfeiçoar o nosso federalismo, ou, em outras palavras, que venham a acentuar a descentralização.

3.Emendas que venham a centralizar, em um modelo federal historicamente originário de um Estado unitário e altamente centralizado, são vedadas pela Constituição, pois tenderiam à extinção do estado federal brasileiro. Centralizar mais o nosso modelo significa transformá-lo de fato em um estado unitário descentralizado.

4.Logo, qualquer emenda que centralize mais competência na União é inconstitucional e deve sofrer o controle de constitucionalidade.

5.Finalmente, o modelo centrífugo (federalismo que tende constitucionalmente à descentralização) é princípio constitucional que se impõe não apenas ao legislativo e ao constituinte derivado, mas também a toda a atuação dos poderes da União e, obviamente, também ao executivo.

Podemos concluir que toda e qualquer atuação do legislativo e do executivo da União, que tenda a centralizar competências, centralizar recursos, centralizar poderes, uniformizar ou padronizar entendimentos direcionados aos estados membros e/ou municípios, é conduta inconstitucional e deve ser combatida, além de não ser de observância obrigatória para os estados e municípios, pois inconstitucional.

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Sobre o autor
José Luiz Quadros de Magalhães

Especialista, mestre e doutor em Direito Constitucional pela Universidade Federal de Minas Gerais<br>Professor da UFMG, PUC-MG e Faculdades Santo Agostinho de Montes Claros.<br>Professor Visitante no mestrado na Universidad Libre de Colombia; no doutorado daUniversidad de Buenos Aires e mestrado na Universidad de la Habana. Pesquisador do Projeto PAPIIT da Universidade Nacional Autonoma do México

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MAGALHÃES, José Luiz Quadros. A crise da democracia representativa.: O paradoxo do fim da modernidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 223, 16 fev. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4828. Acesso em: 22 dez. 2024.

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