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Teoria Geral do Direito e o fato jurídico processual.

Uma proposta preliminar

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17/02/2004 às 00:00
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CAPÍTULO 3

O pensamento sistemático no Direito

A idéia de "sistema jurídico" aparece na filosofia política e na teoria jurídica no século XVIII. A primeira expressão "systems of law" encontrada foi em Bentham - Of Law in General, 1782. No entanto, Viehweg (1953) remete a Leibniz, em Dissertatio de arte combinatoria (1667), a primeira tentativa de entender o Direito como um sistema articulado.

"A ars combinatoria mostra com especial clareza o esforço de seu autor para fazer concordar o tradicional estilo de pensamento da Idade Média com o espírito matemático do século XVII. O jovem Leibniz não diz claramente que para conseguir uma prova, no sentido antes indicado, seja necessário desterrar a tópica em favor do sistema, mas admite que a herdada ars inveniendi, como tal, quer dizer, sem eliminar em absoluto sua estrutura fundamental, pode ser colocada sob controle aritmético. É necessário, em sua opinião conceber a ars inveniendi como ars combinatoria. Isto é, Leibniz pretende matematizar a tópica".

Guido Fassò também ressalta o mérito de Leibniz:

"La Nova methodus apunta a reducir el Derecho a una unidad sistemática, mediante una ordenación de la materia jurídica que conduzca a principios simples, de lo que extraer leyes no sujetas a excepciones (Leibniz, Nova methodus discendae docedaeque jurisprudentiae, II, 25). Tal materia es siempre el Derecho romano, vigente entonces en Alemania como Derecho común, reordenándolo según un método nuevo, gracias al qual le sea conferida la unidad que el sistema justinianeo no posee, racionalizándolo (Leibniz, op. cit., II, 10). En su totalidad, el sistema anhelado y propuesto por Leibniz debe conducir a la solución de todas las cuestiones, mediante argumentaciones precisas expresadas con lenguaje riguroso, según el método del procedimiento lógico matemático".

Antes de chegarmos à Puchta e sua jurisprudência dos conceitos do século XIX, é importante ressaltar a figura de Christian Wolff (1679-1754) na formação do sistema lógico. Franz Wiacker considera-o de extrema importância:

"Não só o coerente sistema lógico de Wolff forneceu o fundamento de vários códigos jus-racionalistas e, por intermédio dos seus discípulos juristas e da pandectística, ainda do Código Civil (Alemão) e das codificações com ele aparentadas, mas constitui também, a partir do manual de Wolff, o programa de uma dedução lógica da decisão jurídica a partir de princípios superiores e conceitos gerais com um valor construtivo previamente fixado que nunca mais abandonou a ciência jurídica especializada. Se o instrumento metódico da anterior ciência jurídica era constituído pela dedução analítica a partir de textos isolados dotados de valor autoritário, agora o conceito jurídico sintético - ou seja, o conceito recondutível aos últimos princípios superiores, de acordo com as regras de dedução do sistema - tornou-se no último fundamento científico da decisão. Christian Wolff é o verdadeiro pai daquela "jurisprudência dos conceitos" ou "construtiva" que dominou a pandectística do séc. XIX, de Puchta a Windcheid e à "Parte Geral" de Andreas von Thur, e que, apesar de todas as graves crises metodológicas, ainda hoje conserva valor, embora limitado".

Entretanto, há quem, como Guido Fassò, critique o mérito de Wolff e o esquecimento de Leibniz: "El pensamiento de Wolf está falto de originalidad, ya que es una elaboración y sistematización minuciosa y fría de la metafísica de Leibniz".

Foi Puchta o principal representante da escola alemã do séc. XIX que estruturou a ciência jurídica como um sistema lógico na forma de uma pirâmide de conceitos. (ver Larenz, Metodologia) Também se destacaram Savigny e Ihering, sendo que este último tornou-se, posteriormente, um dos principais críticos do sistema formal, partindo para uma Jurisprudência pragmática, que foi o ponto de partida para a Jurisprudência dos Interesses de Philipp Heck. A Jurisprudência dos Conceitos cedeu espaço à Jurisprudência dos Interesses, que se abre às valorações sociais e aos objetivos do Direito.

No entendimento de Niklas Luhman, a Jurisprudência do Interesses não se opôs à idéia de sistema de conceitos:

"La polémica de los defensores de una jurisprudencia de intereses en contra de una jurisprudencia de conceptos, y en favor de una jurisprudencia sociológica, no ha de ser malinterpretada como si fuera una polémica en contra de la abstracción, en contra de la conceptualidad y en contra de la dogmática. Desde el punto de vista jurídico, la misma jurisprudencia de intereses más bien va en contra de la pretensión de una disposición conceptual autónoma sobre cuestiones jurídicas realizadas sólo en interés del conocimiento. El paso del pensamiento jurídico de sistemas de conceptos a sistemas de acciones posibilita una problematización funcional de la dogmática. Esto no significa que la dogmática pueda ser sustituida por la problemática".

"À Jurisprudência dos interesses correspondeu, na prática jurídica alemã, um sucesso invulgar. Com o decurso do tempo, revolucionou efectivamente a aplicação do Direito, pois veio a substituir progressivamente o método de uma subsunção lógico-formal, nos rígidos conceitos legislativos, pelo de um juízo de ponderação de uma complexa situação de facto, bem como de uma avaliação dos interesses em jogo, de harmonia com os critérios de valoração próprios da lei".

Porém, Larenz submeteu-se a sérias críticas devido ao problema da percepção de seus valores subjacentes, o que dá margem à subjetividade. Outro problema, detectado por um dos partidários da Jurisprudência dos Interesses, Harry Westermann, é a indefinição da própria expressão "interesse", entendida, basicamente, de três formas diferentes: motivação do legislador, objeto das valorações e critérios de valorações. Assim, Westermann propõe que "Estes não seriam em si propriamente interesses, mas "corolários da idéia de justiça, inferidos pelo legislador desse fim último". A partir daí surge a chamada Jurisprudência das Valorações, que continua atual, porém, ainda com muitos problemas. A questão principal é remanescente do sistema de interesses, isto é, a existência ou não de critérios objetivos de valoração bem como a possibilidade de fundamentação racional do uso dos valores.

O sistema aberto e flexivelmente ordenado de Canaris propõe como uma solução para o problema dos valores um espaço especial concedido aos princípios, dentro do sistema. Segundo o seu pensamento o princípio ocupa um lugar intermediário entre o conceito e o valor, pois não se reduz à forma limitada de conceito e tem mais amplitude que um valor específico. Um princípio explicita um ou mais valores principais e ainda permite em si a subsunção de valorações parciais autônomas, resultantes da combinação do princípio e outras normas do sistema sobre o fato. Se, por um lado, essa previsão dos "pontos de vista valorativamente autônomos" condecora o sistema de Canaris como diferenciado de um sistema axiomático (rígido e fechado), por outro, faz apenas reduzir em escala o problema da verificabilidade racional das valorações. Associar esses pontos de vista a unidades de âmbito parcial (ver a próxima citação) não retira de deles os seus pesos decisórios e, para piorar, diminui a visibilidade da argumentação valorativa, o que confronta o próprio autor quando diz que no conceito a valoração está implícita, em contraposição à explicitude do princípio. Vejamos:

"Mostra-se, assim, amplamente, que as conseqüências jurídicas quase nunca se deixam retirar, de forma imediata, da mera combinação dos diferentes princípios constitutivos do sistema, mas antes que, nos diversos graus da concretização, surgem sempre novos pontos de vista valorativos autônomos. Em regra, não se pode reconhecer a estes a categoria de elementos constitutivos do sistema, por causa da sua estreita generalidade e do seu peso ético-jurídico normalmente fraco: eles não são constituintes da unidade de sentido do âmbito jurídico considerado, portanto, do Direito privado, nos exemplos citados. Mas eles podem, naturalmente, ser constituintes da unidade de um âmbito parcial - em regra pequeno".

Uma pesquisa realizada pelos alunos de graduação em Direito da Universidade Federal do Paraná analisou estatisticamente as tendências argumentativas e os tipos de argumentos subjacentes na mentalidade de uma amostra de alunos de cursos jurídicos. Entre outras conclusões, verificou-se que os juízos de valor predominaram, com uma boa margem de diferença, sobre os juízos de fato.

A partir dos problemas até então expostos e conhecendo-se um pouco da Teoria Geral do Direito "como ela é" e "seus agregados", pode-se concluir facilmente que ela deixa muito a desejar, à prática do jurista, principalmente em suas funções decisórias, mas que também afeta todo processo de argumentação. A principal lacuna é a falta de uma Axiologia Jurídica madura e aplicável. A necessidade disso ainda não está muito clara na consciência jurídica coletiva justamente pela canalização da atenção aos confrontos entre os extremos formalismo racionalista de direita e subjetivismo retórico de esquerda.

Como bem diz Guerra Filho,

"É aqui que se faz necessário o exercício de uma crítica da ideologia, que revele vinculações políticas e éticas, subjacentes a posições assumidas por doutrinadores, juízes e legisladores, no campo do direito. Com isso, evita-se uma politização exacerbada da teoria jurídica, que a torna desprovida de um mínimo de objetividade, outro requisito necessário para que se possa considerá-la científica. [...] Na verdade, a ciência jurídica - como toda ciência, aliás - não tem como escapar completamente das influências ideológicas. É certo, também, que para ela é particularmente difícil uma "neutralização axiológica", e podemos mesmo duvidar de que isso seja desejável, pois se perseguimos esse já tão desgastado ideal com demasiada obstinação, terminamos por não cumprir um dos principais compromissos que se deveria assumir, ao fazer a ciência jurídica: o compromisso com a democracia e emancipação social".

"Nem tanto ao céu, nem tanto ao mar" - desperta uma crítica quase instintiva ao confortável, morno, medíocre e preguiçoso discurso do meio-termo. Mas é justamente o ponto médio a posição mais arriscada e difícil, pela sua natural tendência à mediocridade. É só olhar de relance à história e vemos que as teorias "meio-termo" são as que mais fracassaram. No entanto, nas pequenas teorias da dogmática jurídica, as mistas têm grande aplicação, pois se adequam bem à prática, ainda que percam o glamour da argumentação de uma corrente específica. O que é mais importante é ter uma visão crítica para perceber se há algo mais que glamour em algumas teorias que circulam por aí. O que é bom nas teorias de posição intermediária é que elas se confrontam imediatamente com a realidade, já que seus respaldos teóricos são menores e, portanto, precisam ser muito boas e práticas para sobreviverem ao parto.

Para Luhman "Los conceptos, teorías, conocimientos dogmáticos no son el sistema, sino que gobiernam el sistema de derecho. Por esta misma razón tendremos que ganarnos los puntos de referencia del analices fuera de la sistemática dogmática, en las funciones sociales del derecho y del sistema jurídico". O papel das teorias gerais da dogmática jurídica é justamente fazer a ponte entre a prática da aplicação das normas e o pensamento filosófico sobre os ideais da justiça e função social do Direito.

Há opiniões, no entanto, contrárias à adoção de teorias gerais:

"[...] verifica-se que uma pretensão de uma teoria geral, como suporte de campos temáticos, constitui formas adequadas para a manutenção da racionalidade ideológica, a ausência da história e o oferecimento de um objeto de conhecimento que se apresenta ideologicamente como um discurso científico, manipulado inteiramente pela razão. Pelo argumento exposto é que rechaçamos o valor metodológico de uma teoria geral do direito. Uma teoria crítica das racionalizações ideológicas realiza sempre análises fragmentárias e transformáveis. Toda teoria crítica é provisória, conjuntural e dependente do estado de desenvolvimento da pesquisa que aceita seus limites e que responde a uma lógica das contradições. É assim que se constrói um conhecimento científico, distanciado das ideologias".

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Em relação à crítica à racionalidade é interessante perguntar qual alternativa que se tem à razão, seria o poder? Se assim, estamos em um momento evolutivo de superação da crise, pois a racionalidade tem sido paulatinamente substituída pelo poder, pois o que é o movimento em favor das súmulas vinculantes? Como pode haver uma crítica que não seja racional e sem ideologia? Assim como os cães perseguem a própria cauda, a crítica provisória e conjuntural, que não se mantém em um lugar próprio, não consegue libertar-se do papel de contra-discurso, acompanhando o fluxo natural dos discursos de manutenção das ideologias vigentes, como luz e sombra, sem criar um espaço diferenciado para uma nova forma de atuação.


CAPÍTULO 4

Hermenêutica e argumentação

Kaufmann, ao comentar a impossibilidade de um acordo entre positivismo e naturalismo jurídico, propõe uma terceira via: "Deben nombrarse en este esfuerzo ante todo la hermenéutica jurídica y la teoría de la argumentación, y seguramente no es casualidad que justamente ahora, en esta determinada situación filosófico-jurídica, se perfile un acercamiento conciliatorio de las viejas hermanas enemigas, la analítica y la hermenéutica. Aquí podría iniciar-se tal "tercer camino". Seguindo o mesmo autor, vemos o risco da subjetividade que ocorre na interpretação da lei deixada a si própria:

"El derecho es más bien "producto" de un proceso de desarrollo de sentido hermenéutico y de realización de sentido. Por consiguiente no puede haber absolutamente ninguna "corrección objetiva" del derecho fuera del proceso de aplicación jurídica hermenéutica del derecho. Un juez que cree que recibe sus criterios de decisión sólo de la ley ("sólo sometido a la ley"), sucumbe a un error fatal, pues (inconscientemente) permanece dependiente de sí mismo".

A prática jurídica através dos tempos e, portanto, através das frustrações nas tentativas de adequar o Direito a um paradigma hermenêutico específico, seja literal, histórico ou outro, abriu um espaço, na consciência dos juristas, para a aceitação e investigação da complexidade dos processos de interpretação. A hermenêutica jurídica, hoje, já não aceita mais aquela velha divisão simplista entre positivismo e naturalismo.

Segundo Bergel,

"O raciocínio jurídico não é nem uma demonstração matemática nem simples retórica. É feito de controvérsias, de dialética no sentido aristotélico do termo, mas também recorre à lógica formal. Inspira-se ao mesmo tempo em princípios abstratos e em realidades concretas, com um vaivém constante do direito aos fatos. Por conseguinte, deve-se combinar a abordagem puramente substancial do direito e suas expressões formais. O pensamento jurídico conduz geralmente a equilíbrios ou escolhas entre imperativos contrários dos quais uma das resultantes é a solução. As regras ou os princípios podem nele acumular-se esquematicamente, excluir-se ou conciliar-se. É necessário, para a apreensão e para a aplicação do direito, estudar pela teoria geral os princípios, os conceitos, as instituições, os mecanismos etc. que comandam o pensamento jurídico e são por ele empregados".

O momento hermenêutico é um momento crítico; ali o intérprete defronta-se com toda a carência epistemológica do Direito, em meio a valores desconfigurados e textos com conteúdo impreciso, ele encontra na jurisprudência a sua tábua de salvação. Isso porque, a Teoria Geral e a Filosofia do Direito que estudou encontra-se separada da prática por um abismo quase que intransponível. Esse vácuo, que conseguiu transpor a barreira da virtualidade do discurso e tornou-se uma triste realidade, fundamenta-se, entre outras coisas, na dicotomia entre o "ser" e o "dever ser". Esse pensamento, tão neutro e bem-intencionado na sua origem acabou por transformar o Direito em dois mundos divididos: "a ciência perfeita que deveria existir mas nunca existirá" e o "mundo dos fatos com o qual os juristas devem lidar". A partir daí, com um grau enorme de exagero (sem más intenções), podemos dividir os juristas em dois grupos: os filósofos que pensam mas não fazem nada e os práticos que trabalham sem pensar.

Essa dicotomia se traduz, no processo hermenêutico, na dificuldade de integrar conceitos com valores. Mesmo já admitindo um modelo de sistema jurídico flexível que integra as valorações, ainda falamos sobre o direito positivo e o direito justo. Pois se, o aplicador da norma, ao interpretar sistematicamente a lei com os princípios de justiça, não estaria ele atribuindo ao fato concreto a justiça ideal? Em face disso, essa dicotomia parece-me mais com um fantasma desvinculado da realidade. Sendo assim, questionaria-se a necessidade de um direito alternativo, pois seria ele alternativo a quê?

A questão não está em admitir se os valores assumidos são universais ou históricos, mas, antes disso, em deixar claro quais, especificamente, os valores eleitos no processo argumentativo, de modo a impedir "que o lobo se disfarce de cordeiro", pois o senso comum já tem sua própria moral e julgará por ela. Isso requer uma Jurisprudência de Valorações operante, de modo que o discurso jurídico argumentativo sirva não para convencer o receptor, e sim, para esclarecer a posição do emissor. Essa seria a argumentação da honestidade.

Uma Jurisprudência de Valorações requer uma axiologia jurídica aplicável, onde os valores possam ser identificados dentro do discurso argumentativo, mesmo que embutidos em princípios e pressupostos. Isso, evidentemente, pressupõe uma metodologia de exame da retórica, método esse que ainda está por ser construído, tendo em vista que os tratados axiológicos tratam os valores sob o ponto de vista filosófico-ontológico, ou seja, descrevem o seu sentido e significado, o que se atém ao plano teórico.

Canaris apresenta a necessidade de uma verificação racional de valores, porém seu sistema aberto às valorações limita a entrada dos mesmos somente através dos princípios de Direito. No entanto, como Perelman bem demonstra em seus estudos sobre a retórica, as valorações não se restringem apenas às normas, e sim, permeiam todo o discurso jurídico. O trabalho de Perelman, bem como todo o estudo da argumentação, ou melhor, como toda a técnica, pode servir como uma "faca de dois gumes", pois o conhecimento da inserção dos valores no discurso pode servir tanto para explicitá-los como para dissimulá-los ainda mais. Isso indica que uma metodologia que envolve valores deve calcar-se em pressupostos éticos contra a manipulação através do discurso. É evidente que isso é mais fácil para os profissionais mais comprometidos com a justiça e a eqüidade dos casos concretos, mas o próprio advogado, comprometido com objetivos específicos, pode se beneficiar com uma retórica clara e honesta, cujo significado de verdade certamente terá peso no processo de convencimento.

Nesse contexto, a lógica é um instrumento muito útil no controle da honestidade da retórica, pois, normalmente, os embustes, essenciais à manipulação, encontram-se nas falácias ocultas. A criação de uma cultura, em meio aos juristas, de um pensamento crítico e análise lógica apurada, dificultaria o mascaramento de decisões políticas com argumentos jurídicos, o que obrigaria o jurista de má-fé a desenvolver profunda habilidade e inteligência na manipulação de argumentos sob pena de serem evidenciados seus verdadeiros pressupostos ideológicos em divergência com os argumentos e motivos apresentados. Por isso, pode-se dizer que a inteligência é companheira da ética, sendo que o uso da técnica com finalidades dissimuladas só persiste enquanto dura a incapacidade crítica do receptor da informação.

É evidente que os métodos de análise de discurso têm uma série de problemas que devem ser enfrentados, mas não foi por falta de problemas que Albert Einstein, por exemplo, apresentou sua Teoria da Relatividade.

Os tribunais superiores, com sua função de homogeneizar a jurisprudência, ocupam um lugar epistemológico que seria o de uma racionalidade teórica e hermenêutica. À medida que diminui a produção científica de integração e compreensão dos sistemas normativos aumenta a necessidade do arbitramento, em questões jurídicas, pelas instâncias superiores do Judiciário. Dessa forma o argumento da razão é substituído pelo argumento do poder. Isso é claramente percebível, inclusive em meios acadêmicos, em discussões jurídicas que terminam da seguinte forma: essa questão resolve-se assim, pois assim entende o Tribunal X. Esse problema agravar-se-á mais ainda com a aplicação das súmulas vinculantes, o que diminuirá o uso da racionalidade inclusive nas instâncias inferiores.

A despeito das críticas que envolvem o uso do poder na racionalidade, não se pode dizer que, mutatis mutandis, a situação é essencialmente a mesma no argumento da razão e no argumento do poder. Isso porque, a não ser que a retórica dos tribunais superiores seja de honestidade e coerência inquestionáveis, é evidente que a descentralização da jurisdição de tribunais especiais para o grande número de juízes de 2ª instância distribuídos pelo país afora, dificultaria muito o controle e pressão políticos. Isso nos faz indagar até que ponto a Constituição e o estado democrático de Direito não seriam melhor resguardados nessa forma descentralizada. A razão pode ter poder, assim como o poder pode (somente pode) ter razão. Logo, cabe ao Judiciário escolher a sua tônica, na forma em que entende a sua função na tripartição dos poderes.

Por mais pacífico que seja o entendimento de que o intérprete "cria a norma", é temerário não estabelecer as diferenças ontológicas entre a hermenêutica da razão e a "hermenêutica legislativa". O discurso que invoca uma pretensa igualdade entre ambas pode até justificar-se, parcialmente, com a crise judiciária, no entanto, ele a retroalimenta, pois torna o jurista cada vez menos independente.

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Sobre a autora
Cristiane Szynwelski

professora em Brasília DF

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SZYNWELSKI, Cristiane. Teoria Geral do Direito e o fato jurídico processual.: Uma proposta preliminar. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 224, 17 fev. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4837. Acesso em: 19 abr. 2024.

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