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Saddan: tribunal internacional ou iraquiano

20/02/2004 às 00:00
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Chegou ao fim a incessante procura pelo antigo ditador Saddam Hussein, este teria sido encontrado em uma câmara subterrânea na cidade de Abduar, a cerca de 30 km ao sul de Tikrit, sua cidade natal.

Ocorre que atualmente são suscitadas dúvidas sobre o destino de Saddan, deveria o mesmo ser julgado por um Tribunal Internacional ou Iraquiano?

As opiniões são variadas, George W. Bush manifesta-se no sentido de que um Tribunal Iraquiano julgue Saddam seguindo as normas judiciais internacionais: "Tenho minhas opiniões sobre a forma com a qual Saddam deve ser tratado, mas não sou um cidadão iraquiano. Os habitantes deste país tomarão a decisão", afirma também que o ditador mereceria a "pena máxima", em outras palavras a pena de morte.

Já os principais aliados dos Estados Unidos no Iraque, principalmente europeus (Reino Unido, Espanha, Itália), se opõem energicamente à pena de morte.

O vice-ministro das Relações Exteriores russo, Yuri Fedotov afirmou que "Julgar o regime deposto, julgar seus líderes, é um assunto interno do povo iraquiano. Só o povo iraquiano pode decidir o destino de seus ex-dirigentes".

Raghad, a filha mais velha do ex-presidente iraquiano Saddam Hussein declarou à emissora de TV Al-Arabiya que o líder deposto não deveria ser julgado pelo conselho que governa o Iraque, "instituído pelos ocupantes".

Vejamos o que a Convenção de Genebra expõe sobre o caso em tela.

Esta Convenção, da qual os Estados Unidos fazem parte, foi assinada em 1949 e passou a vigorar no ano seguinte, sendo que nos últimos 50 anos, foi reformulada várias vezes e regula, entre outras coisas, o tratamento que deve ser dado aos "prisioneiros de guerra".

A Cruz Vermelha Internacional é a organização que verifica se as regras da convenção estão sendo cumpridas por países que prendem combatentes durante um conflito.

O prisioneiro de guerra não é considerado um criminoso, mas um soldado inimigo capturado em combate, não sendo obrigado a fornecer informações ao país que o capturou. A convenção também prevê que os prisioneiros de guerra tenham seus direitos humanos respeitados.

Entretanto, seria Saddan um prisioneiro de guerra?

Acredita-se que sim, em virtude do que expressa o art. 44, I, do Protocolo I da Convenção de Genebra: "Qualquer combatente, nos termos do artigo 43.º, que cair em poder de uma Parte adversa, é prisioneiro de guerra". O único requisito é que o prisioneiro deveria integrar as Forças Armadas de um Estado de Direito ou uma milícia organizada, conforme o art. 43 do mesmo protocolo, o que ocorre no caso em tela.

Caso paire dúvidas acerca status legal do prisioneiro Saddam Hussein, a mesma deve ser apurada por "tribunal competente", conforme afirma o art. 5º da Convenção:

"Se existirem dúvidas na inclusão em qualquer das categorias do artigo 4.º de pessoas que tenham cometido atos de beligerância e que caírem nas mãos do inimigo, estas pessoas beneficiarão da proteção da presente Convenção, aguardando que o seu estatuto seja fixado por um tribunal competente."

Destarte, tendo Saddam o status de prisioneiro, pode o mesmo ser acusado de crimes de guerra. Ele teria de ser julgado pelo mesmo tribunal disponível para os militares do país que o capturou, e não por fóruns como as comissões especiais militares.

Reza o artigo 66 da Convenção de Genebra:

"A Potência ocupante poderá, em caso de infração das disposições penais por ela promulgadas em virtude do segundo parágrafo do artigo 64.º, relegar os culpados aos seus tribunais militares, não políticos e regularmente constituídos, com a condição de os mesmos tribunais estarem situados no território ocupado. Os tribunais de recurso funcionarão de preferência no país ocupado."

Desta forma, o Tribunal deveria estar localizado de preferência no país ocupado, no caso Iraque, entretanto não poderia ter o cunho político e sim militar.

É fato inconteste que os Estados Unidos já violaram diversas vezes a referida Convenção, pois como anteriormente afirmado, os prisioneiros de guerra não são obrigados a fornecer informações ao país que os capturou e podem ter acesso constante a representantes da Cruz Vermelha. Este direito impediria os Estados Unidos, por exemplo, de interrogar os combatentes presos em Guantánamo.

Ademais, como prisioneiros de guerra, tanto os combatentes da Al-Qaeda, Taleban, ou mesmo o próprio Saddan teriam de ficar em instalações com a mesma qualidade das prisões para soldados americanos. As gaiolas de concreto e grades de Guantánamo seriam então consideradas ilegais.

Importante ressaltar, que o objetivo deste artigo não é de forma alguma defender as ações de terroristas e regimes ditatoriais, mas sim assegurar que a Convenção de Genebra, importante instrumento do Direito Internacional, seja respeitado.

Outro fato que devemos analisar é a exposição de um prisioneiro de guerra a filmagens humilhantes.

Sabe-se que as filmagens do interrogatório do soldado especialista americano Patrick Miller, feito prisioneiro do Iraque, devem ser vistas como um espetáculo público e humilhante, o qual consiste em clara violação da Convenção de Genebra.

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Da mesma forma deve ser vista como violação da Convenção de Genebra as transmissões feitas pelas tevês americanas do rapaz chamado John Walker, o qual estava amarrado, ferido, sujo e assustado, respondendo perguntas pessoais feitas por seus inimigos. Ele também era americano. Ocorre que estava do outro lado – no caso, o Taleban, na campanha do Afeganistão. Neste caso, a Convenção não foi sequer mencionada, o que ocorre, será que existem dois pesos e duas medidas.

Portanto, qualquer que seja o prisioneiro de guerra, independente de seu lado, deve ter seus direitos condizentes com a dignidade humana respeitados.

Assim, à luz da Convenção de Genebra, deveria o ex-presidente Saddan Hussein ser julgado, face sua condição de prisioneiro de guerra, por um tribunal militar (não político) regularmente constituído pelas forças de ocupação, situado no território ocupado, no caso o Iraque.

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Sobre o autor
Mateus da Fonseca Sória

advogado em Porto Alegre (RS)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SÓRIA, Mateus Fonseca. Saddan: tribunal internacional ou iraquiano. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 227, 20 fev. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4848. Acesso em: 19 abr. 2024.

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