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Ministério Público:

aspectos históricos

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"Depositário de tradições e imagem de tendências, o Promotor Público é o precursor de uma época em que, na sociedade, só se ouvirá uma voz legítima, a dela própria, como resumo puro e real das notas esparsas."

Roberto Lyra [1]


1. Introdução.

Este artigo almeja realizar uma análise da evolução histórica da Instituição Ministério Público, especialmente o Ministério Público brasileiro. Partir-se-á (e não poderia ser diferente) da premissa de que não há como se empreender uma escorreita análise de nosso atual Ministério Público desvinculando-o da História, e de sua própria história.

Ab initio, faz-se mister ressalvar que estas são apenas tentativas acadêmicas de se realizar uma análise histórica e evolutiva do Ministério Público. Não é algo preciso, exato, que não possa conter algum equívoco; o que nos obriga, de antemão, a solicitar as devidas desculpas aos que encontrarem pequenas incorreções nestes breves traços sobre a história desta Instituição no mundo e no Brasil. Certo é que tentaremos evitá-las, para a prevalência da verdade.

Os pesquisadores e historiadores do Direito, quase que unanimemente, não indicam para a existência de qualquer paradigma passado desta instituição que tivesse as características e premissas que ela detém na atualidade, mormente em jurisdição brasileira. Ao percorrer a escala dos tempos, o leitor perceberá que o Ministério Público mudou sobremaneira o seu papel social, tornando-se difícil o estabelecimento de sua origem, de forma cirurgicamente precisa.

Por este motivo, muito mais do que buscar tal origem em institutos similares, num passado distante, de poucas recordações e rara documentação, o que vamos visar, neste trabalho, é identificar alguns cargos ou funções públicas com atribuições similares àquelas que hoje são destinadas aos representantes do Ministério Público, de modo a facilitar o entendimento de sua evolução, até chegarmos à sua atualidade.

Trilharemos, por conseguinte, os passos que nos levarão à redescoberta da democracia, propiciada por nossa Constituição Cidadã – contrato social tratado com desprezo (demonstrador da ignorância e da falta de conhecimento e de cidadania que imperam maciçamente) por expressiva parcela da sociedade a ela submetida; que deu à Instituição em comento um tratamento constitucional necessariamente revolucionário, para o bem de todos.


2. A Evolução Mundial do Ministério Público.

2.1. O Ministério Público no Egito, Grécia e Roma antigos.

Para alguns autores, a instituição precursora do Ministério Público remonta à civilização egípcia, onde, há mais de quatro milênios, representada pelos magiai (procurador do rei), existia uma classe de agentes públicos com atribuições no domínio da repressão penal, com liberdade para castigar pessoas rebeldes, reprimir os mentirosos e os violentos, protegendo os cidadãos pacíficos, formalizando acusações, utilizando-se das normas existentes e participando das diligências probatórias necessárias à busca da verdade. Atuavam também na defesa de algumas classes de pessoas mais frágeis, como órfãos e viúvas. Os magiai eram tratados como verdadeiros olhos e língua do Rei, do Faraó.

Em campos da Grécia Antiga, no século VIII a.C., existiram os tesmotetas. Eram os tempos da oligarquia grega, onde o governo passou a ser exercido por um Arcontado, conselho no qual seis de seus membros exerciam as funções de fiscais da execução das leis atenienses. Estes seis, retirados dentre os arcontes, eram os tesmotetas. Havia também, por volta do século VII a.C., a instituição dos éforos, cinco magistrados anualmente eleitos, na cidade grega de Esparta, que formavam um Tribunal idealizado para controlar os atos dos dois reis espartanos e dos gerontes (câmara com 28 membros, escolhidos entre cidadãos espartanos com mais de 60 anos). Todos estes, basicamente, se responsabilizavam pela execução da legislação e pelo exercício da acusação penal, o que ensejou a interpretação de que poderiam ser antepassados do Ministério Público.

Entretanto, esta acusação não era tratada com a técnica e a seriedade que na atualidade se exige. Motivos religiosos, morais e filosóficos davam causa às mesmas. Na maioria das vezes, quando não abrangida pelos interesses do incipiente Estado grego, entregava-se a acusação criminal aos familiares da vítima. Roberto Lyra, o Príncipe dos Promotores Públicos Brasileiros, descreve suas leituras dos fatos: "Ao povo, quando não ao ofendido – cuilibet ex populo – competia a iniciativa do procedimento penal e os acusadores eram um Cesar, um Cícero, um Hortêncio, um Catão, que, movidos pelas paixões ou pelos interesses, abriam caminho à sagração popular em torneios de eloqüência facciosa. A técnica da função confundia-se com a arte de conquistar prosélitos pela palavra. Por sua vez, os oradores atenienses, constituídos em "magistratura voluntária", conferiam ao debate judiciário o mesmo caráter de pugilato intelectual, com o trágico poder de arrastar os acusados à proscrição e ao extermínio". [2]

Em complemento, excelente ponderação histórica nos traz Sauwen Filho: "Cumpre ainda esclarecer que a democracia grega não foi criada para levar o povo ao poder, como pode sugerir a etimologia da palavra, mas para evitar que surgisse uma nova tirania, (...) Por isso os gregos inventaram o ostracismo, instituição marcantemente arbitrária que permitia à sociedade afastar de seu convívio, enviando para fora do país, todo aquele que por sua popularidade e carisma pudesse vir a se tornar um ditador. (...) Em tal contexto político, seria realmente difícil surgir uma instituição com as características do Ministério Público". [3]

Na Roma Antiga, os censores, os questores, o fisci advocatum, o defensor civitatis, os procuratores caesaris, o praetor fiscalis, os irenarcha, os praefectus urbis, os praesides os curiosi, os frumentarii e os stationarii, também são indicados como precursores do Ministério Público. Os seis últimos eram responsáveis pela manutenção da ordem pública. Eram uma espécie de policiais romanos, não se subsumindo corretamente na atual configuração ministerial. O maior posto era o do irenarcha, oficial superior aos demais. O curiosi era uma espécie de ouvidor itinerante, que trazia ao imperador as reclamações de abusos ocorridos nas províncias. Os stationarii realizavam a mesma função, de forma fixa. Os censores eram observadores da conduta moral dos romanos, em busca de algo que fosse passível de repreensões. Os questores investigavam crimes de homicídio e recebiam e guardavam multas em nome do Império Romano. Eram muito valorizados e respeitados. Por sua vez, ao defensor civitatis, escolhido entre seus pares, cabia defender as classes inferiores de possíveis abusos de autoridades. Enfim, os fisci advocatum, os procuratores caesaris e o praetor fiscalis, eram funcionários que geriam os bens e receitas imperiais. Confiscavam o patrimônio de romanos condenados, possuindo competência para a persecução criminal em nome do Império Romano.

José Narciso da Cunha Rodrigues, ex-Procurador Geral de Portugal nos traz sua compreensão: "São cinco as instituições do direito romano em que a generalidade dos autores vê traços de identidade com o Ministério Público: os censores, vigilantes gerais da moralidade romana; os defensores das cidades, criados para denunciar ao imperador a conduta dos funcionários; os irenarcas, oficiais de polícia; os presidentes das questões perpétuas; e os procuradores dos cesares, instituídos pelo imperador para gerir os bens dominiais". [4]

Entretanto, a maioria destes, como os procuratores caesaris, atuavam somente na área fiscal, defendendo o erário imperial, função que hoje não mais se destina ao Ministério Público; enquanto outros reprimiam os delinqüentes, conquanto fosse de uma forma muito incipiente, posto que geralmente cabia ao povo romano a iniciativa do processo penal, devido à sua aguçada noção de cidadania.

2.2. O Ministério Público na Idade Média.

Já na Idade Média, ligados aos visigodos apontam-se como iniciadores do Ministério Público germânico os saions, funcionários de atuação marcantemente fiscal, mas que também tinham atribuições na defesa de incapazes e de órfãos. João Monteiro, em posição favorável aos Saions, assim os descreve: "Ao lado das funções fiscais propriamente ditas, sentinelas do tesouro, verdadeiros carrascos dos devedores da fazenda pública, tinham os Saions franca e permanente ingerência em longa série de atos da mais rigorosa fisionomia civil. Na lição de Scialoja eram inspetores, diretores e executores de todas as sentenças dos tribunais; presidiam juntos à abertura dos juízos; constrangiam os contumazes; punham-se francamente ao lado dos que tinham injustiças a reparar ou injúria a vingar; tutelavam o interesse da lei e o de equidade; faziam restituir bens ao espoliados, indenizar os fiadores dos devedores ingratos, ressarcir viúvas pobres e pupilos enganados por tutores desleais." [5]

Também na Alemanha houve a criação do Germeiner Anklager, que, em se omitindo a vítima no exercício da ação penal, detinha a função de acusador.

Existiram, por sua vez, os misci dominici, do Império Carolíngio. Eram inspetores ambulantes que acompanhavam a atuação dos funcionários de Carlos Magno, recebendo queixas e reclamações dos súditos do soberano, numa função parecida com a moderna ouvidoria, com a finalidade última de se coibir práticas abusivas. Além disso, tinham outras funções, como o controle da paz no interior do país e a regulamentação do direito canônico. Expressamente eram incumbidos de coibir o falso testemunho, o perjúrio, os crimes de moeda falsa, e os ladrões, em geral. Julgavam pedidos de auxílio por parte de pessoas desamparadas (viúvas, deficientes etc.), e serviam como curadores de órfãos e incapazes.

Doutro lado, outrora foram aludidos como precursores os "juízes relatores e instrutores" alemães (os Nachgänger Nachrichter); os Konofogdar (Balios reais), da Suécia, que participavam da instrução preparatória; e os Senescais, da época dos reis merovíngios. Todos estes, em verdade, eram serviçais dos senhores feudais, não desempenhando um ministério público, apesar do poder que seus defendidos à época exerciam.

Autores italianos, como Antonio Pertile (Storia del diritto italiano, dalla caduta dell’Impero romano allá codificazione) e Vincenzo Mancini (Trattato di diritto processuale penale), afirmam que a Instituição teria sua origem na península itálica. Mencionam eles as cidades de Nápoles, Veneza e Florença, onde, no século XIII, existiram, respectivamente, os avvocato della gran corte, os avvogadori di comune, e os conservatori della legge. Porém, como o regime político destas cidades era por demais oligárquico e excludente, apesar de aparentemente democrático para sua época, não deve ser creditada às mesmas a primazia de serem as precursoras da Instituição. É como Sauwen Filho nos ensina mais uma vez: "...num quadro político como o da Itália medieval...havia pouca possibilidade de vicejar órgãos com as características próprias e o caráter democrático do Ministério Público." [6]

E, finalmente, há quem diga que o Ministério Público teria surgido entre 1269 e 1270, em Portugal, com a edição do Estatuto de São Luís, pelo rei Luís IX [7]. Cabral Netto informa ainda que, num diploma do Rei D. Afonso III, de 14 de janeiro de 1289, aparece o Procurador do Rei com o cargo permanente junto ao Monarca, tendo o privilégio de chamar à Casa do Rei (Tribunal de Relação) as pessoas que com ele tinham pleitos. Isto em Portugal, onde, já com D. João I (1385/1422), no Regulamento da Casa de Suplicação, definem-se as qualidades, as aptidões e os deveres dos procuradores do Rei nas causas penais, e aparecem as figuras dos procuradores de justiça da Casa de Suplicação. [8]

2.3. Ministério Público, o início de sua formação como Instituição.

Entretanto, saliente-se que, inegavelmente, a França, desde os enciclopedistas, vem causando inúmeras inovações e transformações no Direito, com a criação de institutos que até hoje são bastante utilizados e difundidos pelos operadores jurídicos do mundo ocidental, mormente naqueles países de raiz jurídica romano-germânica. Com a instituição do Ministério Público não foi diferente.

Assim é que, essencialmente, o Ministério Público, nos moldes independentes que é hoje, vem a ser de origem nitidamente francesa. A Instituição, por conseguinte, aparece ao mundo do Direito somente no século XIII, na França. É na "Ordonnance" de Filipe, o Belo, datada de 25 de março de 1302, que o Ministério Público vai ser reconhecido formalmente como Instituição, na figura dos procuradores do rei (les gens du roi), corpo de funcionários incumbidos da tutela dos interesses do Estado, diga-se, do Rei, que era o Estado.

Eram eles delegados do Rei, incumbidos de denunciar e perseguir os criminosos. Suas presenças não reduziram os poderes do juiz inquisidor e sua correlata persecução criminal. Seguia este facultado a iniciar o processo penal. Inicialmente, estes procuradores do Rei serviram de meios pelos quais o Império imiscuía-se nos tribunais senhoriais, em defesa de seus interesses, e em detrimento do poder do senhorio feudal. Um dos maiores exemplos dos monarcas absolutistas, Filipe, o Belo, não detinha o poder de estar em todos os lugares, e como ele almejava o controle de toda a Jurisdição francesa, acabando com o poder dos senhores feudais, necessitava de representantes de sua confiança para velar pelos seus interesses perante a magistratura. Por este motivo, institucionalizou seus procuradores.

Após a Coroa francesa consagrar a Monarquia absoluta, inclusive com o monopólio da jurisdição e com o firmamento do Poder Moderador (lá chamado de justice retenue), os procuradores do Rei continuaram defendendo os interesses estatais, além de exercer a acusação criminal. Como fiscal da lei (no que interessasse ao Estado-Rei e não à sociedade) ou como acusador público, o procurador desempenhava, sem dúvida alguma, nesse período turbulento da história francesa, o papel de longa manus do soberano, dado o caráter extremamente absolutista do governo.

Reverberam, felizmente, as vozes daqueles que se insurgiram contra esta má destinação dada à Instituição desde sua essência até tempos não muito remotos. Em sua origem, longa manus do imperador; em sua evolução histórica, longa manus do Chefe do Poder Executivo; hoje e amanhã, cobrar-se-á sua inarredável afirmação como longa manus da coletividade, da sociedade. Interessantíssima contribuição se vê em notas [9] da obra de Sauwen Filho, que, de tão indispensáveis como registros históricos, valem a minudente leitura do leitor.

A figura do procurador do rei seria regulamentada, também, em outras ordonnances que se seguiriam à famosa Ordonnance de 1302, ainda na fase da Monarquia Absoluta, como as de Felipe IV de Valois (28-12-1335), de Carlos VIII (1493) e a de Luís XII (1498). Mas foi na Ordonnance Criminelle, editada em 10 de agosto de 1670, pelo rei Luís XIV, considerada a grande codificação do processo penal da monarquia francesa, que apresentou-se ampliado o rol de atuação do Ministério Público como acusador. Abriu ela as portas para o delineio dos contornos independentes e autônomos, que seriam definitivamente verificados com a legislação posterior à Revolução Francesa.

Ressalte-se que, no século XV, o Ministério Público abarcava todas as jurisdições senhoriais ou reais, conquanto eventualmente coubesse ao particular avocar, iniciar ou dirigir a acusação. Desta forma, o Ministério Público (Procurador do Rei) e seus órgãos limitavam-se a controlar o processo e a requerer a pena, quando não impedidos pelo próprio interessado. Neste diapasão, a Ordenança de 1670 vem ampliar o seu campo de trabalho, lançando as bases do processo público, acusatório, iniciando a grande virada na evolução do Ministério Público, para um incremento gradativo de sua autonomia institucional, na busca da dignidade e importância que atualmente lhe são reservadas pelas organizações judiciárias de todo o mundo, especialmente em terras brasileiras.

Com o fortalecimento da instituição Ministério Público, arrimado nas sucessivas Ordonnances, os reis franceses queriam demonstrar a independência que seus procuradores (procureurs du rei) tinham em relação aos juízes, moldando-se numa magistratura totalmente diversa, mas paralela àquela que pertine aos julgadores. Desta forma, os procuradores sempre se dirigiam aos juízes do mesmo assoalho (PARQUET, em francês) onde estes se encontravam sentados. Contudo, sempre o faziam de pé. Daí também originaram-se as expressões Magistrature Debout (Magistratura de Pé), até hoje utilizada para simbolizar o Ministério Público; em contraponto aos juízes, a Magistratura Assissé ou du Siège (Magistratura Sentada).

Em 1789, com a Queda da Bastilha, a burguesia revolucionária assume o poder na França, instalando a Assembléia Constituinte e procedendo a uma vastíssima reforma política e constitucional com caráter nitidamente liberal e descentralizador. A legislação que cimentou as inovações institucionais não poderia esquecer-se do Ministério Público. Vem ela, então, a defini-lo como agente do Poder Executivo, competente a fiscalizar o cumprimento das leis e dos julgados. A nova ordem constitucional garantia sua independência em relação ao Legislativo e ao Judiciário.

A acusação criminal foi concebida primeiramente como sendo desvinculada da atuação do Parquet, estando destinada a um agente eleito pelo povo, como funciona atualmente nos Estados Unidos. Posteriormente, o Ministério Público reabsorveu esta função de acusador público junto com aqueloutras que tradicionalmente lhe cabiam.

Após esta ebulição revolucionária, exsurgem as leis de 1791, a lei de 7º Pluvioso ano IX e o "Cod d’Instruction Criminelle", de 20 de abril de 1810, organizando com maior nitidez o Ministério Público francês, e consolidando definitivamente estas suas novas atribuições.


3. A Evolução do Ministério Público em Terras Brasileiras.

3.1. Período Histórico do Brasil-Colônia.

Inicialmente, cabe afirmar que, para analisar a evolução do Ministério Público em terras brasileiras não poderíamos, de forma alguma, olvidar da evolução da Instituição em Portugal, porquanto sua importância basilar, decorrente de emanações legislativas que para cá irradiavam sua eficácia na época colonial, assim nos obriga.

Portugal passou por uma luta de classes muito parecida com a francesa, presenciando a luta da realeza pelo monopólio da jurisdição. Através da Lei de 19 de Março de 1317, sob o reinado de D. Dinis, a Coroa portuguesa interveio nos tribunais senhoriais, fortalecendo sensivelmente o poder real, assumindo este a função de julgar as demandas em última instância. O monopólio total da função jurisdicional pela Coroa concretizaria-se através das ordenações reais (as Ordenações Afonsinas, de 1446-1447, as Ordenações Manuelinas, de 1521, e as Ordenações Filipinas, de 1603).

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A primeira referência explícita em Portugal à figura do Promotor de Justiça vai aparecer nas Ordenações Manuelinas, incumbindo a esse órgão, juntamente com os Procuradores dos Feitos do Rei, a função de fiscal do cumprimento da lei e de sua execução. Segundo estas, o Promotor deveria ser alguém "letrado e bem entendido para saber espertar e alegar as causas e razões, que para lume e clareza da justiça e para inteira conservação dela convém".

Antes das Ordenações Manuelinas, segundo Antônio Magalhães Gomes Filho "tratando-se de crimes públicos, a formação da acusação competia aos escrivães dos juízos criminais, na falta de acusadores particulares; essa função, que era meramente supletiva da inércia do particular, transmitiu-se então aos promotores públicos" (Ministério Público e Acusação Penal no Sistema Brasileiro. Revista Latinoamericana de Política Criminal, ano 2, n°. 2, Penal y Estado, p. 139). [10]

Nas Ordenações Filipinas, ao lado do Promotor de Justiça da Casa da Suplicação, estavam previstas outras figuras – a do Procurador dos Feitos da Coroa, a do Procurador dos Feitos da Fazenda e a do Solicitador da Justiça da Casa da Suplicação – com funções que posteriormente iriam ser exercidas pelo Ministério Público. O Promotor de Justiça da Casa da Suplicação, indicado pelo Rei, tinha as funções de fiscalizar o cumprimento da lei e de formular a acusação criminal nos processos perante a Casa de Suplicação.

É assim que, no Brasil-Colônia, o Ministério Público vai buscar suas raízes, como supradito, no Direito Lusitano ora vigente. Nas fases em que era colônia portuguesa e mesmo durante a fase inicial do Império, as instituições jurídico-políticas brasileiras desenvolveriam-se sob a égide do direito português, compreensão que se estende ao Ministério Público.

Na época colonial, até 1609, apenas funcionava no Brasil a justiça de primeira instância e nesta ainda não existia órgão do Ministério Público. Os processos criminais eram iniciados pelo particular, pelo ofendido ou "ex-officio", pelo próprio Juiz, como no processo inquisitório. Os processos criminais patrocinavam a disponibilidade da ação penal. E o recurso cabível era interposto para a Relação de Lisboa.

Em 7 de março de 1609, cria-se o Tribunal da Relação da Bahia, onde foi definida pela primeira vez a figura do Promotor de Justiça que, juntamente com o Procurador dos Feitos da Coroa, Fazenda e Fisco, integrava o Tribunal. Este tribunal era composto por dez desembargadores. No regimento interno deste Tribunal o papel do Ministério Público era assim definido:

"Art. 54 - O Procurador dos Feitos da Coroa e Fazenda deve ser muito diligente, e saber particularmente de todas as cousas que tocarem à Coroa e Fazenda, para requerer nelas tudo o que fizer a bem de minha justiça; para o que será sempre presente a todas as audiências que fizer dos feitos da coroa e fazenda, por minhas Ordenações e extravagantes.

Art. 55 - Servirá outrossim o dito Procurador da Coroa e dos feitos da Fazenda de Procurador do fisco e de Promotor de Justiça; e usará em todo o regimento, que por minhas Ordenações é dado ao Promotor de Justiça da Casa da Suplicação e ao Procurador do fisco."

Em 1751 cria-se outro Tribunal de Relação, na Cidade do Rio de Janeiro, mantendo esta mesma estrutura organizacional do Tribunal de Relação baiano. Em 1763, diante do imenso avanço econômico propiciado pela mineração no Sudeste do País, o Marquês do Pombal transfere a sede da Colônia de Salvador para o Rio de Janeiro. Desta forma, o Tribunal de Relação do Rio de Janeiro viria a se transformar em Casa de Suplicação do Brasil em 1808, onde lhe cabia julgar recursos de decisões do Tribunal de Relação da Bahia. Neste novo tribunal o cargo de Promotor de Justiça e o cargo de Procurador dos Feitos da Coroa e Fazenda cindiram-se e passaram a ser ocupados por dois titulares.

Era o primeiro passo para a separação total das funções da Procuradoria Jurídica do Império/República (que defende o Estado e o Fisco) e o Ministério Público em suas feições atuais, somente tornada definitiva na Constituição Federal de 1988.

3.2. Período Histórico após a Constituição de 1824

Embora, precariamente, a Lei de 18 de setembro de 1828 (que esmiuçava a competência do Supremo Tribunal de Justiça) determinasse o funcionamento de um Promotor de Justiça em cada uma das Relações, na Constituição de 25 de março de 1824 não havia nenhuma menção expressa ao Ministério Público. Apenas o art. 48 descrevia uma das funções do Procurador da Coroa: "Art. 48. No Juizo dos crimes, cuja accusação não pertence á Camara dos Deputados, accusará o Procurador da Corôa, e Soberania Nacional".

Com esta Carta, eram criados o Supremo Tribunal de Justiça e os Tribunais de Relação, nomeando-se, no interior destes, Desembargadores e Procuradores da Coroa, que na época eram tratados como chefes do Ministério Público. Os Promotores Públicos daquela época – grife-se –, quando não eram nomeados dentre os desembargadores de cada um dos tribunais, eram nomeados por critérios exclusivamente políticos, como foi o caso de Nabuco de Araújo, pai de Joaquim Nabuco, em relato feito por este em sua obra Um Estadista do Império – Nabuco de Araújo: "Logo ao sahir da Academia, Nabuco é nomeado para o logar saliente de Promotor Publico do Recife (abril de 1836). A nomeação devia-a elle aos seus ataques contra o partido Chimango, do qual principalmente sahiu a Praia, e aos serviços que prestara quando estudante, redigindo pequenos jornais de ocasião como o Aristarcho (1835/36), orando nos clubs e reuniões políticas [11]" (sic).

Somente com o Código de Processo Penal do Império, de 29 de novembro de 1832, foi dado tratamento sistemático ao Ministério Público. O Código de 1832 colocava o Promotor de Justiça como órgão defensor da sociedade, titular da ação penal pública. Conforme esclarece Costa Machado: "Dispunha o art. 36 (do estatuto criminal de 1832) que podiam ser promotores aquelas pessoas que pudessem ser jurados; dentre estes, preferencialmente, os que fossem instruídos em leis. Uma vez escolhidos, haviam de ser nomeados pelo governo na Corte ou pelo presidente das províncias. Já o artigo 37 afirmava pertencer ao promotor as seguintes atribuições: denunciar os crimes públicos, e policiais, o crime de redução à escravidão de pessoas livres, cárcere privado, homicídio ou tentativa, ferimentos com qualificações, roubos, calúnias, injúrias contra pessoas várias, bem como acusar os delinqüentes perante os jurados; solicitar a prisão e punição dos criminosos e promover a execução das sentenças e mandados judiciais (§ 2º); dar parte às autoridades competentes das negligências e prevaricações dos empregados na administração da Justiça (§ 3º). No artigo 38 previa-se a nomeação interina no caso de impedimento ou falta do promotor (...) Posteriormente, pelo art. 217 do Regulamento 120, de 31/01/1842 - passaram os promotores a servir enquanto conviesse ao serviço público, podendo ser demitidos "ad nutum" pelo Imperador ou pelos presidentes das províncias. O Decreto nº 4.824, de 22/11/1871, em seu artigo 1º, por sua vez, criou o cargo de "Adjunto do Promotor" para substituí-lo em suas faltas ou impedimentos." [12]

Naquela época, os membros do Ministério Público eram nomeados pelo Governo, na Corte, e pelo Presidente, nas Províncias, para um prazo de três anos, através de proposta tríplice das respectivas Câmaras Municipais.

Importante é frisar que será a partir desta época que se visualizará o caráter elitista que possuía a função do Ministério Público. Afinal, ser jurado não era como é hoje. Hodiernamente, para ser jurado, necessário é que, além de outros requisitos, o cidadão esteja no perfeito gozo de seus direitos políticos. Assim também era na época imperial. Contudo, pouquíssimos eram os que detinham direitos políticos naqueles tempos. Preconizando um regime de exclusão econômica e social, a CF de 1824, em seu art. 94, assim dizia sobre aqueles que podiam votar: "Art. 94. Podem ser Eleitores, e votar na eleição dos Deputados, Senadores, e Membros dos Conselhos de Provincia todos, os que podem votar na Assembléa Parochial. Exceptuam-se: I. Os que não tiverem de renda liquida annual duzentos mil réis por bens de raiz, industria, commercio, ou emprego. II. Os Libertos. III. Os criminosos pronunciados em queréla, ou devassa."

Esta pecha de elitista por muito tempo acompanharia a Instituição, demonstrando o desconhecimento das finalidades da mesma por parte dos jurisdicionados e por parte dos próprios membros ministeriais. Há alguns anos, após a redemocratização do país, e, por conseqüência, de suas instituições políticas, é que foi se esvaindo da memória do brasileiro este caráter elitista, ainda que de uma forma tímida. Neste sentido, colabora-nos Paulo Rangel: "O Código de Processo Criminal do Império, promulgado pela Regência Permanente Trina (Francisco de Lima e Silva, José da Costa Carvalho e João Bráulio Muniz), permitindo que pudessem ser jurados apenas os cidadãos que pudessem ser eleitores, sendo de reconhecido bom senso e probidade (art. 23 do CRCI) e, conseqüentemente, somente seriam jurados os que tivessem uma boa situação econômica, já que estes é que poderiam votar. Se a pessoa podia ser jurada, ela podia ser eleitora; se ela era eleitora, ela podia ser jurada e, conseqüentemente, essas pessoas é que podiam ser promotoras de justiça. Vejam que a elitização do cargo vem do Império, por isso a dificuldade de alguns promotores entenderem bem o papel do Ministério Público à luz da Constituição atual. Há uma certa distância entre alguns membros do Ministério Público e uma parcela determinante da sociedade, em especial a marginalizada pelo abismo social" [13].

Quanto às suas funções institucionais, o Aviso Imperial de 20/10/1836 incumbiria os promotores de novas atribuições, como visitar prisões uma vez por mês, dar andamento nos processos e diligenciar a soltura dos réus; por sua vez, o Aviso Imperial de 16/01/1838 estabelecia que os Promotores de Justiça eram os "fiscais da lei"; enquanto que o Aviso Imperial de 31/10/1859 instituiria o impedimento à advocacia pelos Promotores nas causas cíveis que pudessem vir a ser objeto de processo crime.

A Lei nº 261, de 03 de dezembro de 1841, reformadora do Código de Processo Criminal assim tratava dos promotores públicos:

"Art. 22 – Os Promotores Públicos serão nomeados e demitidos pelo Imperador, ou pelos Presidentes das províncias, preferindo sempre os Bacharéis formados, que forem idôneos, e servirão pelo tempo que convier. Na falta ou impedimento serão nomeados interinamente pelos Juízes de Direito.

Art. 23 – Haverá, pelo menos em cada Comarca um Promotor, que acompanhará o Juiz de Direito; quando, porém, as circunstâncias exigirem, poderão ser nomeados mais de um. (...)"

Com esta Lei, a forma de nomeação dos Promotores foi alterada, dispensando-se a proposta das Câmaras Municipais e exigindo-se outras condições de investidura, como as constantes do Decreto nº 120, de 31 de janeiro de 1843, que regulamentou a Lei em tela, podendo ele ser designado a exclusivo critério do Imperador ou do presidente da província, e suprimindo-se o mandato de promotor público.

Apesar disso, intrinsecamente, continuava o Promotor Público a ser tratado apenas como um mero funcionário da ordem administrativa, a serviço dos interesses do Império e não da Justiça. O Ministério Público não era uma Instituição solidificada como hoje o é. Como exemplo, basta trazer o fato de que a expressão "Ministério Público" só seria utilizada pela primeira vez no Decreto 5.618, de 2 de Maio de 1874.

Somente em 1864 haveria um sério empenho no sentido de aperfeiçoamento do Ministério Público. É neste ano que o supracitado Nabuco de Araújo, levando para o Ministério da Justiça sua experiência como advogado, juiz, e ministro, abriria um deveras importantíssimo debate sobre o Ministério Público. Apesar da autoridade de grande estadista que era e da manifestação favorável de Teixeira de Freitas, o projeto de Nabuco de Araújo, como outros anteriores, não teria andamento e não seria aprovado.

Através da Lei do Ventre Livre (Lei n.º 2.040 de 28 de setembro de 1871) competiria ao Promotor de Justiça a função de protetor do fraco e indefeso (posteriormente definido hipossuficiente), ao estabelecer que a ele cabia zelar para que os filhos livres de mulheres escravas fossem devidamente registrados [14]. Afinal, somente a partir desta data que os filhos dos escravos puderam ser tratados como pessoas, como sujeitos de direito (por mínimos que sejam); e não como coisas, objetos de direito.

3.3. Período Histórico após a Constituição de 1891

O Decreto n.º 848 de 11 de outubro de 1890, que criava e regulamentava a Justiça Federal, também tratava da estrutura do Ministério Público Federal. A estrutura da Primeira Instância da novel Justiça Federal era de uma Seção Judiciária em cada Estado da Federação e no Distrito Federal, onde exerciam a jurisdição um Juiz Federal, vitalício, denominado de Juiz de Seção e um Juiz Federal Substituto, que substituía aquele em seus impedimentos, colaborando em suas atividades judicantes, sendo de realce, ainda, a figura do Juiz "ad hoc", que atuava nas questões onde não podia, de forma alguma, funcionar o Juiz Seccional ou Substituto. Ao Presidente da República era permitido nomear livremente os juízes seccionais, substitutos e "ad hoc". Instituiu-se o Júri Federal.

De seu turno, a segunda instância da Justiça Federal era exercida pelo Supremo Tribunal Federal (extinto Supremo Tribunal de Justiça), composto, nesta época de sua criação, de quinze juízes vitalícios, também livremente nomeados pelo Presidente da República, após aprovação pelo Senado Federal. Tal estrutura foi mantida pela primeira Constituição Republicana de 1891.

Na Exposição de Motivos do referido Decreto 848/1890 assim constava:

"O Ministério Público, instituição necessária em toda a organização democrática e imposta pelas boas normas da justiça, está representado nas duas esferas da Justiça Federal. Depois do Procurador Geral da República vêm os Procuradores seccionais, isto é, um em cada Estado. Compete-lhe em geral velar pela execução das leis, decretos e regulamentos que devem ser aplicados pela Justiça Federal e promover a ação pública onde ela couber. A sua independência foi devidamente resguardada".

Observe-se que, a despeito das palavras da exposição de motivos, a estrutura funcional do Ministério Público não foi substancialmente alterada. Manteve-se, por exemplo, a cultura proveniente das Ordenações Filipinas, segundo a qual as funções do Ministério Público em superior instância eram exercidas por membro do Poder Judiciário. O Procurador Geral era indicado pelo Presidente da República. Estava entre as suas funções "cumprir as ordens do governo da República relativas ao exercício de suas funções", bem como a de "promover o bem dos direitos e interesses da União" (art. 24, alínea "c"). Esta função, até recentemente, era desempenhada pelo Ministério Público Federal, a despeito da Constituição Federal de 1988 ter separado a Advocacia Geral da União, a quem cumpre zelar pelos interesses da União Federal, da instituição do Ministério Público, encarregando este de defender os interesses da sociedade como um todo.

Apesar do que foi enunciado no Decreto de autoria do Ministro Manuel Ferraz de Campos Salles (Decreto 848/1890), um grande entusiasta da Instituição, a Constituição Federal de 1891 não fez nenhuma menção ao Ministério Público. A única menção era a respeito do Procurador-Geral da República que era tratado no título destinado ao Poder Judiciário. Assim é que o artigo 58, § 2º, determinava: "O Presidente da República designará, dentre os membros do Supremo Tribunal Federal, o Procurador Geral da República, cujas atribuições se definirão em lei."

É também neste período histórico que será firmado o primeiro grande diploma de garantias aos membros do Ministério Público: é o Decreto 1.030, de 14 de novembro de 1890, que fixava a organização da instituição no Distrito Federal. Expressamente, ele dispunha que o Ministério Público deveria, perante as justiças constituídas, funcionar como "o advogado da lei, o fiscal de sua execução, o procurador dos interesses gerais, o promotor da ação pública contra todas as violações do direito, o assistente dos sentenciados, dos alienados, dos asilados e dos mendigos, requerendo o que for a bem da justiça e dos deveres da humanidade" [15].

Nalgumas oportunidades, em ocasiões de convulsões políticas e populares, à égide da CF de 1891, o Ministério Público se veria com sua organização interna modificada para fazer frente aos velhos problemas do Poder Executivo, a quem se encontrava umbilicalmente ligado; embora tenha também alargado seus poderes com estes diplomas legislativos. Citemos como exemplos: a Lei Estadual do Estado de São Paulo n°. 18, de 21 de novembro de 1891 (que organizou o Poder Judiciário paulista); a Lei n°. 221, de 20 de novembro de 1894 (que criou o cargo de juiz suplente do substituto do juiz seccional e o cargo de ajudante de Procurador da República); o Decreto 2.579, de 16 de agosto de 1897 e o Decreto 9.263, de 28 de dezembro de 1911 (instrumentalizadores da política governamental de segurança pública); e o Decreto 16.273, de 20 de dezembro de 1923 (outorgava competência ao Ministério Público para intervir na disciplina judiciária).

Com o advento da República surge um gradativo caminhar em rumo à codificação do direito brasileiro, que culminou, exemplificativamente, com a promulgação do Código Civil em 1917, do Código de Processo Civil em 1939, do Código Penal em 1940, do Código de Processo Penal em 1941. O Código Civil de 1917 daria ao Ministério Público atribuições como a curadoria de fundações (art. 26), legitimidade para propor ação de nulidade de casamento (art. 208, § único, II), defesa dos interesses de menores (art. 394, caput), legitimidade para propor ação de interdição (art. 447, III) e legitimidade para promover a nomeação de curador de ausente (art. 463), dentre outras.

Inolvide-se que é desta mesma fase legislativa o célebre pronunciamento do Ministro Alfredo Valladão, que iniciaria uma das basilares (e intermináveis) celeumas do meio jurídico brasileiro: a busca pela natureza jurídica do Ministério Público. Ei-la, segundo seu entendimento: "O Ministério Público se apresenta com a figura de um verdadeiro poder do Estado. Se Montesquieu tivesse escrito hoje o Espírito das leis, por certo não seria tríplice, mas quádrupla, a Divisão dos Poderes. Ao órgão que legisla, ao que executa, ao que julga, um outro órgão acrescentaria ele – o que defende a sociedade e a lei, perante a justiça, parta a ofensa de onde partir, isto é, dos indivíduos ou dos próprios poderes do Estado". [16]

3.4. Período Histórico após a Constituição de 1934

Inspirada na Constituição de Weimar, de 1919, a Constituição Federal de 16 de julho de 1934, em seus artigos 95/98, dispensaria um tratamento mais cuidadoso ao Parquet, definindo-lhe algumas atribuições básicas. O Ministério Público, nos termos do artigo 95, assim era organizado:

"Art 95 - O Ministério Público será organizado na União, no Distrito Federal e nos Territórios por lei federal, e, nos Estados, pelas leis locais.

 § 1º - O Chefe do Ministério Público Federal nos Juízos comuns é o Procurador-Geral da República, de nomeação do Presidente da República, com aprovação do Senado Federal, dentre cidadãos com os requisitos estabelecidos para os Ministros da Corte Suprema. Terá os mesmos vencimentos desses Ministros, sendo, porém, demissível ad nutum.

§2º - Os Chefes do Ministério Público no Distrito Federal e nos Território serão de livre nomeação do Presidente da República dentre juristas de notável saber e reputação ilibada, alistados eleitores e maiores de 30 anos, com os vencimentos dos Desembargadores.

 § 3º - Os membros do Ministério Público Federal que sirvam nos Juízos comuns, serão nomeados mediante concurso e só perderão os cargos, nos termos da lei, por sentença judiciária, ou processo administrativo, no qual lhes será assegurada ampla defesa."

Esta Constituição institucionalizou o Ministério Público e o inseriu na Seção I, do Capítulo VI, intitulado "Dos órgãos de cooperação nas atividades governamentais", referente à "organização federal".

É através dela que é instituído o conhecido "Quinto" constitucional, mecanismo pelo qual um quinto dos membros dos Tribunais deveria ser composto por profissionais oriundos do Ministério Público e Advocacia, alternadamente. Assim dizia o art. 104, §6° da Constituição de 1934:

"Art. 104.....................

§6º - Na composição dos Tribunais superiores serão reservados lugares, correspondentes a um quinto do número total, para que sejam preenchidos por advogados, ou membros do Ministério Público de notório merecimento e reputação ilibada, escolhidos de lista tríplice, organizada na forma do § 3º."

Esta Carta, como se vê do caput do artigo 95, mencionava que lei federal organizaria o Ministério Público na União, no Distrito Federal e nos Territórios, e que leis estaduais organizariam o Ministério Público nos Estados. No §3° do citado artigo, era consagrado o princípio da estabilidade funcional, ainda que temerário, bem como a obrigatoriedade do concurso público. Tais garantias, destinadas aos membros do Ministério Público Federal, seriam, paulatinamente, consagradas aos membros dos Ministérios Públicos Estaduais, à luz do art. 7°, inciso I, da CF de 1934.

Com esta Constituição, em seu art. 96, cria-se a lógica atribuição do Procurador-Geral da República, de acompanhar a declaração de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo. A partir de então, o Ministério Público veio adquirindo posição institucional de relevo nas Constituições e em leis especiais, muito embora ainda fosse visto como uma função subordinada ao Poder Judiciário e, principalmente, ao Poder Executivo, ou seja, instituição dependente, não-autônoma, acabrestada.

Desta forma, não poderia deixar de ser aqui transcrito trecho do veto parcial ao Decreto n°. 5, de 24 de janeiro de 1935, que dispunha sobre o provimento dos cargos do Ministério Público Eleitoral, entre outras coisas. Outros escritos certamente não demonstrariam com tamanho vigor as limitadas visões tanto do presidente Getúlio Vargas quanto do meio político da época, que pouco divergia da visão presidencial. Eis as razões do veto:

"Há autores, é certo, que vêem no Ministério Público uma verdadeira magistratura. Mas, mesmo sob o regime da Constituição de 91, sustentava João Monteiro que o referido instituto era ‘realmente órgão do poder executivo’ (Proc. Civ. e Comm., vol. I, §51, p. 235). E Milton, em um do de seus comentários ao nosso anterior estatuto, modificando a definição de Carré, dizia que Ministério Público era uma função exercida ‘em nome do Chefe do Governo’ (A Constituição do Brasil, 2.ed., comm, ao art. 58, p. 284). Era por meio dos membros do Ministério Público, escreve Carlos Maximiliano, que ‘o Governo influía beneficamente nos Tribunais, provocando-lhes a ação, defendendo o interesse geral e a observância criteriosa das leis...’ (Comentários à Constituição, 3.ed., n°. 380, p. 622). (...) pois, tratando-se, como se trata, de órgão de ‘cooperação na atividade do Governo’, devem os seus representantes, ser a expressão da confiança direta do Governo." [17]

3.5. Período Histórico após a Constituição de 1937

A Constituição Federal de 1937 fazia alusão exclusivamente ao Procurador-Geral da República como chefe do Ministério Público Federal. Ordenava o seu artigo 99 que para Procurador Geral da República a escolha deveria recair sobre "pessoa que reúna os requisitos exigidos para Ministro do Supremo Tribunal Federal".

Com a Carta Constitucional de 10 de novembro de 1937, imposta pelo Presidente Getúlio, em caráter marcadamente ditatorial, o Ministério Público praticamente desaparece como Instituição, o que nos condena a minorar a importância de tal Constituição como meio de se realizar algum estudo doutrinário-histórico da Instituição. Com a Constituição elaborada pelo Ministro Francisco Campos, mentor de nosso Código Penal, o Ministério Público perde a estabilidade e a paridade de vencimentos com os magistrados. Cria-se a máxima, que se veria repetida no Golpe Militar de 31 de março de 1964: regime ditatorial forte, Ministério Público fraco.

Porém, inobstante este retrocesso vigoroso, foi durante a vigência desta Carta que o Ministério Público viu aumentar suas incumbências processuais, via legislação ordinária.

O Código de Processo Civil de 1939, Decreto-Lei 1.608, estabeleceria a obrigatoriedade da intervenção do Ministério Público em diversas situações, especialmente na condição de "custos legis". Nesta fase, o Promotor de Justiça passa a atuar como fiscal da lei, apresentando seu parecer após a manifestação das partes, em defesa do interesse público possivelmente existente em determinados tipos de lides. A sua intervenção visava proteger basicamente os valores e interesses sociais então considerados indisponíveis ou mais importantes como as relações jurídicas do direito de família, casamento, registro e filiação, defesa dos incapazes, defesa da propriedade privada (daí a intervenção em feitos de usucapião, testamentos e disposições de última vontade, etc.). A partir deste período, o Promotor vinculava-se basicamente à defesa dos valores centrais de uma ordem social e econômica burguesa, predominantemente rural e agrária. Assim, iniciava-se o fenômeno do parecerismo, que permeará toda a existência jurídica do Ministério Público até os dias de hoje. Saliente-se que, anteriores ao Código de Processo Civil de 1939, eram vigentes os Códigos de Processo Civil estaduais, os quais davam atenção quase inexistente ao Ministério Público.

Noutro ponto de vista, o Código de Processo Penal de 1941 consolidaria a posição do Ministério Público como titular da ação penal, dando-lhe poder de requisição de instauração de inquérito policial, entre outras diligências características do procedimento inquisitorial.

3.6. Período Histórico após a Constituição de 1946

Somente com a Constituição seguinte à "ditadura getulista" presenciaríamos a restituição da dignidade da instituição. A Carta de 1946 dispensava-lhe um título autônomo, o Título III, com independência em relação aos Poderes da República, consagrando a instituição de acordo com a estrutura federativa (Ministério Público Estadual e Ministério Público Federal). Seus membros viram restabelecidos os princípios da estabilidade e da inamovibilidade, o ingresso na carreira passou a ser possível somente através de concurso público, estando prevista a promoção na carreira, e a remoção somente seria possibilitada por representação motivada da Procuradoria Geral.

Tamanha evolução não impediu o abrandamento na autonomia da Instituição. Assim dispunha o art. 126 da Carta de 1946 a respeito da escolha do Procurador-Geral da República:

"Art 126 - O Ministério Público federal tem por Chefe o Procurador-Geral da República. O Procurador, nomeado pelo Presidente da República, depois de aprovada a escolha pelo Senado Federal, dentre cidadãos com os requisitos indicados no artigo 99, é demissível ad nutum".

Por sua vez, na letra do parágrafo único deste mesmo art. 126, o Constituinte de 1946 dirigiu ao Ministério Público o encargo de representar em juízo a União. Porém, conforme bem cita Sauwen Filho: "Foi sob o império da Carta Constitucional da União de 1946 que diversos Estados da Federação optaram por desvincular os seus Parquet’s da representação judicial do Estado, como ocorreu com o Ministério Público de São Paulo e do antigo Estado da Guanabara, dentre outros, que tiveram suas atividades restritas às suas funções típicas de fiscal da lei, titular da ação penal pública como mecanismo de combate ao crime e perseguição do criminoso, e bem assim ao desempenho de suas funções de representação compendiadas na legislação procedimental." [18]

Vale ressaltar, por fim, que é desta época a edição da primeira Lei Orgânica do Ministério Público da União: a Lei n° 1.341, de 30 de janeiro de 1951. Ela viria a organizar o Ministério Público Federal, dispondo sobre os órgãos de sua carreira, em seus arts. 27 e 28 [19]. Além do Procurador-Geral da República, passaram a existir o Sub-Procurador Geral da República e os Procuradores da República no Distrito Federal e nos Estados, sendo estes divididos em três categorias. O cargo inicial era o de Procurador da República de Terceira Categoria. Em Pernambuco, já se iniciava como Procurador da República de Segunda Categoria.

3.7. Período Histórico após a Constituição de 1967.

Na Constituição de 1967 o Ministério Público foi posto como um autêntico apêndice do Judiciário. Foi ele alocado a uma seção no Capítulo destinado a reger o Poder Judiciário. Porém, ao vir a integrar o Título que tratava do Poder Judiciário, o Ministério Público deu importante passo na conquista de sua autonomia e independência, através da importante e aguardada equiparação com os juízes. Tais conquistas somente restariam definitivamente consagradas na Constituição Federal de 1988.

Desta forma, não podemos olvidar que a Constituição Federal de 1967 trouxe algumas importantes inovações ao Ministério Público, criando a regulamentação do concurso de provas e títulos, abolindo os "concursos internos" que davam margem a influências políticas poderosas. Assim dizia o §1° do art. 138:

"§ 1º - Os membros do Ministério Público da União, do Distrito Federal e dos Territórios ingressarão nos cargos iniciais de carreira, mediante concurso público de provas e títulos. Após dois anos de exercício, não poderão ser demitidos senão por sentença judiciária, ou em virtude de processo administrativo em que se lhes faculte ampla defesa; nem removidos, a não ser mediante representação do Procurador-Geral, com fundamento em conveniência do serviço."

3.8. Período Histórico após a Constituição Outorgada de 1969.

A Emenda Constitucional n.º 1, de 17 de outubro de 1969, ou melhor, Constituição Federal Outorgada de 1969, de seu turno, retirou as mesmas condições de aposentadoria e vencimentos atribuídos aos juízes (pela supressão do parágrafo único do art. 139 da Constituição anterior), e impôs a perda total de sua imparcialidade e independência, ao subordinar o Ministério Público ao Poder Executivo.

Com a Emenda Constitucional nº. 1, de 17/10/69, passou ele a figurar como parte integrante do Poder Executivo, sem independência funcional, financeira e administrativa, o que lhe tirava vigor para alçar vôos maiores. Voltava ele a ser mero funcionário administrativo do Estado. Lembremos que, em adendo, esta Carta também suprimiu a oitiva do Senado Federal, quando da nomeação do Procurador-Geral da República, acentuando sua subordinação ao Presidente da República.

Observação interessante, a respeito desta época sombria de nossa história, provém, uma vez mais, de Sauwen Filho: "Como se vê, embora retrogradado à condição de simples órgão de atuação do Poder Executivo, o Ministério Público, no regime Constitucional de 1969 cresceu em força, mercê do alargamento de suas funções institucionais, tornando-se nitidamente instrumento da política governamental, de um Poder que não primava pelo respeito às liberdades democráticas." [20]

O Código de Processo Civil de 1973, em seu art. 82, daria um tratamento sistemático ao Ministério Público. Ao disciplinar a sua intervenção, basicamente o Código de Processo Civil conferiu-lhe um papel de órgão interveniente, fiscal da lei. Este papel também estaria consignado em outros diplomas como a Lei do Mandado de Segurança (Lei 1.533 de 31/12/51, artigo 10), a Lei de Falências (Decreto-Lei 7.661/45 de 21/06/45, artigo 210), Lei de Ações Populares (Lei n.º 4.717, de 29/06/65, artigo 6º, § 4º), Lei de Alimentos (Lei n.º 5.478/68 de 25/0/68, artigo 9º), Lei de Registros Públicos (Lei n.º 6.015/73, de 31/12/73, artigos 57, 67, §1º, 76, § 3º, 109, 200, 213, § 3º), Lei de Acidentes do Trabalho (Lei n.º 5.638/70 e posteriormente Leis 6.367/76 e 8.213/91) etc., que prevêem a intervenção do Ministério Público, de maneira expressa ou por interpretação (como no caso de acidentes do trabalho).

Até aqui a tendência brasileira seguia acompanhando os paradigmas dos países de tradição jurídica continental, i.e., atuar como autor da persecução penal e como ‘custos legis’ em algumas questões cíveis.

Nos anos 70 começa a se forjar um novo espírito e perfil institucional do Ministério Público voltado para a defesa dos direitos sociais, os direitos humanos de segunda geração. É a época da revolução cappellettiana. A propósito, é neste mesmo período que o próprio termo "Ministério Público" começa a entrar em voga, a ser conhecido do público em geral.

Nesta época, mais precisamente em 1973, é criada a Associação dos Procuradores da República, que mais tarde (1981) seria convertida para a conhecida Associação Nacional dos Procuradores da República – ANPR. Hoje ela congrega aproximadamente 610 procuradores de todo o país. Seu primeiro presidente foi Geraldo Andrade Fonteles.

A Emenda n.º 7 de 1977, cunhada na abertura "lenta, gradual e segura", do Governo Ernesto Geisel, alterou o artigo 96 da Constituição de 1969 [21], que autoriza os Estados a organizarem a carreira de seus Ministérios Públicos, por meio de leis estaduais. Através desta Emenda ficava estabelecida a possibilidade da União ditar normas genéricas a serem adotadas na organização dos Ministérios Públicos Estaduais, através de Lei Complementar de iniciativa do Chefe do Poder Executivo. Era mais uma tentativa de centralizar as diretrizes na formação do Ministério Público brasileiro.

Desta forma, promulgada foi a Lei Complementar n.º 40 de 14/12/1981 que traçou um novo perfil ao Ministério Público, asseverando, em seu art. 1°, que ele era "instituição permanente e essencial à função jurisdicional do Estado, é responsável, perante o Judiciário, pela defesa da ordem jurídica e dos interesses indisponíveis da sociedade, pela fiel observância da Constituição e das Leis". Tal definição viria a ser praticamente repetida no artigo 127 da Constituição Federal de 1988.

A Emenda Constitucional n°. 11/78 inseria um §5° ao art. 32, concedendo ao Procurador-Geral da República a permissão para, no caso de ocorrência de crime contra a segurança nacional, requerer a suspensão de mandatos parlamentares.

Por sua vez, a Lei n.º 6.938/81 previu a ação de indenização ou reparação de danos causados ao meio ambiente, legitimando o Ministério Público à propositura de ação de responsabilidade civil e criminal.

A seguir, a Lei n.º 7.347 de 24 de julho de 1985, conhecida como Lei de Ação Civil Pública, conferiu legitimidade ao Ministério Público para a propositura de ações civis públicas em defesa dos interesses difusos e coletivos, como aqueles relacionados à defesa do meio ambiente, patrimônio histórico e paisagístico, consumidor, deficiente, direitos constitucionais do cidadão etc. Este diploma legal inaugurou uma nova fase do Direito Brasileiro e deu novo horizonte para a atuação do Ministério Público na área cível. A partir de tal lei foi criado um canal para o tratamento judicial das grandes questões dos direitos transindividuais, dos novos conflitos sociais coletivos. Tal lei conferiu ao Ministério Público o poder de instaurar e presidir inquéritos civis sempre que houvesse a informação sobre a ocorrência de dano a interesse ambiental, paisagístico, do consumidor, etc. Nesta nova fase, o Promotor de Justiça passa a atuar como verdadeiro advogado (como órgão agente que propõe a ação, requer diligências, produz prova, etc.) dos interesses sociais coletivos ou difusos.

Em meados da década de 1980 as diversas associações estaduais e nacionais (CONAMP) do Ministério Público elaboraram, a partir de uma ampla consulta a todos os Promotores e Procuradores de Justiça do país, uma série de propostas que redundariam no documento conhecido por "Carta de Curitiba", documento aprovado no 1º Encontro Nacional de Procuradores Gerais de Justiça e Presidentes de Associações de Ministério Público, nos dias 20, 21 e 22 de junho de 1986, que elencava as principais reivindicações dos mesmos. Este documento trazia o delineamento básico de um novo perfil institucional do Ministério Público, definindo sua tridimensionalidade axiológica, envolta nos princípios da unidade, da indivisibilidade e da independência funcional. Assegurava-lhe a autonomia funcional e administrativa. Garantia-lhe as mesmas prerrogativas dos membros do Poder Judiciário como a vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de vencimentos.

Este novo perfil trazido pela Carta de Curitiba seria a base do texto constitucional da Carta Magna de 1988, no que se refere ao Ministério Público – verdadeira revolução jurídica, da qual mais a frente trataremos.

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Sobre o autor
Victor Roberto Corrêa de Souza

Servidor Público Federal na Procuradoria Regional da República - 5ª Região – em Recife/PE

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOUZA, Victor Roberto Corrêa. Ministério Público:: aspectos históricos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 229, 22 fev. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4867. Acesso em: 18 abr. 2024.

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