4. Constituição Federal de 1988.
Com a Constituição de 1988, consolidam-se os anseios da sociedade e dos representantes ministeriais. Verifica-se, com a Carta Cidadã, verdadeira revolução institucional. Nesta Carta, entre as principais assegurações, inovações e incrementos relacionados à atividade do Ministério Público, devem ser citados:
- A exclusividade para a promoção da ação penal pública, lhe sendo permitida a requisição de investigações às autoridades públicas competentes;
- Autonomia financeira, administrativa e orçamentária, embora haja colisões do art. 127, §§ 2° e 3°, da CF, com alguns dispositivos constitucionais esparsos, como os arts. 61, §1°, II, d), e 68, §1°, da CF;
- Consagração dos princípios institucionais da unidade, da indivisibilidade e da independência funcional;
- Controle externo da atividade policial;
- Defesa de interesses transindividuais e individuais indisponíveis;
- Defesa em juízo dos direitos e interesses de comunidades indígenas;
- Exercício de outra função, pública, ressalvando-se uma de magistério;
- Fim da representação da União e dos Estados, com a respectiva vedação à representação e consultoria de órgãos públicos;
- Indicação dos fundamentos jurídicos de suas emanações processuais;
- Missão de zelar pelo respeito mútuo entre os Poderes e pelos serviços de relevância pública;
- O Procurador-Geral da República deverá ser da carreira, e só poderá ser destituído do cargo com autorização do Senado;
- Participação da OAB nos concursos para a carreira, que serão de provas e títulos;
- Percepção de vantagens pecuniárias, derivadas do exercício de suas atribuições;
- Permissão para a realização direta de diligências investigatórias;
- Promoção do inquérito civil e da ação civil pública para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos;
- Promoção, nas várias formas existentes na pertinente legislação, da competente ação de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo;
- Vedação à atividade político-partidária, exceto a filiação e o direito à licença para candidatar-se ou exercer cargo eletivo;
- Vedação do exercício da advocacia;
- Vitaliciedade, inamovibilidade e total equiparação de vantagens pecuniárias com os membros do Poder Judiciário.
5. Após a Constituição de 1988. A busca pela afirmação do Ministério Público.
Desde quando aparecera para o mundo, o Ministério Público tem espantosamente evoluído, e em especial no Brasil, nos últimos quinze anos, em resposta evidente às singulares exigências postas pela nossa realidade social desagregadora. Percebe-se, claramente, o seu caminhar em distanciamento daquela figura de ‘advogado do Rei e do Estado’, preponderante num passado que não nos é muito distante.
Apesar disso, o país, atualmente, ainda se vê mergulhado em inúmeros problemas, que exigem uma postura mais acerbada do Ministério Público, em defesa da sociedade que o legitima. Todos estes problemas exigem a presença de alguém que defenda esta sociedade das variadas agressões que ela vem recebendo ultimamente. Maculam-se direitos constitucionalmente assegurados como a liberdade, a igualdade (material) e a segurança.
Este defensor é o Ministério Público, incumbido que está de defender os interesses mais prementes da sociedade, propugnando pela prevalência dos valores constitucionais garantidos à mesma. Com engajamento, idealismo, coragem e destemor estão os seus representantes vencendo as barreiras impostas à Instituição. Fazem do Ministério Público o órgão autônomo e independente de que todo o conjunto social necessita e exige. É certo que sua realidade financeira (assim como a de toda Administração Pública) é problemática, impedindo que se leve o Ministério Público aos rincões deste País, fazendo com que sua atuação seja ainda muitíssimo insuficiente, sobrelevada pela demanda social reprimida por anos a fio. Porém, mais certo é que a luta diária e a eficiência do Ministério Público são visivelmente factíveis, embora as buscas por sua ineficácia e retrocesso tenham sido incontáveis e igualmente visíveis.
Muitos desconhecem, mas o Ministério Público e a legislação correlacionada já nos mostram mecanismos de controle externo de sua atuação, como: a) Controle indireto de sua autonomia financeira e administrativa, a partir do momento em que sua proposta orçamentária é discutida nos corredores do Poder Legislativo, e controlada diuturnamente pelos Tribunais de Contas; b) Seus atos jurisdicionais são contrastados pelas partes, e seus procuradores pelos juízes; c) O ordenamento proporciona uma alternativa à iniciativa penal exclusiva do Parquet, instituindo a ação penal privada subsidiária da pública, em sendo inerte o órgão ministerial; d) A não exclusividade da propositura de ações civis públicas, possibilitando o controle da omissão do Ministério Público por intermédio da ação popular; e) A participação obrigatória da OAB em todos os concursos para a carreira do Ministério Público; f) A possibilidade de destituição ou demissão do órgão, entre tantos outros freios e contrapesos.
Todavia, mesmo em se propugnando sua importância para o Estado Democrático de Direito, não estamos – saliente-se – aqui a defender uma incolumidade total para os Promotores de Justiça. Não nos esqueçamos de que são eles agentes públicos, curvados às fortes penas da Lei, por ocasião de sua desobediência e desrespeito. Lembremos, apenas como exemplo, do que dispõe o art. 8°, §1°, da Lei Complementar n° 75/93. Em adendo, cabe ressaltar que para responsabilizá-los, possuem suas Instituições, os seus próprios organismos de Controle Interno, as Corregedorias e Ouvidorias. Devem, estes organismos, possuir mecanismos sérios e imunes a manobras políticas - sejam elas internas ou externas –, para serem capazes de separar o joio do trigo, punindo severamente os comprovadamente venais, que se servem da sociedade sem servi-la. Toda a sociedade, em especial os defensores da redução de poderes do Ministério Público, deve se lembrar que, correntemente, seus membros são fiscalizados, cobrados por perdas de prazos e interposição de recursos, têm contra si reclamações, correições e, até mesmo, representações; bastando, para que se evitem os abusos, a escorreita apuração dos fatos com serenidade e imparcialidade.
Mesmo com todo o esforço dos membros do Ministério Público, a Instituição necessita, de uma vez por todas, consolidar o seu papel perante a sociedade brasileira, e suas correspondentes prerrogativas dentro do ordenamento jurídico vigente. Provavelmente, é pelo fato de ainda não estar consolidada a sua maioridade jurídica que, a população brasileira, em sua absoluta maioria, desconhece o Ministério Público; certamente conhecem os promotores caricatos do cinema norte-americano, mas desconhecem a organização de seu próprio Ministério Público, seu funcionamento, suas competências e, sobretudo, sua função constitucional dentro do novo quadro de organização política e paridade institucional trazido pela Carta Magna de 1988. Uma prova recente deste desconhecimento ocorreu em pesquisa realizada pelo instituto Toledo & Associados, encomendada pela OAB nacional. Foram ouvidas 1700 pessoas, de todas as classes sociais, no período de 10 a 26 de setembro de 2003, a respeito das instituições que compõem o Estado, naquilo que pertine à Justiça. Algumas das várias conclusões da pesquisa: 57% dos entrevistados não sabem quais são as diferenças das funções de um juiz para um promotor; 28% dos entrevistados desconfiam do MP; a maioria — 37% —, entretanto, confia na instituição. Entre as críticas estão: corrupção, venda de sentenças e desvio de dinheiro (29%), privilégio para quem tem dinheiro e pode pagar (9%), trabalho em causa própria e preocupação com o que podem ganhar (8%), poder burocrático, lento e processos que demoram a ser resolvidos (7%), entre outras respostas. As razões positivas citadas para confiar no trabalho do Parquet foram: trabalho honesto (12%), profissionais dedicados para resolver solicitações (4%) e empenho em punir políticos corruptos, empresários influentes (4%), entre outras. O próprio diretor do Instituto, Francisco José de Toledo, ratifica a obviedade que já se aguardava, na análise da pesquisa: "boa parte da população brasileira não tem noção clara das funções e atribuições do Ministério Público".
Esse desconhecimento já foi por muitos observado. Sobre ele também se manifestou Hugo Nigro Mazzilli: "Outro ponto que deve ser enfrentado é o da melhor divulgação social do Ministério Público. Para encontrar maior legitimidade de sua atuação, deve o Ministério Público prestar mais contas do que é, do que faz, dos seus sucessos e mesmo de suas deficiências e erros. (...) Palestras em faculdades, clubes de serviço, entrevistas – tudo isso serve para esclarecer e divulgar um trabalho cujo destinatário é a sociedade que custeia a instituição." [22]
Muito cotidianamente, presenciam-se casos, verídicos, de membros ministeriais que continuam sendo tratados como procuradores dos Estados Federativos ou da União, confundido-os com os Advogados da União e Procuradores dos Estados. Também os confundem com os Defensores Públicos. Passados quinze anos de nossa Carta Magna, tais equívocos, absurdamente, ainda são sentidos na comunidade jurídica nacional, entre magistrados, advogados, estagiários,... e promotores e procuradores de Justiça. O que diremos, então, em relação à maioria de nossa sociedade civil, mergulhada no mais abissal ostracismo cultural já visto?
A função estatal da qual se incumbiu o Ministério Público de nossos dias se faz tanto mais indispensável numa sociedade quanto menor for o costume desta sociedade de respeitar os direitos e os valores da pessoa humana. Por este motivo é compreensível que, num país cuja população tenha sempre presente a consciência do respeito absoluto aos direitos de seus pares (como atualmente ocorre, v.g., nos países escandinavos), seja menor a necessidade de uma instituição com tamanho vigor social, como o é o nosso Ministério Público. Ainda assim, possuem eles mecanismos institucionais de defesa do regime democrático e dos interesses públicos mais prementes, como o caso dos ombudsmen. Salientemos que as principais destinações institucionais do ombudsman escandinavo, em suas terras, são apenas uma das muitas funções de nosso Ministério Público [23]. Nosso Ministério Público, inclusive, necessita aperfeiçoar esta sua função, ainda pouco explorada.
Por outro lado, de maneira inversa, o Ministério Público se torna absolutamente necessário quando tratamos de Estados onde inexistam a consciência social supramencionada, caso da maioria dos países subdesenvolvidos, como o Brasil e outras nações latino-americanas.
Atualmente, a Democracia, princípio estruturador de todo Estado de Direito, ultrapassa a barreira mítica dos aspectos da escolha dos políticos que governam um determinado Estado. Ela, além de determinar formas de demonstração da soberania popular, apresentar-se-á como metas de erradicação de desigualdades, fornecendo a todos os indivíduos a possibilidade de participar efetivamente desta soberania popular. Ela deve ser notada por sua feição justa, solidária, livre de quaisquer espécies de preconceitos, trazendo a todos as benesses do desenvolvimento econômico.
Acontece que, tristemente, a regra, no Brasil e nos países ainda não plenamente desenvolvidos, é a de que este projeto democrático, idealmente pactuado em nossa Carta Magna, muito dificilmente consegue ir além da falácia e do discurso populista e improdutivo dos governantes. Notadamente, as classes mais abastadas e os grupos sociais que governam o país e que detêm os instrumentos coercitivos dispostos pelo Estado são predominantes no âmbito da sociedade civil, tentando e conseguindo manter o status quo, concentrando a riqueza e o poder político em mãos de poucos, recriando geometricamente a miséria, as desigualdades sociais e regionais e a marginalização das camadas mais pobres e penalizadas da sociedade, que, diga-se de passagem, são numericamente maiores. Veja-se o fato, verificado recentemente pelo IBGE através de suas pesquisas econômicas e demográficas, de que a atual concentração de renda (Censo de 2000) brasileira é a mesma que havia em 1980, à exceção de um recuo muito pequeno à época do lançamento do Plano Real em 1993/94, mas que cedeu às pressões da recessão, das taxas de juros mais altas do mundo, e das perdas reais verificadas nos salários, a nós impostas pelos anos posteriores. Com isto estas camadas sociais hegemônicas utilizam-se, basicamente, de processos inibitórios da democratização, baseados em modelos culturais, políticos e econômicos de teor marcadamente liberal, fracassados e impróprios para a nossa realidade social. É a tola e perversa predominância do neoliberalismo, ideologia escamoteadora e profundamente excludente das camadas majoritárias da população, os mais pobres.
E é neste sistema de claras diferenças sociais que vai despontar a inarredável necessidade da presença de um órgão como o Ministério Público, com atribuições de defesa da Democracia, da ordem jurídica e dos interesses sociais e individuais indisponíveis. É neste ínterim que vai despontar uma essencial atuação ministerial, parametrizada pelo projeto democrático construído com nossa Constituição, pautada pelo respeito ao Estado Democrático de Direito, enfrentando, se necessário, estes grupos dominantes, em nome de uma igualdade social, de uma Justiça Plural. Será um trabalho para pessoas perspicazes e incansáveis, de cunho essencialmente preventivo e promissor.
6. Conclusões
Enfim, pode-se resumir que o Ministério Público, antes da Constituição de 5/10/88, nunca foi institucionalizado de forma independente. Na Constituição do Império ficou atrelado ao Poder Legislativo (Senado); nas de 1891 e 1967, ao Poder Judiciário; na de 1934, era tido como órgão de cooperação nas atividades governamentais (Poder Executivo); e nas de 1946 e 1969, também ao Poder Executivo. Claramente, desde a Constituição Imperial, de 1824, até a Emenda Constitucional Outorgada n.º 1, de 17/10/69, não houve qualquer avanço institucional significativo do Ministério Público; se houve, foi por alocação, nunca por evolução.
Somente com a Constituição de 1988, é que o Ministério Público adquire o caráter de Instituição livre e independente, desvinculando-se das amarras dos demais Poderes do Estado e vindo a situar-se em capítulo próprio, intitulado "Das funções essenciais à justiça".
Seus membros devem se exaurir e se entregar completamente às funções institucionais que lhe foram afetas, agindo com responsabilidade diante do "cheque em branco" outrora asseverado por Ulisses Guimarães, presidente da Assembléia Constituinte de 1988, correspondendo aos interesses da sociedade que os legitima e que neles espera a efetividade necessária.
Portanto, com esta evolução a olhos vista, deixando de ser um mero "procurador do Estado" para ser um autêntico "defensor da sociedade e do regime democrático", podemos realmente ter o que comemorar neste 14 de dezembro, o Dia Nacional do Ministério Público, assim programado pela antiga Lei Complementar nº. 40/1981, em seu art. 61, e posteriormente referendado pela Lei nº. 8.625/93, em seu art. 82 [24]; posto ter o Ministério Público se transformado numa instituição que, conquanto nunca antes tenha sido realizada, embora sempre idealizada, hoje se nos mostra cláusula pétrea de nossa Constituição: o Fiscalizador da Democracia, Contra-Poder de Cautela e Defensor da Sociedade, por excelência, sempre em busca de uma equânime promoção da Justiça, respeitando a igualdade material entre os cidadãos, na defesa da legalidade, dos interesses meta-individuais e dos direitos indisponíveis.