Jorge Luis Borges e a falsidade retórica do golpe de estado em curso no Brasil

05/05/2016 às 09:22
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Quando a realidade se torna uma ficção, somente a literatura pode reconstruir a tessitura do real.

Angustiado com a situação do país, que parece ter sido engolido por um túnel do tempo e desembocado novamente em 1964 - ano em que eu mesmo nasci, filho de um comunista - pego um livro ao acaso na estante. O golpe de estado certamente resultará em reação, repressão e violência, penso ao abrir o volume e me deparar com o seguinte fragmento:

“Há um argumento, muito elegante mas muito falso, de Leibniz, para defender a existência do mal. Imaginemos duas bibliotecas. A primeira é constituída de mil exemplares da Eneida, que se supõe um livro perfeito e que talvez o seja. A outa contém mil livros de valor heterogêneo e um deles é a Eneida. Qual das duas é superior? Evidentemente, a segunda. Leibniz chega a conclusão de que o mal é necessário para a variedade do mundo.

Outro exemplo que se costuma dar é o do quadro, um quadro belo, digamos de Rembrandt. Na tela há grandes escuros que podem corresponder ao mal. Leibniz parece esquecer, quando dá o exemplo das telas ou dos livros, que uma coisa é haver maus livros em uma biblioteca e outra é ser esses livros. Se nós formos algum desses livros, estaremos condenados ao inferno.” (Obras Completas, volume III, Jorge Luis Borges, São Paulo, editora Globo 2006, texto A Cabala, p. 307).

O argumento elegante e falso de Leibniz foi duplicado por Borges. O bruxo argentino, não por acaso transformado por Umberto Ecco num personagem essencial do livro “O Nome da Rosa”, induz ao leitor acreditar que os homens podem ser livros ou, pior, que os livros têm almas e podem ser condenados ao inferno. O argumento que ele usa, contudo, é tão elegante que somos tentados a acreditar na veracidade da sua falsidade retórica.

Eureka! Por caminhos tortuosos, Jorge Luis Borges, ele mesmo um anti-comunista confesso, revelou para mim o aspecto mais sombrio da crise política em andamento no Brasil: a falsidade retórica.

O fundamento jurídico do golpe (as pedaladas fiscais) é falso. Se fosse verdadeiro todos os governadores que fizeram a mesma coisa deveriam ser removidos dos seus cargos (inclusive Geraldo Alckmin). A retórica empregada por Anastasia no relatório do Impedimento que ele leu no Senado hoje é uma falsificação grotesca. Ele mesmo deu pedaladas fiscais e não poderia condenar a presidenta por atos semelhantes àqueles que ele julgou corretos quando era governador de Minas Gerais. O julgamento de Dilma Rousseff separado do de Michel Temer é uma verdadeira encenação farsesca. O vice-presidente também assinou Decretos semelhantes aos usados para instrumentalizar o golpe do Impedimento.

A falsidade retórica da imprensa brasileira é única coisa verdadeira nos principais jornais, revistas, telejornais e portais de notícias. Neste exato momento, toda a imprensa da Europa e dos EUA está denunciando tanto o golpe de estado em curso no Brasil quanto a natureza vil, antijornalística e partidária da imprensa nacional, que ousa chamar de Impedimento bem fundamentado um golpe de estado paraguaio.

Dilma Rousseff, contudo, resiste. Na sua última aparição pública ela disse que não vai renunciar e que seguirá expondo a injustiça que está sendo cometida contra ela e contra a maioria do povo brasileiro que a elegeu. Em dezembro de 2015, foi dito no GGN que nossa presidenta tem uma grande virtude http://jornalggn.com.br/blog/fabio-de-oliveira-ribeiro/retrospectiva-2015-ou-como-a-resiliencia-derrotou-a-eloquencia.

Dilma não queimou minha língua. Mas ela está a queimar, dentro e fora do Brasil, as línguas de Michel Temer, Aécio Neves, Eduardo Cunha, Aloysio Nunes, José Serra, Eduardo Cunha, Anastasia e de todos os outros políticos, ministros do STF e jornalistas que sustentam a farsa do Impedimento com a esperança de transformar o golpe em fato consumado. Sempre que eles se referirem ao Impedimento dela, gritaremos: GOLPE DE ESTADO.

Não há elegância na falsidade retórica dos golpistas. Temos, portanto, o direito de retribuir na mesma moeda. Sejamos, pois, tão deselegantes quanto o duplo literário de Jorge Luis Borges criado por Umberto Eco. O venerável Jorge envenenou as páginas do livro que considerava perigoso, causando as mortes que impulsionam a narrativa de "O Nome da Rosa". Os deputados, senadores e ministros do STF envenenaram o país com ajuda da imprensa para rasgar a Constituição Federal. Com toda justiça eles devem ser obrigados a habitar no espaço sem lei que criaram em razão de sua ambição irrefreável de limitar ou revogar a soberania popular que atribuiu o mandato presidencial a Dilma Rousseff.

O caminho da resistência deselegante já está sendo trilhado pelos estudantes. Em São Paulo, eles ocuparam várias escolas e a ALESP, protestando contra os tucanos que se apropriaram do dinheiro da merenda escolar. Os ladrões que estão roubando o mandato popular outorgado a Dilma Rousseff não perdem por esperar. Eles colocarão a faixa presidencial em Michel Temer num dia, no outro os prédios, lojas, gabinetes, templos e escritórios deles estarão cheios de convidados indesejados. Assim seja.

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Sobre o autor
Fábio de Oliveira Ribeiro

advogado em Osasco (SP)

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