Da Inconstitucionalidade do Afastamento Automático do Presidente da República
Por Carlos Eduardo Rios do Amaral
Prescreve o Art. 86, §1º, II e §2º, da Constituição Federal de 1988:
“Art. 86. (...)
§1º O Presidente ficará suspenso de suas funções:
(...)
II - nos crimes de responsabilidade, após a instauração do processo pelo Senado Federal.
§2º Se, decorrido o prazo de cento e oitenta dias, o julgamento não estiver concluído, cessará o afastamento do Presidente, sem prejuízo do regular prosseguimento do processo”.
Como se vê da leitura atenta do texto constitucional o rito dos crimes de responsabilidade imputados ao Presidente da República prevê hipótese de deferimento automático de medida cautelar.
Igualmente, também será automática a cessão da medida cautelar contra o Presidente da República caso decorrido o prazo de cento e oitenta dias sem julgamento final.
A partir deste raciocínio, poderíamos dizer que a previsão contida no Art. 86, §1º, II, seria imune ao princípio da presunção de inocência insculpido no Art. 5º, LVII, também da Constituição?
A própria Constituição esclarece que não, no §2º, do Art. 86, determinando a cessação da medida cautelar de afastamento automático após o prazo de 180 dias sem a conclusão do julgamento.
Em verdade, a regra do Art. 86, §1º, II, ao criar a figura da medida cautelar automática de afastamento parece inovar no ordenamento jurídico universal e doméstico ao mitigar a garantia fundamental da presunção de inocência sob o espectro processual.
É como se a Constituição Federal dissesse, no caso, ao Presidente da República que o mesmo seria reputado inocente até a palavra final do Senado Federal, mas que, noutra ponta, não poderia mais exercer o seu cargo, de modo automático e sem motivação, pois quiçá seria culpado de todas as acusações ou parte dela.
E mais do que isso, o Art. 86, §1º, II, impõe a presunção absoluta de que o Presidente da República tumultuará as investigações e oferecerá riscos à instrução processual e à ordem pública, pois estes são os elementos que devem sempre fundamentar o afastamento de qualquer servidor ou agente público de seu cargo no País. Aqui, no Art. 86, §1º, II, o efeito precede a causa na ordem natural das coisas.
Perceba-se. O Art. 86, §1º, II, da Constituição dispensa o Senado Federal de motivar o afastamento do Presidente da República. E, em tese, ainda que o Senado, juiz natural da causa, não estivesse convencido da necessidade do afastamento do Presidente da República de seu cargo, para processo e julgamento das acusações, este Órgão investido de jurisdição estaria proibido de assim dispor, por força do comando irredutível do Art. 86, §1º, II.
Aqui indago ao mais primeiranista Acadêmico de Direito. Poderia determinado juiz decretar medida cautelar automática e obrigatória, notadamente em processo de natureza criminal, contra determinado réu prescindido de qualquer fundamentação?
Ora, certamente que não. A regra do inciso IX do Art. 93 é aplicável também a todos os Órgãos e Instâncias da República quando investidos de jurisdição.
A cláusula constitucional da publicidade e fundamentação de todas as decisões de conteúdo jurisdicional, cautelares e de mérito, que digam respeito à vida, à liberdade e à propriedade do cidadão não encontra obstáculo em nosso ordenamento pátrio.
Por isso, o Art. 86, §1º, II, ao prever hipótese de medida cautelar automática no bojo de ação para apuração de crime de responsabilidade atenta contra o próprio conteúdo e sentido da Constituição Federal, que prima pelo prestígio da garantia da presunção de inocência, com todos os seus consectários de ordem material e processual.
Assim, o Art. 86, §1º, II, reflete muito bem o caso de norma constitucional originária inconstitucional. Senão, vejamos:
“A medida cautelar de afastamento do cargo, por ora, não se justifica, por ausência de periculum in mora. Significaria aplicar, antecipadamente, efeito não automático da condenação (Art. 92 do CPB), tratando-se de verdadeira punição antecipada” (APn 741/DF, Rel. Ministro OG FERNANDES, CORTE ESPECIAL, julgado em 03/06/2015, DJe 17/08/2015).
Como bem salientado pelo Eminente Ministro Og Fernandes, no julgado acima de sua douta relatoria, o afastamento do cargo traduz-se em mais do que medida cautelar, possui natureza jurídica mesmo de efeito da condenação principal. Advertindo o parágrafo único, do Art. 92, do Código Penal: “Os efeitos de que trata este artigo não são automáticos, devendo ser motivadamente declarados na sentença”.
Antecipação automática e obrigatória dos efeitos de uma condenação final – afastamento do cargo – com o mero recebimento da peça acusatória, seja no Senado Federal, seja no Poder Judiciário, prescindindo-se de qualquer publicidade e fundamentação, com todas as vênias, não encontra ressonância na Constituição e nos Tratados e Convenções subscritos pelo Brasil.
O Art. 86, §1º, II, não poderia dispensar o Senado Federal, juiz natural da causa, de seu poder/dever de dar publicidade e fundamentar a medida cautelar de afastamento do Presidente da República de suas funções, no bojo da decisão de instauração do processo-crime de responsabilidade.
Do mesmo modo, também inconstitucional é a previsão do Art. 86, §3º, que veda a decretação da prisão provisória do Presidente da República enquanto não sobrevier sentença condenatória no processo de apuração de crime comum.
Determinado o afastamento fundamentado do Presidente da República, uma vez frustradas por esta Autoridade o êxito de todas as demais medidas cautelares previstas na lei processual penal, demonstrados o risco à ordem pública, à instrução criminal ou à aplicação da lei penal, evidentemente que deverá, sim, ser decretada a prisão provisória de quem quer que seja, inclusive do próprio Presidente da República-Réu.
No Estado de Direito ninguém está acima da lei. Nem abaixo! Todos os cidadãos e cidadãs encontram-se em condição de igualdade e paridade perante as leis da República. Doa a quem doer.
Não se pode confundir medida cautelar automática e obrigatória de afastamento do cargo com medida cautelar pública e fundamentada de necessário afastamento do cargo proferida pelo juiz natural. Esta última, única admissível no Estado de Direito; e com maior razão, se tomado o afastamento do cargo como efeito não automático da condenação final (§ Único, do Art. 92, do Código Penal).
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Carlos Eduardo Rios do Amaral é Defensor Público do Estado do Espírito Santo