O c. Superior Tribunal de Justiça, no que se refere ao crime tipificado no art. 7°, IX, da Lei n° 8.137/90, tem decidido no sentido de que não basta a venda ou exposição à venda de mercadoria com prazo de validade vencido para a configuração de crime contra a relação de consumo, devendo haver, necessariamente, a realização de perícia para confirmar se tal produto é realmente impróprio ao consumo (assim, p. ex., RHC 60.937/RJ, Rel. Ministro Sebastião Reis Júnior, 6ª T, DJe de 01/03/2016).
Ocorre que, pelo teor da lei, bem como pela natureza do delito em questão, não se pode concordar com a atual jurisprudência do STJ.
O art. 7°, inciso IX, da Lei n° 8.137/90, dispõe que “constitui crime contra as relações de consumo vender, ter em depósito para vender ou expor à venda, ou de qualquer forma, entregar matéria-prima ou mercadoria, em condições impróprias ao consumo”.
Esse tipo legal contém uma norma penal em branco, evidenciada pela expressão “impróprias ao consumo”, sendo tal complementada pelo art. 18, § 6º, do Código de Defesa do Consumidor, que consigna expressamente que “são impróprios ao uso e consumo os produtos cujo prazo de validade estejam vencidos”.
O tipo penal previsto no art. 7, inciso IX, da Lei n° 8.137/90, traduz, portanto, um crime de perigo abstrato, que é aquele em que “a lei proíbe certas formas de condutas que, segundo a experiência geral, são perigosas” (HANS JOACHIM HIRSCH, “Derecho Penal – obras completas”, tomo V, ed. Rubinzal Culzoni, 2011, p. 62).
Vale dizer que, para uma conduta ser considerada de perigo abstrato, basta que ela seja perigosa em geral para algum bem jurídico, ainda que não chegue a colocá-lo em perigo concreto e imediato de lesão, ou seja, é “suficiente que a ação usualmente traga perigos consigo” (cf. preleciona HANS WELZEL, “Derecho Penal Alemán”, Editoral Juridica de Chile, 2002, p. 76).
CLAUS ROXIN (“Derecho Penal, parte general”, tomo I, ed. Civitas, 1997, p. 336), por sua vez, assevera que “nos delitos de perigo abstrato o perigo típico de uma ação é motivo para sua penalização, sem que no caso concreto a punibilidade dependa da produção real de um perigo”.
O fundamento que justifica a punição do crime de perigo abstrato é, segundo GÜNTHER JAKOBS (“Derecho Penal – parte general”, ed. Marcial Pons, 1997, p. 210/211), a “periculosidade geral de um comportamento determinado ou de um comportamento com determinadas consequências” e, também, a necessidade de se padronizar determinados comportamentos para organizar um âmbito social normalizado de condutas.
A existência e validez dos crimes de perigo abstrato se justificam, também, pelo fato deles serem um meio bastante eficiente para a proteção de bens jurídicos (assim, p. ex., URS KINDHÄUSER, “Derecho Penal de la culpabilidad y conduta peligrosa”, ed. Universidad Externado de Colombia, 1996, p. 78), notadamente os bens de natureza coletiva e supraindividual (p. ex., meio ambiente, direito do consumidor etc.), o que, por si só, já legitima a antecipação excepcional da incidência do Direito Penal.
Nos delitos dessa natureza, o perigo é presumido pelo legislador, não sendo necessária, portanto, a prova da existência do perigo, afinal, trata-se de presunção absoluta de perigo, i.e., juris et de juri.
Logo, a simples prática da conduta, em si, já é suficiente para a sua punição no âmbito penal, bastando, portanto, a realização da ação prevista no tipo penal, mesmo que dela nenhum perigo reste comprovado (assim, por todos, ENRIQUE BACIGALUPO, “Derecho Penal – parte general”, ed. Hammurabi, 1999, p. 312/313).
Nessa linha já decidiu o e. Supremo Tribunal Federal, ao firmar entendimento no sentido de que “a tipificação da figura penal definida no art. 7º, IX, da Lei nº 8.137/90, por ser norma penal em branco, foi adequadamente preenchida pelo art. 18, § 6º, I, do Código de Defesa do Consumidor, que define como impróprio ao uso e consumo produto cujo prazo de validade esteja vencido. A exposição à venda de produto em condições impróprias ao consumo já configura o delito, que é formal e de mera conduta, consumando-se com a simples ação do agente, sendo dispensável a comprovação da impropriedade material” (RHC n° 80090/SP, Relator Min. ILMAR GALVÃO, Primeira Turma, julgado em 09/05/2000, DJ de 16-06-2000).
O c. Superior Tribunal de Justiça, por sua vez, possui reiterados precedentes no mesmo sentido, merecendo destaque, todavia, o REsp n° 620.237/PR, no qual o Min. FELIX FISCHER asseverou que “a conduta do comerciante que expõe à venda a matéria-prima ou mercadoria, com o prazo de validade vencido, configura, em princípio, a figura típica do art. 7º, inciso IX da Lei nº 8.137/90 c/c o art. 18 § 6º da Lei nº 8.078/90, sendo despicienda, para tanto, a verificação pericial, após a apreensão do produto, de ser este último realmente impróprio para o consumo. O delito em questão é de perigo presumido”.
Ante o exposto, conclui-se que a conduta daquele que vende, mantém em depósito para venda ou expõe à venda mercadorias com prazo de validade vencido, logo, em condições impróprias ao consumo (cf. art. 18, § 6º, I, da Lei n° 8.078/90), pratica o delito previsto no art. 7°, inciso IX, da Lei n° 8.137/90, sendo totalmente desnecessária a realização de perícia para se comprovar concretamente a impropriedade do bem para o consumo, afinal, trata-se de crime de perigo abstrato, que se consuma com a simples prática da conduta proibida, sendo a presunção de perigo de natureza absoluta (juris et de juri).
Post scriptum: ao artigo publicado originariamente no jornal Correio Braziliense e no periódico jurídico Carta Forense, acrescento as seguintes observações.
Como visto, o c. Superior Tribunal de Justiça, em seus mais recentes julgados, tem decidido no sentido de que não basta a venda ou exposição à venda de mercadoria com prazo de validade vencido para a configuração de crime contra a relação de consumo, devendo haver, necessariamente, a realização de perícia para confirmar se tal produto é realmente impróprio ao consumo.
Essa interpretação restringe a incidência do Direito Penal e de todo seu arsenal punitivo, e se mostra, aliás, bastante razoável, máxime se considerados os princípios da intervenção mínima (fragmentariedade e subsidiariedade – o Direito Penal como ultima ratio), lesividade etc.
Ocorre que o c. STJ ignorou por completo a natureza dos crimes de perigo abstrato, em que a presunção de perigo é absoluta, e que existem justamente para determinadas situações em que a antecipação da incidência do Direito Penal se mostra legítima e mesmo necessária para conter certos comportamentos que atentam, em especial, contra bens jurídicos coletivos e difusos.
Logo, a fundamentação do STJ não convence, muito embora a decisão seja, de fato, “compreensível”, afinal, “não se abatem pardais disparando balas de canhão” (JELLINEK).
Dessa forma, pode-se até mesmo se defender, de lege ferenda, a descriminalização da conduta descrita no tipo penal do art. 7°, inciso IX, da Lei n° 8.137/90, mas, por outro lado, deve-se fomentar uma atuação mais efetiva por parte dos órgãos de defesa do consumidor (p. ex., PROCON), que certamente poderiam resolver a questão no âmbito administrativo (p. ex., aplicando multas, suspendendo as atividades do estabelecimento comercial e, em casos mais graves, até mesmo atuar visando a cassação do alvará de funcionamento etc.), evitando-se, assim, a incidência do Direito Penal e de toda sua carga estigmatizante.
Mas, enfim, de lege lata, i.e., enquanto estiver em pleno vigor o delito descrito no art. 7°, inciso IX, da Lei n° 8.137/90, a conduta daquele que vende, mantém em depósito para venda ou expõe à venda mercadorias com prazo de validade vencido, logo, em condições impróprias ao consumo (cf. art. 18, § 6º, I, da Lei n° 8.078/90), pratica, sim, crime contra a relação de consumo, sendo, portanto, totalmente desnecessária a realização de perícia para se comprovar concretamente a impropriedade do bem para o consumo, afinal, trata-se de crime de perigo abstrato, que se consuma com a simples prática da conduta proibida, sendo a presunção de perigo de natureza absoluta (juris et de juri).