Sobre a constitucionalidade das ações afirmativas e o princípio da isonomia

24/05/2016 às 14:09

Resumo:


  • A discussão sobre cotas gera divergências sobre sua intenção política e o investimento na educação.

  • A aplicação das cotas é analisada à luz da Constituição Federal de 1988 e do princípio da isonomia.

  • A Lei nº 12.711 de 2012 estabelece critérios para preenchimento de vagas em instituições federais de ensino, com base em autodeclaração e em critérios socioeconômicos.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Breve análise dos dispositivos da Lei n° 12.711 e sobre a sua constitucionalidade, tendo em vista o princípio constitucional da isonomia.

A discussão que põe em pauta a questão das cotas ainda causa bastante divergência, questiona-se a sua intenção política de corrigir uma espécie de desvantagem histórica atribuída, por exemplo, aos descendentes de negros devido à escravidão, ou aos pobres pela falta de distribuição de riquezas, etc; por outro lado, também se questiona a tentativa das autoridades de mascarar uma falha não apenas histórica, mas atual, quanto ao escasso investimento na educação.

No entanto, o foco desta pesquisa será a analise da aplicação das cotas tomando como parâmetro a Constituição Federeal de 1988 e o princípio da isonomia, tirando daí o questionamento quanto à validade desse instrumento, seus pontos a favor e contra.

A Lei n° 12.711, sancionada em 29 de agosto de 2012 e dispõe sobre o ingresso nas universidades federais e nas instituições federais de ensino técnico de nível médio além de dar algumas outras providências, traz no bojo de ser artigo 3° a seguinte disposição:

Art. 3o  Em cada instituição federal de ensino superior, as vagas de que trata o art. 1o desta Lei serão preenchidas, por curso e turno, por autodeclarados pretos, pardos e indígenas, em proporção no mínimo igual à de pretos, pardos e indígenas na população da unidade da Federação onde está instalada a instituição, segundo o último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Parágrafo único.  No caso de não preenchimento das vagas segundo os critérios estabelecidos no caput deste artigo, aquelas remanescentes deverão ser completadas por estudantes que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas.

Esta lei, inclusive, já se encontra regulamentada pelo Decreto nº 7.824 também de 2012, que estabelece regras gerais quanto a reservas de vagas. E, estabelecendo conceitos básicos quanto à aplicação da lei, também há a Portaria Normativa n° 18/2012, do Ministério da Educação, prevendo modalidades de reservas de vagas e fixando condições de concorrência para as vagas reservadas, estabelecendo sistemáticas de preenchimento das mesmas.

A política de cotas, também conhecida como ações afirmativas, consiste na reserva de uma quantidade determinada de vagas para instituições públicas separadas para a disputa entre pessoas classificadas em uma espécie de grupo caracterizado pela carência de apoio, selecionados levando em conta a escassez dos membros que o compõem praticando a atividade acadêmica.

Até este ponto, parece inteiramente justo que pessoas menos abastadas, que não tiveram oportunidades de acesso aos bens e aos meios, concorram com pessoas presumidamente do mesmo nível. No entanto, a questão se complica quando se envolve este critério segregacionista em um processo seletivo que prima pelo critério do mérito, onde os mais preparados em tese deveriam por direito ocupar as melhores vagas.

Aparentemente, o princípio da isonomia, defesa no caput do art. 5° da Constituição Federal de 1988, sofre uma agressão evidente na pratica das ações afirmativas, visto que seleciona parte da sociedade, seguindo um padrão que pode variar entre classe social, etnia, gênero ou outros, e atribui a esta fatia social um direito diferenciado. O resultado prático se revela quando constatamos que candidatos com determinadas classificações perdem vagas para outros candidatos com desempenho inferior por não estarem concorrendo em categorias iguais. Evidencia-se aí o privilégio que fere o princípio de que todos são iguais perante a lei.

Por outro lado, como bem aplica do autor da obra Racismo e Antirracismo no Brasil, Antonio Sergio Alfredo Guimarães, nos ensina que as ações afirmativas são na verdade um mecanismo para promover a equidade e integração sociais, apesar de não parecer claro ao senso comum, exatamente encontrar seu fundamento na reinteração do mérito individual e da igualdade de oportunidades por levar em conta a desigualdade social e palpável. Seriam, portanto, as cotas um “aprimoramento jurídico de uma sociedade cujas normas e mores se pautam pelo princípio da igualdade de oportunidades na competição entre indivíduos livres. E, defende ainda, que um requisito preciso dessas políticas é que sua utilização deve ser temporária e limitada a um âmbito restrito, ou seja, não para beneficiar – por exemplo – os negros em todos os âmbitos, mas apenas naqueles em que se apresentam obstáculos, sendo utilizada apenas como forma de restituir a igualdade de oportunidades. Vê-se aqui o dinamismo da frase “tratar os iguais com igualdade, e os desiguais de maneira desigual”. Pois, na sua opinião, não se questiona que o mérito deva ser o principal meio de acesso à essas instituições, mas trata-se de evidenciar que esse mérito e os dotes intelectuais estão sendo retardados para determinadas esferas sociais por desigualdades raciais e de classe. Portanto, para este autor, a questão da isonomia defendida no art. 5° deve ser levada para além da estática puramente teórica.

Ora, segundo aponta Antonio S. A. Guimarães em seus apontamentos voltados enfaticamente para os negros, os estudos disponíveis sobre as desigualdades raciais, no Brasil, são unânimes em apontar que existe um resíduo nas explicações sobre as desigualdades de renda, educação, habitação, saúde etc, que deve ser atribuído a diferenças raciais.

Por outro lado, autores libertários, embalados na máxima do laissez faire, laissez passer, como Kant defendem que mesmo os objetivos mais louváveis devem sobrepor-se aos direitos individuais. No entanto, quanto mais nos limitamos no critério do mérito, atribuindo às nossas conquistas um certo mérito individualista, menos responsabilidade sentiremos em relação aos desprovidos de tais qualidades.

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O autor Michael Sandel, em sua obra Justiça – O que é fazer a coisa certa, no capítulo em que trata de ações afirmativas também nos trás alguns questionamentos pertinentes, trazendo-nos três razões bastante utilizadas pelos defensores das ações afirmativas. Primeiramente, a correção das falhas dos testes, ou seja, tentar adequar uma espécie de processo seletivo que é padronizado a capacidade individual de cada concorrente. Em segundo lugar, a compensação por danos do passado, que o próprio desmistifica ao dizer que “os beneficiados não necessariamente aqueles que sofreram, e os que acabam pagando pela compensação raramente são os responsáveis pelos erros que estão sendo corrigidos”. E em terceiro, a promoção da diversidade, razão mais louvável e fundada dentre as três razões, pois se trata aqui não de compensar o beneficiado, mas de alcançar um objetivo mais importante, em nome do bem comum.

No entanto, ainda paira a questão quanto à violação de direitos. Sandel através de alguns pensamentos do teórico Dworkin nos leva a concluir que a diferença crucial entre a política de cotas e a segregação racial se encontra na intenção em que cada uma é praticada. A primeira visando o objetivo de integração social, dando apoio às parcelas da sociedade desprovidas de maiores oportunidades, e o bem comum, em síntese, enquanto a segunda tem um caráter indissociavelmente preconceituoso. Por esse lado concluímos, que estas razões não são o bastante para cessar a discussão quanto aos benefícios e malefícios das ações afirmativas, mas é inegável a sua transparente força de caráter moral.

Afinal de contas, se fundando agora no teórico Rawls, Sandel afirma que nem mesmo somos responsáveis pelos méritos que temos, levando em conta a tese que “ninguém merece ter maior capacidade natural ou ocupar um ponto de partida privilegiado na sociedade”. Estes são frutos do acaso e não do nosso mérito intrínseco, sendo caracterizados cruamente como sorte.

Nada mais justo do que constatar-se empiricamente que os nichos de privilégios meritocráticos são tomados por grupos dominantes. Portanto, nada mais justo do que a aplicação de uma política compensatória para viabilizar o acesso a tais nichos tão exclusivos.

Portanto, concluímos que, é certo que o dispositivo constitucional apregoa o tratamento igual para todas as pessoas. No entanto, a constituição também garante, entre outros direitos, o acesso à educação. E, levando em conta, as defasagens no apoio do governo quanto ao sustento dos projetos voltados ao Ensino, a política de cotas tem se mostrado como alternativa aceitável para o nivelamento da situação.

REFERÊNCIAS

Portal Mec. Entenda as cotas para quem estudou todo o ensino médio em escolas públicas. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/cotas/perguntas-frequentes.html>. Acesso em: 27 de maio, 2013.

BRASIL. Lei n° 12.711, de 29 de agosto de 2012. Dispõe sobre o ingresso nas universidades federais e nas instituições federais de ensino técnico de nível médio e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2012/Lei/L12711.htm>. Acesso em: 27 de maio, 2013.

SANDEL, Michael J. Justiça – O que é fazer a coisa certa. Editora Civilização Brasileira. 2012, 6° Ed.

GUIMARÃES, Antônio Sérgio Alfredo. Racismo e Antirracismo no Brasil. Editora 34. 1999, 2° Ed.

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