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O perigo do alargamento da imunidade recíproca

02/09/2016 às 18:20
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Para que não haja afronta ao texto constitucional, permeado de princípios que regem o Direito Tributário, cabe ao aplicador do princípio da imunidade recíproca separar a exploração da atividade econômica da prestação de serviço público delegado.

Há uma tendência muito grande da jurisprudência de ampliar o âmbito de aplicação da imunidade tributária recíproca a favor das entidades paraestatais (sociedades de  economia mista e empresas públicas), sem que houvesse qualquer alteração do texto do art. 150, VI, a, da CF, in verbis:

Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

...

VI – instituir impostos sobre:

a) patrimônio, renda ou serviços, uns dos outros;

A partir da imunidade recíproca dos serviços públicos delegados a ECT, seguiu-se a imunidade recíproca dos serviços prestados pela INFARERO, ambas empresas públicas, isto é, constituídas por capital exclusivo da União.

No que tange aos serviços públicos da União, cuja execução se encontra  delegada à entidade estatal, entendemos correto o reconhecimento da imunidade recíproca, pois no caso da ECT ela está executando o serviço público no lugar da União, porque a manutenção do serviço postal e do correio aéreo nacional é da competência da União (art. 21, X da CF).

Mas sabemos que a ECT vem explorando, em caráter comercial, a prestação de outros serviços, como os de entrega de jornais, revistas, livros e mercadorias diversas, que não têm pertinência com os serviços de entrega de correspondências fechadas. Nessas hipóteses, incidem os §§ 1º e 2º, do art. 173, da CF, que prescrevem que as empresas públicas e sociedades de economia mista, na exploração de atividade econômica, sujeitam-se  ao mesmo regime jurídico das empresas privadas, não podendo usufruir de privilégios fiscais não extensivos às do setor privado.

Do contrário, o regime econômico de livre iniciativa adotado pela Constituição (art. 170, caput) e que tem no princípio da livre concorrência a espinha dorsal desse regime (art. 170, IV da CF) restaria vulnerado, pois, sabidamente, nenhuma empresa privada poderia concorrer com o Estado, gigante pela própria natureza.

Não apenas os serviços públicos delegados, como é o caso daqueles relacionados à entrega de cartas fechadas, como também o patrimônio privado da ECT, vêm sendo imunizados à sombra daquele art. 150, VI, a da CF, desde que a totalidade da renda seja aplicada na consecução de seu objetivo. Pergunta-se: qual objetivo? O de explorar o correio aéreo e o serviço postal, ou o de obter lucros mediante a exploração da atividade econômica que a Constituição deferiu ao setor privado? Onde, afinal, o imperativo da segurança nacional ou relevante interesse coletivo de que trata o art. 173 da CF para cometer à ECT a exploração de atividade econômica estranha à execução do serviço publico delegado?

Assim, toda a frota de veículos da ECT está livre do IPVA como se esses veículos fossem utilizados na distribuição de cartas fechadas. Os prédios também estão imunes em relação ao IPTU. Aproveitando-se da jurisprudência da Corte Suprema, uma outra empresa estatal, a SABESP está discutindo a imunidade recíproca, não do serviço de águas e esgotos, mas do IPTU incidente sobre bens imóveis componentes de seu patrimônio. Logo virão as imunidades de suas rendas. Não cheguei a examinar, mas tenho minhas dúvidas quanto à PETROBRAS, uma ex gigante no setor de exploração e comercialização de petróleo e seus derivados.

À medida que vai se ampliando o elenco das pessoas físicas ou jurídicas a salvo de tributos, vai se aumentando a carga tributária das pessoas que estão fora dos benefícios ou incentivos tributários, em que se insere a espécie imunidade. Isso vulnera o princípio basilar da generalidade da tributação, assim como o princípio da universalidade da tributação, a fim de que o encargo tributário seja suportado por todos na proporção exata de sua capacidade contributiva. E a violação desse princípio tributário acarreta a vulneração do princípio da isonomia tributária que, por sua vez, acarreta a violação de outros princípios constitucionais tributários, desencadeando uma espiral de afrontas sem limites.

A exegese do art. 150,VI, a toda evidência, refere-se a “serviços uns dos outros”, isto é, serviços recíprocos das entidades componentes da Federação. Não há, nem pode haver, “patrimônio ou renda uns dos outros”.  

Uma interpretação ampliativa do inciso VI, a, do art. 150, do texto constitucional não pode implicar esvaziamento total do conteúdo do art. 170, IV e §§ 1º e 2º, do art. 173 da CF. Isso seria afrontar um dos princípios constitucionais de interpretação de normas constitucionais, qual seja, o princípio da concordância prática ou da harmonização, destinado a promover a harmonia entre os preceitos interpretados e evitar que se extraia a eficácia plena de uma norma, à custa do esvaziamento total de outra norma.

Outrossim, a razão da imunidade recíproca reside, de um lado, no fato de que os entes políticos já pagam tributos in natura por meio da prestação de serviços e, de outro lado, na necessidade de preservação do princípio federativo, a convivência harmônica das entidades políticas componentes do Estado Federal Brasileiro[1], em virtude dos atritos que a relação jurídico-tributária causa entre as partes.

É o que está acontecendo. Se o Estado pode constituir uma empresa estatal para explorar atividades cabentes ao setor privado, mas, atribuindo-lhes, ao mesmo tempo, a execução de um ou outro serviço público, cabe ao aplicador do princípio da   imunidade recíproca separar a exploração da atividade econômica da prestação de serviço público delegado. Do contrário, a confusão poderá gerar efeitos imprevisíveis decorrentes do desvio de finalidade, comprometendo, em bloco, todos princípios que regem a administração pública, inscritos no art. 37 da CF: a moralidade pública, a legalidade, a impessoalidade, a publicidade e a eficiência.

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Nota

[1] Cf. nosso Direito financeiro e tributário. 25ª ed. São Paulo: Atlas, 2016, p. 417.

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Sobre o autor
Kiyoshi Harada

Jurista, com 26 obras publicadas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 20 (Ruy Barbosa Nogueira) da Academia Paulista de Letras Jurídicas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 7 (Bernardo Ribeiro de Moraes) da Academia Brasileira de Direito Tributário. Acadêmico, Titular da cadeira nº 59 (Antonio de Sampaio Dória) da Academia Paulista de Direito. Sócio fundador do escritório Harada Advogados Associados. Ex-Procurador Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

HARADA, Kiyoshi. O perigo do alargamento da imunidade recíproca. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4811, 2 set. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/49432. Acesso em: 19 mar. 2024.

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