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Auxílio-reclusão: incentivo ao crime ou um meio de garantir o princípio fundamental da dignidade humana?

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2. DA VINGANÇA PRIVADA AO AUXÍLIO-RECLUSÃO

O auxílio-reclusão é um benefício concedido após a condenação do contribuinte por ter praticado um crime. É sabido que todo crime é suscetível de uma sanção, podendo esta sanção ser uma pena – a qual se caracteriza por determinar a restrição de um bem jurídico do autor do crime. A doutrina penalista entende que tal sanção poderá servir como uma prevenção, isto é, como uma forma de evitar que outros delitos sejam cometidos; como um meio de ressocialização, pois o infrator quando recluso teria a oportunidade de se “regenerar”; ou ainda, como uma punição ao crime realizado (GRECO, 2006, p. 524-525).  No entanto nem sempre o jus puniendi se caracterizou dessa forma (LOPES, 2008, p. 264-265).

Na antiguidade, os povos não detinham de uma instituição política organizada como o Estado, tampouco detinham de um arcabouço jurídico limitador e norteador das condutas humanas – o que beneficiava a perpetuação da prática do olho por olho dente por dente previsto na lei do Talião, com o fulcro de retribuir o mal realizado na mesma intensidade em que foi cometido (MONTESQUIEU, 2010, p.105). A realização da punição com as próprias mãos é conhecida como vingança privada, cuja ideia era vingança imediata e proporcional a gravidade do delito cometido, bem como a extensão da punição às famílias do autor do crime. Nesse sentido aduz Maércio Falcão Dutra:

“Na denominada fase da vingança privada, cometido um crime, ocorria a reação da vítima, dos parentes e até do grupo social (tribo), que agiam sem proporção a ofensa, atingindo não só o ofensor, como todo o seu grupo. A inexistência de um limite (falta de proporcionalidade) no revide à agressão, bem como a vingança de sangue foi um dos períodos em que a vingança privada constituiu-se a mais freqüente forma de punição, adotada pelos povos primitivos.”[4]

Com a formação do Estado, surgiram normas com intuito de assegurar que caberia ao Estado a punição somente à pessoa do infrator, sendo que jamais a punição poderia ser estendida à família do criminoso, que em nada contribuiu para o cometimento do delito. Assim, o ordenamento jurídico brasileiro, passou a proteger aqueles que não concorreram para o crime, principalmente a família do infrator, salvaguardado seus direitos a liberdade, a vida, entre outros. Nesse diapasão a Constituição Federal de 1988 prevê em seu Art. 5º, XLV:

“Nenhuma pena passará da pessoa condenado, podendo a obrigação de reparar o dano e a decretação do perdimento de bens ser, nos termos da lei, estendidas aos sucessores e contra eles executadas, até o limite do valor do patrimônio transferido”

Nessa perspectiva é que a Lei Orgânica da Previdência Social criada, na década de 60, e o texto Constitucional de 1988 abordam o chamado Auxílio-Reclusão com o manifesto propósito de garantir a subsistência da família do segurado, detento ou recluso, fazendo com que a família deste não seja atingida pelo delito por ele cometido.

Dessa forma, não obstante existir inúmeras críticas acerca do auxílio-reclusão, o fundamento do benefício em comento está na necessidade de amparo à família do segurado preso, a qual se fragiliza com a perda temporária de sua fonte de subsistência. Nessa esteira preceitua abalizada doutrina do jurista Russomano, em sua obra “Curso de previdência social” (2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1983; p. 294-5):

“O detento ou recluso, por árdua que seja sua posição pessoal, está ao abrigo das necessidades fundamentais e vive as expensas do Estado. Seus dependentes, não. Estes se vêem, de um momento para o outro, sem o arrimo que os mantinha e, não raro, sem perspectiva de subsistência”

Diante disso, é justificável à preocupação acadêmica com o tema, pois busca despertar os protagonistas do Direito, bem como toda sociedade civil para a importância social da matéria, evitando-se as combatidas situações de injustiça, e a extensão dos efeitos da pena ou da prisão aos familiares do preso.

Ademais, além da preocupação científica, social, jurídico-legal, não se pode deixar de advertir que pelos Princípios da “Personalidade” e “Individualização das Penas”, previstos no art. 5º, respectivamente nos incisos XLV e XLVI, da Constituição da República 1988, nenhuma pena passará da pessoa do condenado, ou seja, o cumprimento é personalíssimo, seja qual for sua natureza.

A título de ressalva, insta consignar que não se tem notícia da existência em outro país de benefício equivalente ao auxílio–reclusão, instituído, pioneiramente, pelo extinto Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Marítimos – IAPM, seguindo-se, após breve lapso de tempo, pelo também extinto Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Bancários – IAPB, e generalizado pela Lei Orgânica da Previdência Social – LOPS (Lei nº 3.807, de 26 de agosto de 1960). Hodiernamente o "auxílio-reclusão" constitui benefício da Previdência Social e é regulado pela Lei n.8.213, de 24 de junho de 1991, além de ter sua previsão na Carta Magna de 1988, senão vejamos:

Art. 201. A previdência social será organizada sob a forma de regime geral, de caráter contributivo e de filiação obrigatória, observados critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial, e atenderá, nos termos da lei, a:

[...]

IV - salário-família e auxílio-reclusão para os dependentes dos segurados de baixa renda;

Além disso, do ponto de vista do “Princípio Constitucional da Legalidade”, atualmente, as regras gerais sobre o benefício em estudo encontram-se amparadas, também, pelo art. 80 da Lei 8.213/91, e nos arts. 116 a 119, do Decreto 3.048/99.

No entanto, somente a partir de 1998, o INSS implantou a rotina mensal de controle automático de renovação da declaração do cárcere, o que gerou maior controle na concessão e manutenção do auxílio-reclusão, deixando-o menos susceptível a fraudes. Anteriormente, esse controle era feito manualmente, ou seja, se o segurado não apresentasse a devida declaração, o sistema não bloqueava o pagamento do benefício.

A reforma constitucional previdenciária, consubstanciada na EC nº 20/98, vedou a utilização dos recursos provenientes das contribuições previdenciárias para a realização de despesas distintas do pagamento de benefícios do Regime Geral de Previdência Social (RGPS); mudou o conceito de tempo de serviço para tempo de contribuição; introduziu mudanças nas regras de concessão de benefícios e na alocação de receitas previdenciárias; vedou a utilização de contagem de tempo de contribuição fictício; introduziu o pagamento seletivo do salário-família e do auxílio-reclusão para os segurados de baixa renda.

Todas essas medidas foram tomadas com o intuito de resgatar o caráter contributivo da Previdência Social, tornando-a financeiramente sustentável, como forma de garantir o pagamento dos benefícios às próximas gerações. Posto que antes da EC nº 20/98, não havia previsão para a concessão do auxílio-reclusão, apenas, aos dependentes do segurado de baixa renda, a Lei autorizava a concessão do auxílio-reclusão aos dependentes do segurado recolhido à prisão, independentemente do valor do seu último salário de contribuição.

Assim, pode-se dizer que ocorreu um retrocesso nos direitos do segurado previdenciário, quanto ao auxílio-reclusão, diante da promulgação da EC nº 20/98, por ter limitado o recebimento do benefício aos segurados de baixa renda.[5]


3. AUXÍLIO-RECLUSÃO COMO UM DIREITO FUNDAMENTAL

O deputado federal Fernando Franchischini (PR) elaborou a PEC 30/2011 objetivando limitar a concessão do auxílio-reclusão. A proposta prevê que nos crimes de estupro, tráfico de drogas e homicídio o benefício não deverá ser concedido. Há aqui uma grande inversão da finalidade deste benefício. Pois tal proposta atrela à concessão do auxílio-reclusão a gravidade do crime cometido – o que de forma alguma deve ser levado em consideração, até por que o mesmo não é devido ao autor do delito e sim aos seus dependentes – os quais nada tem haver com o crime praticado.

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Se tentarmos punir o autor do crime através da suspensão do auxílio a seus beneficiários, estaremos retornando ao período da vingança privada, onde a sanção não estava restrita a figura do autor da infração, mas a todo aquele que tivesse ligação com este. Diante disso, partindo do pressuposto que o ordenamento penal proíbe que terceiros sejam punidos por crimes que não cometeram, não há por que se levar em conta uma proposta que é fundamentada nesta diretriz.

Então o fato de o auxilio em questão tentar garantir a dignidade humana dos dependentes do preso segurado, não o coloca em situação superior e/ou privilegiada em relação à vitima ou seus familiares, apenas garante a proteção prevista na Constituição Federal brasileira. Assim, aduz Daniel Mourgues Cogoy[6]:

“De fato, cabe ao condenado arcar com as consequências de seu delito. Porém esta responsabilidade não se estende aos seus familiares. Ora, não bastasse o sofrimento da família em ser alijada do convívio do recluso, em razão de evento para o qual não concorreu, a prisão do segurado pode gerar toda uma série de consequências econômicas para seus dependentes. Cabe ao Estado o dever de zelar pela minimização de tais prejuízos”[7]

Destarte, preceitua Ribeiro (2008, p. 241): “o amparo que o auxílio-reclusão fornece aos seus dependentes tem caráter alimentar, e destinação aos dependentes do segurado de baixa renda”. Sendo assim, configura-se como um direito fundamental de suma importância para os beneficiários, contribuindo para uma melhor distribuição de renda. Nesse sentindo, verifica-se que o papel da previdência social é diminuir as desigualdades sociais e econômicas.

Deste modo, ratifica-se a idéia de que a Seguridade Social tem a solidariedade social como um princípio basilar de atuação. Isto porque, as circunstâncias que atingem a um indivíduo necessitado, acabam consequentemente afligindo a toda a sociedade. Assim quem detém maiores condições financeira para custear a seguridade social, contribuem relativamente a sua capacidade.

O auxílio-reclusão tem natureza jurídica de prestação pecuniária que só é aprovada quando preenchido os requisitos legais, atrelada a cláusula suspensiva quando não mais convier seu pagamento com intuito do provimento familiar. O benefício tem tabém, fundamento constitucional com intuito de promover a proteção da família, não penalizando os dependentes do preso, porém respeitando a individualização da pena. É um benefício de prestação continuada, devido somente aos dependentes do segurado preso que contribui com a previdência.

Desta maneira, segundo os últimos dados fornecidos pelo INSS cerca de 46.000 (quarenta e sei mil) dependentes foram beneficiados pela concessão do auxílio-reclusão no país – o que evidencia que, embora muito criticado, o auxílio em questão, está ajudando milhares de famílias. Afinal caso este não fosse outorgado a essas pessoas, estas certamente não teriam meios para sobreviver, visto que o responsável pelo sustento delas, ao cometer o crime, estaria privado de cumprir com seu dever[8].

Por conseguinte, no que tange a Cidade de Camaçari na Bahia a concessão dos benefícios previdenciários é vista como extremamente eficiente, visto que possui uma legislação previdenciária própria – o que facilita a concessão destes direitos ao cidadão.

Nessa esteira, observa-se a Lei nº 997 de 25 de agosto de 2009 – a qual, estabelece em seu art. 27, § 1º e ss. e art. 28, § 1º e ss, a outorga do benefício do auxílio-reclusão, bem como os critérios para que este seja concedido. Deste modo, a elaboração de um código previdenciário próprio contribui muito para a melhoria do sistema previdenciário de cada região, hodiernamente apenas 33 dos 417 municípios baianos possuem um arcabouço previdenciário próprio[9].

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Sobre os autores
Emily Rosas Souza Farias

ADVOGADA, graduada pela Universidade do Estado da Bahia- UNEB. Hodiernamente, é discente do curso de Pós Graduação em DIREITO TRIBUTÁRIO da Universidade Católica de Salvador - UCSAL.

Adriel Rolim

Advogado

Bruno Gama

Advogado

Adriel Rolim

Advogado.

Bruno Gama

Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FARIAS, Emily Rosas Souza Farias ; ROLIM, Adriel et al. Auxílio-reclusão: incentivo ao crime ou um meio de garantir o princípio fundamental da dignidade humana?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4726, 9 jun. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/49580. Acesso em: 20 abr. 2024.

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