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Diretrizes constitucionais aplicadas no âmbito do Direito Processual Penal

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A vigente Constituição Federal veio a coroar o longo processo de superação do regime ditatorial inquisitivo que norteava as regras jurídicas relativas à "persecutio criminis" em nosso País, sedimentando, no âmbito da Lei Maior, o modelo acusatório no Processo Penal brasileiro.

INTRODUÇÃO

A vigente Constituição Federal, promulgada em 05 de Outubro de 1988, veio a coroar o longo processo de superação do regime ditatorial inquisitivo que norteava as regras jurídicas relativas à persecutio criminis em nosso País, sedimentando, no âmbito da Lei Maior, o modelo acusatório no Processo Penal brasileiro.

Em consonância com o contemporâneo Estado Democrático de Direito, expressamente adotado pela Carta Política em seu artigo 1°, e com o contexto democrático que se insurgia contra uma tradição politicamente autoritária e juridicamente defasada, o novo texto constitucional vem ao encontro das modernas aspirações sociais, prestigiando a nítida separação de papéis entre acusador, julgador e defensor, bem como conferindo ao acusado o status de titular de direitos e não mais objeto da persecução.

Para tanto, a Constituição Cidadã consagra princípios fundamentais a fim de resguardar a dignidade da pessoa humana e, sobretudo, os direitos e garantias daqueles que se vêem acusados da prática de delitos. Exemplos claros de tais princípios são, dentre outros, a igualdade, a legalidade, o devido processo legal, o juiz natural, o contraditório, a ampla defesa, a publicidade dos atos processuais, a presunção de inocência e o in dubio pro reo.

Ocorre, entretanto, que o atual Código de Processo Penal foi inspirado no contexto histórico, político e social da segunda metade dos anos trinta e criado sob a égide da Carta de 1937, subsistindo, desde então, às Constituições de 1946, 1967 e 1969, até a atual.

Face a Constituição Federal de 1988, o regramento contido no vetusto Código de Processo Penal clama por mudanças, sendo certo que, diante das novas diretrizes constitucionais, a necessidade de releitura dos dispositivos processuais é premente e indispensável ao diligente operador do Direito que tem na Constituição Federal de 1988 os princípios basilares de todo o ordenamento jurídico pátrio.

O escopo do presente trabalho é justamente abordar a influência das diretrizes fundamentais, constantes na Lei Maior, em alguns dos dispositivos do atual Código de Processo Penal, que, se não revogados, ao menos são carecedores de uma nova leitura, sob o prisma da roupagem democrática e humanista apregoada pela vigente Constituição à ordem jurídica.

A partir da compilação de idéias de insignes doutrinadores e da notícia de relevantes jurisprudências, serão comentados os mais importantes princípios constitucionais que vêem a limitar o poder punitivo do Estado e humanizar as relações entre acusador, acusado e julgador, sempre em cotejo com as disposições infraconstitucionais previstas no Código de Processo Penal.


1. linhas gerais sobre o ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

O artigo 1° da Constituição Federal de 1988 estabelece que "a República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I – a soberania; II – a cidadania; III – a dignidade da pessoa humana; IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V – o pluralismo político", asseverando que "todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente", nos termos da Lei Maior (parágrafo único, art. 1°).

É clara a disposição do legislador constituinte em adotar o regime do Estado Democrático de Direito para nortear os ditames da República Brasileira, reunindo, destarte, os princípios do Estado Democrático e do Estado de Direito, não apenas na junção formal dos elementos que os compõem, mas engendrando um conceito novo, revolucionário, que os supera.

Em síntese, ensina-nos Alexandre de Moraes que o Estado Democrático de Direito representa a exigência do regramento por normas democráticas, com eleições livres, periódicas e com ampla participação popular, além do respeito das autoridades públicas aos direitos e garantias fundamentais da pessoa humana. Cuida-se, portanto, da junção do princípio da legalidade com o princípio democrático, naquilo que ambos têm de salutar ao cotejo do império da lei com a realidade política, social e econômica do Estado. Em outras palavras, o formalismo legal destituído de conteúdo - apregoado pelo Estado de Direito – é mitigado pela participação efetiva e operante do povo na vida política do país em busca da justiça social.

Sobre o tema, José Afonso da Silva leciona que "o princípio da legalidade é também um princípio basilar no Estado Democrático de Direito. É da essência do seu conceito subordinar-se à Constituição e fundar-se na legalidade democrática. Sujeita-se, como todo Estado de Direito, ao império da lei, mas da lei que realiza o princípio da igualdade e da justiça não pela sua generalidade, mas pela busca da igualização das condições dos socialmente desiguais". Continuando, o eminente doutrinador conclui que o Estado Democrático de Direito "é um tipo de Estado que tende a realizar a síntese do processo contraditório do mundo contemporâneo, superando o Estado capitalista para configurar um Estado promotor de justiça social que o personalismo e o monismo político das democracias populares sob o influxo do socialismo real não foram capazes de construir".


2. CONSTITUIÇÃO, PROCESSO E ESTADO

As Constituições escritas e rígidas dos Estados Unidos da América (1787) e da França (1791) são consideradas a origem formal do constitucionalismo, inovando ao estatuir a organização do Estado e a limitação do poder estatal, por meio da previsão de direitos e garantias fundamentais.

Como sabido, o Direito Constitucional é um ramo do Direito Público que tem como produto legislativo máximo a própria Constituição. Destaca-se, nos dizeres de Alexandre de Moraes, in verbis:

"por ser fundamental à organização e ao funcionamento do Estado, à articulação dos elementos primários do mesmo e ao estabelecimento das bases da estrutura política. Tem, pois, por objeto a constituição política do Estado, no sentido amplo de estabelecer sua estrutura, a organização de suas instituições e órgãos, o modo de aquisição e limitação do poder, através, inclusive, da previsão de diversos direitos e garantias fundamentais".

Atualmente, encontra-se pacificado que também é ramo do Direito Público o Direito Processual, com seus fundamentos principais fixados pelo Direito Constitucional, onde é estabelecida a estrutura dos órgãos jurisdicionais, garantida a distribuição da justiça e a efetividade do direito objetivo e consagrados os princípios processuais. Cintra, Grinover e Dinamarco esclarecem que, de fato, alguns dos princípios gerais que orientam o Direito Processual são, de igual forma, princípios constitucionais ou seus corolários, tornando-se inegável o paralelismo existente entre a disciplina do processo e o regime constitucional em que o processo se desenvolve.

Dizem os insignes professores que, hoje, "acentua-se a ligação entre processo e Constituição no estudo concreto dos institutos processuais, não mais colhidos na esfera fechada do processo, mas no sistema unitário do ordenamento jurídico". Prosseguem afirmando que o processo não é apenas instrumento técnico, mas sobretudo ético, fortemente influenciado por fatores históricos, sociológicos e políticos, e que é justamente a Constituição a resultante do equilíbrio de forças políticas existentes na sociedade num dado momento histórico e, por consegüinte, constitui-se no "instrumento jurídico de que deve utilizar-se o processualista para o completo entendimento do fenônemo processo e de seus princípios". O processo deixa de ser um simples instrumento de justiça para transformar-se em garantia de liberdade.

Sendo assim, conclui-se que a concepção dominante no Estado, representada pelos valores que prevalecem em determinado momento histórico, retratados na Constituição do país, influencia diretamente o tratamento que será dispensado ao indivíduo em relação aos seus direitos e garantias, uma vez que, salienta Scarance Fernandes, "as construções jurídicas, indistintamente, são permeadas pela ideologia política, social e ética da época em que são elaboradas". Deste íntimo relacionamento que há entre Estado e processo, resulta a crescente inserção nos textos constitucionais de princípios e regras de Direito Processual, elevando ao patamar da Lei Maior as principais normas processuais.


3. instrumentalidade do processo penal

Fernando da Costa Tourinho Filho classifica a finalidade do Direito Processual Penal em duas: mediata e imediata. Quanto à primeira, confunde-se com a própria finalidade do Direito Penal, qual seja, um instrumento a serviço da paz social. Nesse sentido, Cintra, Grinover e Dinamarco esclarecem, com irreparável brilhantismo, que, in verbis:

"Falar em instrumentalidade do processo, pois, não é falar somente nas suas ligações com a lei material. O Estado é responsável pelo bem-estar da sociedade e dos indivíduos que a compõem: e, estando o bem-estar social turbado pela existência de conflitos entre pessoas, ele se vale do sistema processual para, eliminado os conflitos, devolver à sociedade a paz desejada. O processo é uma realidade desse mundo social, legitimada por três ordens de objetivos que através dele e mediante o exercício da jurisdição o Estado persegue: sociais, políticos e jurídico. A consciência dos escopos da jurisdição e sobretudo do seu escopo social magno da pacificação social constitui fator importante para a compreensão da instrumentalidade do processo, em sua conceituação e endereçamento social e político".

Os citados doutrinadores lecionam sobre o aspecto positivo da relação que liga o sistema processual à ordem jurídico-material e ao mundo das pessoas e dos Estados, alertando para a necessidade de o processo ser efetivo, capaz de servir de eficiente caminho à ordem jurídica justa. Fala-se também em sua faceta negativa, a medida que não é um fim em si mesmo e, portanto, não deve ser guinado à fonte geradora de direitos. Na esteira desses pensamentos, observam Cintra, Grinover e Dinamarco que "os sucessos do processo não devem ser tais que superem ou contrariem os desígnos do direito material, do qual ele é também um instrumento". Desse aspecto negativo da instrumentalidade do processo é que deriva o princípio da instrumentalidade das formas, de acordo com o qual as exigências formais do processo, quando não cumpridas, apenas poderão invalidar os atos praticados se forem indispensáveis para a consecução dos objetivos desejados.

Sob este prisma, chega-se à finalidade imediata do Processo Penal que é tornar realidade o Direito Penal, ou seja, conseguir a "realizabilidade da pretensão punitiva derivada de um delito, através da utilização da garantia jurisdicional". Trata-se, em suma, de finalidade dirigida à aplicação do direito penal objetivo, porquanto para a imposição de pena faz-se necessário o devido processo legal.

Numa acepção mais completa, José Frederico Marques entende que o Processo Penal, enquanto mecanismo de solução da lide penal, busca "a aplicação justa das normas de Direito Penal a um pretensão fundada em fato penalmente relevante, que constitua objeto da função jurisdicional". Tem-se, assim, uma finalidade eminentemente prática que se consubstancia em aplicar a lei penal ao fato concreto.

Outro aspecto há de ser observado quanto à finalidade do Processo Penal, especialmente considerado no Estado Democrático de Direito. O Estado é o único titular da jurisdição e, conseqüentemente, sobretudo na seara penal, do poder de aplicar o direito ao conflito de interesses no qual, via de regra, encontra-se envolvido o status libertatis do indivíduo. Ocorre que quanto maior for a liberdade do Estado em agir na aplicação da lei penal, maior será a possibilidade da incidência de abusos e desvios. Por isso, o próprio Estado Democrático de Direito se autolimitou, estabelecendo um compromisso político e ético na escolha dos fins do Processo Penal, visando a garantir à sociedade e aos indivíduos o exercício pleno de seus direitos e garantias fundamentais. Nesse contexto, o Processo Penal encontra no binônimo pacificação social x liberdade do indivíduo um dilema na persecução de seus fins.

Sobre o assunto, manifesta-se Marcus Alan de Melo Gomes, esclarecendo que, in verbis:

"A busca da paz social por intermédio da aplicação da lei penal – adotada esta como ultima ratio – deve achar um ponto de equilíbrio exato, de modo a não constranger a liberdade do indivíduo. O processo penal, num Estado Democrático de Direito, deve zelar, sobretudo, pela preservação da liberdade jurídica da pessoa humana, assegurando o exercício pleno dos direitos e garantias fundamentais previstos na Constituição. Assim, não bastará a aplicação da lei penal ao caso concreto, se não forem respeitados os princípios constitucionais que asseguram os valores da liberdade e dignidade do homem".


4. limites constitucionais ao poder PUNITIVO DO ESTADO

Conforme já salientado, o poder punitivo do Estado encontra seus limites nos preceitos constitucionais, em especial naqueles que resguardam a intangibilidade do jus libertatis titularizado pelo réu.

Afirma Édson Luís Baldan que, in verbis:

"o processo penal condenatório não é um instrumento de arbítrio do Estado. Ele representa, antes, um poderoso meio de contenção da persecução penal. Ao delinear um círculo de proteção em torno da pessoa do réu, que jamais presume culpado, até que sobrevenha irrecorrível sentença condenatória, o processo penal revela-se instrumento que inibe a opressão judicial e que, condicionado por parâmetros ético-jurídicos, impõe ao órgão acusador o ônus integral da prova, ao mesmo tempo em que faculta ao acusado, que jamais necessita demonstrar sua inocência, o direito de defender-se e de questionar, criticamente, sob a égide do contraditório, todos os elementos probatórios apresentados pelo Ministério Público".

Não há dúvidas de que a simples exigência de um processo judicial já representa um fator de inibição ao arbítrio judicial e de restrição ao exclusivo poder coercitivo do Estado. Neste contexto, a persecução penal deve reger-se pelos padrões normativos constitucionais, observando os ditames assegurados pela Lei Maior ao consagrar os direitos e garantias fundamentais, substancialmente representados pelos princípios constitucionais do devido processo legal, do contraditório, da ampla defesa, do estado de inocência, da publicidade, do juiz natural, entre outros.

Importante a lição do citado doutrinador ao esclarecer com proficiência que, in verbis:

"A conjunção e intersecção dos princípios da presunção de inocência, do juiz natural, do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório, são, portanto, ínsitas do Estado democrático de Direito, uma vez que somente por meio de uma seqüência de atos processuais, realizados perante a autoridade judicial competente, poder-se-á obter provas lícitas produzidas com a integral participação e controle da defesa pessoal e técnica do acusado, a fim de obter-se uma decisão condenatória, afastando-se, portanto, a presunção constitucional e inocência".


5. PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DO PROCESSO PENAL

Como visto, o Processo Penal em nosso país encontra-se resguardado e norteado não apenas por princípios infraconstitucionais, mas também por preceitos fundamentais com embasamento constitucional, retratando postulados essenciais da política processual penal adotada pelo ordenamento jurídico pátrio.

A contemplação de certas instituições jurídicas processuais penais na Constituição Federal é justificada face à necessidade de que tais princípios restem imunes às leis infraconstitucionais e, assim, sejam insuscetíveis de "eventuais artimanhas legislativas e a possibilidade de se macular ou por em risco a segurança do processo penal contra direitos e garantias pessoais". Pretende-se, destarte, preservar conquistas relativas ao pleno exercício da defesa da pessoa alvo da persecução penal, sem a preocupação de, por questões políticas do País, ter-se alterada, com certa facilidade, a segurança processual, possibilitando o surgimento de desvios, excessos ou qualquer tipo de abuso que venha a prejudicar o devido processo legal.

Observe-se que a persecução penal rege-se por padrões normativos que traduzem limitações ao poder do Estado, protegendo o cidadão do arbítrio judicial e da coerção estatal, salvaguardando sua liberdade individual que só poderá ser restringida se o órgão acusador conseguir comprovar, mediante elementos de certeza produzidos sob a égide do contraditório e da ampla defesa, a culpabilidade do réu.

Insta observar que, não obstante as disciplinas processuais embasarem-se, sobretudo, em princípios constitucionais, alguns destes têm aplicação diversa no campo do processo civil e do processo penal, ora apresentando feições ambivalentes (regra da disponibilidade e da verdade formal, no processo civil – regra da indisponibilidade e da verdade real, no processo penal), ora com aplicação idêntica em ambos os ramos do direito processual (princípios da imparcialidade do juiz, do contraditório, da livre convicção).

A seguir, cumpre-se discorrer, em apertada síntese, acerca dos mais importantes princípios constitucionais que, a partir da Constituição Cidadã de 1988, consubstanciaram-se em diretrizes inafastáveis à interpretação e ao regramento do arcabouço jurídico brasileiro, visando a dar-lhe feição condizente com o Estado Democrático de Direito adotado pela Carta Política em seu artigo 1°. Tendo em vista o escopo do presente trabalho, será feita uma abordagem dentro da óptica do Direito Processual Penal.

5.1 Igualdade

Emana do caput do artigo 5° da Constituição Federal de 1988 a determinação de que "todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza". Consagra-se, aí, o princípio da igualdade de direitos, sendo a todos assegurado um tratamento igualitário em três planos distintos: a) frente ao legislador e ao executivo, no exercício constitucional de edição de leis, atos normativos e medidas provisórias; b) frente ao intérprete dos dispositivos normativos em vigência; c) frente ao próprio particular.

Aos primeiros, incumbe a criação de normas isonômicas, vedados os tratamentos abusivamente diferenciados a pessoas que se encontram em situações idênticas. Aos intérpretes, em especial as autoridades públicas, incumbe o dever de aplicar a lei e atos normativos de maneira igualitária, sem qualquer distinção em razão de classe social, raça, sexo, religião, convicções filosóficas ou políticas. Quanto ao particular, não poderá pautar-se em condutas discriminatórias, preconceituosas ou racistas, sob pena de responsabilidade civil e penal.

Veda a Lei Maior as diferenciações arbitrárias, as discriminações sem sentido, os tratamentos desiguais sem qualquer finalidade lícita acolhida pelo direito. Leciona Alexandre de Moraes que, in verbis:

"A desigualdade na lei se produz quando a norma distingue de forma não razoável ou arbitrária um tratamento específico a pessoas diversas. Para que as diferenciações normativas possam ser consideradas não discriminatórias, torna-se indispensável que exista uma justicativa objetiva e razoável, de acordo com critérios e juízos valorativos genericamente aceitos, cuja exigência deve aplicar-se em relação à finalidade e efeitos da medida considerada, devendo estar presente por isso uma razoável relação de proporcionalidade entre os meios empregados e a finalidade perseguida, sempre em conformidade com os direitos e garantias constitucionalmente protegidos. Assim, os tratamentos normativos diferenciados são compatíveis com a Constituição Federal quando verificada a existência de uma finalidade razoavelmente proporcional ao fim visado".

Em que pese a expressa disposição constitucional da igualdade perante a lei, a absoluta igualdade jurídica e formal não é suficiente para prover a efetiva isonomia insculpida no espírito do legislador constituinte. Almeja-se, então, a igualdade substancial, material ou proporcional, consubstanciada na máxima aristotélica do tratamento igual aos iguais e desigual aos desiguais, na medida de sua desigualdade.

A busca da igualdade proporcional encontra guarida em nosso ordenamento jurídico, sendo que, conforme esclarecem Cintra, Grinover e Dinamarco, "a aparente quebra do princípio da isonomia, dentro e fora do processo, obedece exatamente ao princípio da igualdade real e proporcional, que impõe tratamento desigual aos desiguais, justamente para que, supridas as diferenças, se atinja a igualdade substancial".

Especificamente no Processo Penal, o princípio da igualdade é norteado pelo princípio do favor rei, que prescreve a prevalente proteção do status libertatis do réu em contraste com o ius puniendi estatal. Como por exemplo, cite-se os artigos 386, VI (absolvição por insuficiência de provas), 607 e 609, parágrafo único (recursos privativos da defesa) e 623 e 626, parágrafo único, (revisão somente em favor do réu), todos do Código de Processo Penal. Na seara do processo civil, o princípio da paridade de armas legitima normas tendentes a reequilibrar as partes e permitir a efetiva igualdade na lide.

5.2 Legalidade

Pedra basilar do Estado de Direito e igualmente vital ao Estado Democrático de Direito, o princípio da legalidade está expressamente previsto no artigo 5°, inciso II, da Constituição Federal de 1988, onde se assegura que "ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei". Atente-se, contudo, que não se trata do império da lei nos moldes da generalidade apregoada pelo Estado de Direito, mas da sujeição de toda atividade à lei democrática, expressão da vontade do povo, que atende aos princípios da igualdade e da justiça no intuito de igualar materialmente os desiguais.

Fundado no princípio da legitimidade, decorrente do próprio Estado Democrático de Direito, o princípio da legalidade estabelece, nos dizeres de José Afonso da Silva, que "o Estado, ou o Poder Público, ou os administradores não podem exigir qualquer ação, nem impor qualquer abstenção, nem mandar tampouco proibir nada aos administradores, senão em virtude em lei".

O princípio da legalidade é, por essência, um limite constitucional ao poder arbitrário do Estado, pois prevê que apenas por meio de espécies normativas elaboradas com o devido rigor técnico – igualmente previsto nos dispositivos da Lei Maior – é que o Poder Público poderá criar obrigações para o indivíduo. Como primado da lei, salienta Alexandre de Moraes, "cessa o privilégio da vontade caprichosa do detentor do poder em benefício da lei". Destarte, no princípio da legalidade, mais do que um direito, tem-se uma garantia constitucional que impede a interveniência estatal senão por meio de lei.

Por fim, insta analisar a diferença que há entre o princípio da legalidade e o da reserva legal. Enquanto que o primeiro é de abrangência mais ampla, estabelecendo que qualquer comando jurídico há de ser dado por meio de uma regra normativa geral, o princípio da reserva legal, mais específico, incide naquelas matérias cuja regulamentação há de ser feita necessariamente por meio de lei formal. Ensina-nos José Afonso da Silva, citando Crisafulli, que "tem-se, pois, a reserva de lei quando uma norma constitucional atribui determinada matéria exclusivamente à lei formal (ou a atos equiparados, na interpretação firmada na praxe, subtraindo-a, com isso, à disciplina de outras fontes, àquela subordinadas".

Alexandre de Moraes, em estudo à diferenciação entre princípio da legalidade e o da reserva legal, esclarece que, enquanto o primeiro opera de maneira genérica e abstrata, o segundo opera concretamente, incidindo tão-somente sobre os campos materiais especificados pela Constituição. Explica o sapiente doutrinador que "se todos os comportamentos humanos estão sujeitos ao princípio da legalidade, somente alguns estão submetidos ao da reserva da lei. Este é, portanto, de menor abrangência, mas de maior densidade ou conteúdo, visto exigir o tratamento de matéria exclusivamente pelo Legislativo, sem participação normativa do Executivo".

5.3 Devido Processo Legal

O processo é o instrumento pelo qual a prestação jurisdicional é exercida pelo Estado-Juiz seguindo os imperativos da ordem jurídica que, sinteticamente, envolve a garantia do contraditório e a plenitude do direito de defesa, sendo estes corolários do princípio do devido processo legal.

Historicamente, a garantia do devido processo legal foi esboçada como law of the land, prevista no artigo 39 da Magna Carta, outorgada em 1.215, por João Sem-Terra. Com o passar do tempo, o instituto passou a ser chamado de due process of law e sedimentou-se como garantia na Constituição dos Estados Unidos da América (Emendas V e XIV). Posteriormente, as constituições européias – italiana, portuguesa, espanhola, alemã, belga – integraram o devido processo legal no rol de suas garantias.

Salienta o ilustre doutrinador Scarance Fernandes que, num primeiro momento, tinha-se uma visão individualista do devido processo legal, concebido como uma forma de resguardar direitos públicos subjetivos das partes. Contudo, tal pensamento sucumbiu à ótica publicista que considera as regras do cogitado princípio garantias - e não direitos - das partes e do próprio processo como justo instrumento de prestação jurisdicional.

Com efeito, é por meio do processo que a parte pode, legal e legitimamente, obter o deferimento de sua pretensão, de seu direito garantido. A atividade jurisdicional do Juiz, no intuito de ofertar ao caso a solução mais justa, é exercida tendo como palco o processo, onde, equilibradamente, as partes têm garantia ativa - na medida em que, utilizando-o, pode reparar ilegalidades - e passiva - porque impede a justiça pelas próprias mãos e possibilita a plenitude de defesa contra a pretensão punitiva do Estado, desautorizado que está de impor restrições à liberdade do indivíduo sem o devido processo legal.

A Constituição Federal consagrou expressamente o princípio do due process of law, dispondo em seu artigo 5°, inciso LIV, que "ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal". Assegura-se, portanto, a toda pessoa a garantia de não ser privada de sua liberdade ou da propriedade de seus bens sem a tramitação de um processo segundo a forma estabelecida em lei.

5.4 Contraditório

O princípio do contraditório é uma garantia fundamental da justiça, consubstanciada no brocardo romano audiatur et altera pars. A Carta Política de 1988 consagrou em seu artigo 5°, inciso LV, que "aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes".

No Processo Penal, diferente do que ocorre no âmbito civil, a efetiva contrariedade à acusação é imperativa para o atingimento dos escopos jurisdicionais, objetivo só possível com a absoluta paridade de armas conferida às partes. O réu, pelo princípio do contraditório, tem o direito de conhecer a acusação a ele imputada e de contrariá-la, evitando que venha a ser condenado sem ser ouvido. Trata-se da exteriorização da ampla defesa, impondo uma condução dialética do processo, pois "a todo ato produzido caberá igual direito da outra parte de opor-se-lhe ou de dar-lhe a versão que lhe convenha, ou, ainda, de fornecer uma interpretação jurídica diversa daquela feita pelo autor".

Percebe-se, portanto, que o princípio do contraditório é uma garantia constitucional que assegura a ampla defesa do acusado, proporcionando a este o exercício pleno de seu direito de defesa. Merecem destaque as palavras de J. Canuto Mendes de Almeida que, sobre o tema, ensina, in verbis:

"A verdade atingida pela justiça pública não pode e não deve valer em juízo sem que haja oportunidade de defesa do indiciado. É preciso que seja o julgamento precedido de atos inequívocos de comunicação ao réu: de que vai acusado; dos termos precisos dessa acusação; e de seus fundamentos de fato (provas) e de direito. Necessário também é que essa comunicação seja feita a tempo de possibilitar a contrariedade: nisso está o prazo para conhecimento exato dos fundamentos probatórios e legais da imputação e para oposição da contrariedade e seus fundamentos de fato (provas) e de direito."

Júlio Fabrini Mirabete e Fernando da Costa Tourinho Filho lecionam do princípio do contraditório decorrem duas importantes regras: a da igualdade processual e a da liberdade processual. Pela primeira, as partes acusadora e acusada estão num mesmo plano e, por conseguinte, têm os mesmos direitos; pela segunda, o acusado tem a faculdade, entre outras, de nomear o advogado que bem entender, de apresentar provas lícitas que julgar as mais convenientes e de formular ou não reperguntas às testemunhas.

Scarance Fernandes alerta sobre a diferença existente entre o contraditório e a igualdade processual. In verbis:

"O contraditório põe uma parte em confronto com a outra, exigindo que tenha ela ciência dos atos da parte contrária, com possibilidade de contrariá-los. O princípio da igualdade, por outro lado, coloca as duas partes em posição de similitude perante o Estado e, no processo, perante o juiz. Não se confunde com o contraditório, nem o abrange. Apenas se relacionam, pois ao se garantir a ambos os contendores o contraditório também se assegura tratamento igualitário."

Neste diapasão, o princípio do contraditório também encontra guarida na obrigatoriedade do caráter imparcial do órgão jurisdicional. De fato, "o juiz, por força de seu dever de imparcialidade, coloca-se entre as partes, mas eqüidistantes delas: ouvindo uma, não pode deixar de ouvir a outra; somente assim se dará a ambas a possibilidade de expor suas razões, de apresentar suas provas, de influir sobre o convencimento do juiz".

Do exposto, tem-se que a necessidade de informação e a possibilidade de reação são elementos essenciais do contraditório, que deverá ser exercido de forma plena – durante todo o desenrolar da causa - e efetiva – proporcionando condições reais de contrariedade dos atos praticados pela parte ex adverso.

Nesse sentido, afirmam Cintra, Grinover e Dinamarco que o contraditório não admite exceções e que, em virtude de sua natureza constitucional, deve ser substancialmente observado e não apenas formalmente, devendo as normas que o desrespeitem serem consideradas inconstitucionais.

No Processo Civil, o princípio do contraditório também deve ser respeitado. Entretanto, e aqui se faz diferente, enquanto que no Processo Penal a contrariedade deve ser plena e efetiva, na seara civil basta que ao réu seja ofertada a oportunidade de reação proporcionada pela citação, garantindo ao réu o direito de, se quiser, participar do processo e responder aos atos da parte contrária. Isso porque, enquanto que no Processo Civil tramitam, em regra, litígios sobre direitos disponíveis e o juiz pode satisfazer-se com a verdade formal, no âmbito penal, os direitos em jogo são indisponíveis e predomina o incessante desejo de o órgão jurisdicional descobrir a verdade real. No primeiro, o réu tem o ônus de se defender, no segundo, tem o dever. Tendo em vista esta diferença, alguns doutrinadores preferem referir-se ao princípio do contraditório no Processo Civil como princípio da bilateralidade da audiência.

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Acerca da aplicabilidade ou não do princípio do contraditório na fase pré-processual há diferentes posicionamentos na doutrina.

Scarance e Tourinho Filho entendem que a Constituição Federal, em seu artigo 5°, inciso LV, ao mencionar a necessidade do contraditório nos processos judiciais e administrativos, não abrangeu o Inquérito Policial, uma vez que este não pode ser considerado um processo administrativo e nem mesmo um procedimento, pois "falta-lhe característica essencial do procedimento, ou seja, a formação de atos que devam obedecer a uma seqüência predeterminada pela lei, em que, após a prática de um ato, passa-se à do seguinte até o último da série, numa ordem a ser necessariamente observada". Ademais, ensina Tourinho Filho que o sobredito dispositivo constitucional faz menção a litigantes e na fase da investigação pré-processual não há litigante. Ressalta o insigne doutrinador que a expressão processo administrativo contida na Lei Maior não se refere ao Inquérito Policial, mas ao processo instaurado pela Administração Pública para apuração de ilícitos administrativos, pois, nestes casos, há possibilidade de aplicação de uma sanção. Prossegue argumentando que "em face da possibilidade de inflição de ‘pena’, é natural deva haver o contraditório e a ampla defesa, porquanto não seria justo a punição de alguém sem o direito de defesa", e que, em se tratando de Inquérito Policial, nenhuma pena pode ser imposta ao indiciado. Saliente-se que, de fato, a Autoridade Policial não acusa, apenas investiga.

Rogério Lauria Tucci, em contrapartida, sustenta que, para maior garantia da liberdade e melhor atuação da defesa, há a necessidade de uma contraditoriedade efetiva e real em todas as fases da persecução, inclusive na fase pré-processual. Justifica-se o autor com o instituto denominado contraditório posticipato ou diferido, onde não há "violação à garantia da bilateralidade da audiência, que, firme, se vê apenas diferida para momento ulterior à pronunciação de ato decisório liminar, prosseguindo-se regularmente no procedimento instaurado". Assim sendo, as medidas cautelares restritivas de ordem patrimonial ou pessoal (exame de corpo de delito, perícia, exame do local do crime, prisão provisória, fiança) seriam submetidas ao crivo do contraditório posteriormente, no processo, permitindo-se ao agora acusado contestar as providências cautelares tomadas pela Autoridade Policial, bem como a prova pericial realizada no Inquérito Policial. Fala-se, portanto, em contraditório diferido ou postergado, pois, como esclarece Greco Filho, a "Constituição não exige, nem jamais exigiu, que o contraditório fosse prévio ou concomitante ao ato".

Tourinho Filho reconhece que o indiciado pode ser privado de sua liberdade em casos de flagrante, prisão temporária ou preventiva, mas para essas situações, afirma o autor, deve o investigado valer-se do emprego do remédio heróico do habeas corpus, prosseguindo em sua tese da inadmissibilidade do contraditório na fase investigatória.

5.5 Ampla Defesa

O Estado tem o dever de proporcionar a todo acusado condições para o pleno exercício de seu direito de defesa, possibilitando-o trazer ao processo os elementos que julgar necessários ao esclarecimento da verdade. Esta defesa há de ser completa, abrangendo não apenas a defesa pessoal (autodefesa)e a defesa técnica (efetuada por profissional detentor do ius postulandi), mas também a facilitação do acesso à justiça, por exemplo, mediante a prestação, pelo Estado, de assistência jurídica integral e gratuita aos necessitados.

Vicente Grego Filho afirma que a ampla defesa é constituída a partir dos seguintes fundamentos: "a) ter conhecimento claro da imputação; b) poder apresentar alegações contra a acusação; c) poder acompanhar a prova produzida e fazer contraprova; d) ter defesa técnica por advogado, cuja função, aliás, agora, é essencial à Administração da Justiça (art. 133 [CF/88]); e e) poder recorrer da decisão desfavorável".

Com bastante razão e proficiência, afirma o douto estudioso que a ampla defesa é o cerne ao redor do qual se desenvolve o Processo Penal. Não se trata de mero direito, mas de uma dupla garantia: do acusado e do justo processo. É uma condição legitimante da própria jurisdição.

Scarance Fernandes assevera que, embora estejam inegavelmente relacionados, não há relação de primazia ou derivação entre os princípios da ampla defesa e do contraditório, sendo ambos decorrentes da garantia constitucionalmente assegurada do devido processo legal.

Convém salientar que o princípio constitucional da ampla defesa, expressamente previsto no artigo 5°, inciso LV, da Constituição Federal, não se confunde com a plenitude de defesa, instituto consagrado no artigo 5°, inciso XXXVIII, letra "a", da Carta Magna de 1988. Este, na verdade, encontra-se dentro do princípio maior da ampla defesa, consubstanciando-se na garantia da apreciação de todas as teses e argumentos despendidos aos jurados e também ao magistrado.

O princípio da ampla defesa tem reflexos importantes dentro do Direito Processual Penal, norteando a aplicação das regras infraconstitucionais visando ao fiel respeito e salvaguarda dos preceitos fundamentais assegurados pela Constituição Federal. Neste diapasão, alguns dispositivos do nosso Código de Processo Penal de 1941 carecem ser analisados e relidos sob a nova ótica da Lei Maior, a fim de que as garantias da Constituição Cidadã sejam plenamente exercitadas.

Assim, tem entendido a jurisprudência que, para a garantia da ampla defesa, o profissional constituído pelo réu deve ser sempre intimado para a realização de todos os atos processuais, contrariando a regra do artigo 501 do CPP. De igual forma, devem ser intimados acusador, réu e defensor para efeitos de trânsito em julgado da sentença condenatória, pouco importando, no caso do acusado, se este se encontra preso ou não. Isso revela uma clara e necessária releitura do artigo 392 do mesmo diploma legal. Ainda em face do princípio da ampla defesa, o sigilo previsto no artigo 20 do CPP não pode ser oposto ao advogado do suspeito e a regra do artigo 21, que permitia a incomunicabilidade do indiciado, encontra-se revogada.

Questão afeta à defesa e que é bastante controvertida na jurisprudência é a possibilidade ou não de nulidade decorrente da falta de requisição de acusados presos para os atos de instrução. Predomina o posicionamento de que é possível a argüição de nulidade relativa do processo se ficar provado o prejuízo para a defesa, uma vez que, nesse caso, entende-se que o exercício da autodefesa não teria sido efetivo.

Outra controvérsia envolvendo a influência do princípio da ampla defesa no Código de Processo Penal diz respeito a possibilidade ou não de se seguir o processo sem as alegações finais, razões ou contra-razões de apelação quando o defensor, muito embora regularmente intimado, deixa de oferecê-las no prazo legal. Sobre a ausência de alegações finais, concluiu o STJ tratar-se de peça essencial da defesa e, portanto, não apresentada pelo advogado constituído, deve o Juiz, antes de prolatar a sentença, nomear defensor para fazê-lo (RHC 1682-SP). No tocante às contra-razões, o STF decidiu que a não apresentação das mesmas em recurso do Ministério Público, havendo risco de ser agravada a situação do réu, constitui violação ao princípio do contraditório e da ampla defesa (HC 71.234-RS).

Importante inovação na garantia do direito de defesa foi trazida ao ordenamento jurídico pátrio pela Lei n° 9.271, de 17/04/1996, que alterou o Código de Processo Penal, dando nova redação aos artigos 366 e 368. Em síntese, a alteração do referido dispositivo representou o fim da visão tradicional de que o acusado poderia ser condenado à revelia, prestigiando a atuação efetiva e concreta do contraditório e da ampla defesa. Sob este prisma, dispõe o caput do artigo 366 que "se o acusado, citado por edital, não comparecer, nem constituir advogado, ficarão suspensos o processo e o curso do prazo prescricional, podendo o juiz determinar a produção antecipada das provas consideradas urgentes e, se for o caso, decretar prisão preventiva, nos termos do disposto no art. 312.". Outrossim, determina o artigo 368 que "estando o acusado no estrangeiro, em lugar sabido, será citado mediante carta rogatória, suspendendo-se o curso do prazo de prescrição até o seu cumprimento".

5.5.1 Defesa Técnica e Autodefesa

No âmbito Processo Penal, o já mencionado princípio da ampla defesa compreende, em linhas gerais, o direito à defesa técnica durante todo o processo e também o direito ao exercício da autodefesa. A primeira apresenta-se como uma defesa necessária, indeclinável, que deve ser plenamente exercida visando à máxima efetividade possível. A segunda, por sua vez, é renunciável, exercida pelo próprio acusado, sem interferência do defensor, a partir da atuação pessoal junto ao magistrado por meio do interrogatório ou pela presença física aos principais atos processuais.

Verifica-se a necessariedade da defesa técnica na medida em que, sem ela, não seria possível garantir-se a paridade de armas no processo, o que, per si, seria suficiente para a nulidade dos atos praticados (artigo 564, III, "c", CPP).

Considerando que a relação entre o acusado e seu defensor deve pautar-se na confiança, cabe àquele constituir advogado segundo seu livre arbítrio. Entretanto, não o fazendo, determinam os artigos 263 e 265, do Código de Processo Penal, que o juiz, obrigatoriamente, nomeie um defensor, não podendo o causídico nomeado, sem motivo imperioso, renunciar à defesa.

Como já dito, mesmo o acusado que não dispõe de recursos para custear o patrocínio de advogado constituído tem direito à assistência judiciária integral gratuita, segundo garante o artigo 5°, inciso LXXIV, da Constituição Federal de 1988. Sendo o acusado legalmente habilitado para o exercício da advocacia e, como tal, conhecedor técnico das especificidades processuais, poderá exercer, motu proprio, sua defesa técnica.

Por ser o direito de defesa garantia da própria justiça e condição de paridade armas, imprescindível à concreta atuação do contraditório e, conseqüentemente, à própria imparcialidade do juiz, a defesa técnica torna-se indeclinável e irrenunciável, sem a qual não seria possível se atingir uma solução justa.

A defesa técnica há de ser plena, manifesta durante todo o processo, assegurando ao acusado, em todas as etapas do iter processual, as garantias que lhe são constitucional e legalmente conferidas, tais como o contraditório, o direito à prova e a garantia do duplo grau de jurisdição.

A simples constituição ou nomeação de advogado para atuar na causa não é suficiente para se comprovar a efetividade da defesa. Não basta a presença do advogado, mas sua efetiva atuação no sentido de assistir com diligência e afinco ao seu cliente, proporcionando-lhe o completo exercício de sua ampla defesa. Cumpre ao juiz conduzir o processo e zelar para a preservação dos princípios constitucionalmente assegurados às partes (contraditório, igualdade de armas, devido processo legal, ampla defesa, entre outros). Verificando o magistrado que uma atuação negligente, desatenciosa ou superficial do advogado está causando desnível na balança da igualdade entre acusação e defesa, deverá, em cotejo com fortes evidências constatadas nesse sentido e sempre atento à imparcialidade que deve nortear os atos judiciais, declarar o acusado indefeso, solicitando-lhe que nomeie, num prazo estabelecido, novo defensor, sob pena de ser-lhe nomeado um a critério do juízo (artigos 263 e 497, V, do CPP).

Ao contrário da defesa técnica, o direito de autodefesa, embora não possa ser desprezado pelo magistrado, é renunciável, ou seja, poderá o acusado, se assim desejar, declinar sua presença no interrogatório e em outros atos processuais de instrução, bem como abster-se de postular pessoalmente aquilo que lhe é permitido por lei. Tem-se, portanto, as três facetas básicas da autodefesa: 1) direito de audiência, quando, pessoalmente, tem a oportunidade de defender-se, apresentando ao juiz da causa sua versão dos fatos; 2) direito de presença, por meio do qual lhe é facultado acompanhar os atos de instrução e, assim, auxiliar o defensor na realização de sua defesa; e 3) direito de postular pessoalmente sua defesa, interpondo recursos, impetrando habeas corpus e formulando pedidos relativos à execução de pena, sendo que, nestes casos, o acusado ou sentenciado dá o impulso inicial ao ato, devendo, a posteriori, ser assistido por um defensor.

O interrogatório é considerado ato de defesa renunciável, e não apenas um meio de prova, conforme equivocadamente disposto nos artigos 185 e seguintes do CPP, haja vista que o acusado não tem o dever, e nem pode ser obrigado, a fornecer elementos de prova contra sí. Outrossim, o acusado não é obrigado a comparecer ao ato do interrogatório, sendo que, se o fizer, não tem o dever de dizer a verdade e nem mesmo, se assim desejar, de responder às perguntas da autoridade. É justamente o direito ao silêncio que "garante o enfoque do interrogatório como meio de defesa e que assegura a liberdade de consciência do acusado".

Observe-se, entretanto, que o ato do interrogatório não poderá deixar de ser levado a termo pelo juiz se o acusado apresentar-se para depor, sob pena de cerceamento de autodefesa, uma vez que a liberdade desta é ampla, podendo ser exercitada pela exposição de argumentos contrários à tese da acusação ou pela simples postura de permanecer em silêncio. Tamanha é a importância da autodefesa que, não obstante os procedimentos penais preverem momentos certos para a realização do interrogatório, o acusado não interrogado no tempo determinado pelas normais processuais, mas que "venha a ser preso no curso do processo penal, ou compareça, espontaneamente ou em virtude de intimação, perante a autoridade judiciária, deve ser interrogado, sob pena de nulidade (art. 185). Se a notícia da prisão surgir em grau de recurso, deve o tribunal baixar os autos a fim de que se proceda ao interrogatório antes do julgamento". Por força do artigo 564, III, "e", do CPP, há nulidade insanável na falta de interrogatório do réu presente.

Em que pese a infringência à garantia constitucional implicar, prima facie, em nulidade absoluta do processo, os casos pertinentes a ausência do ato processual defensivo necessitam, para tanto, de análise da amplitude do prejuízo causado. Caso o prejuízo seja suficiente a ponto de macular a defesa como um todo, a nulidade será absoluta (art. 564, III, "a", "c", "e", "g", "l", "o", CPP). Em contrapartida, havendo o vício de um ato defensivo que não tem o condão de interferir na amplitude de defesa, a nulidade será relativa, dependendo da comprovação do prejuízo. É que, segundo ensinam Grinover, Scarance e Gomes Filho, "nesses casos, o vício ou a inexistência do ato defensivo pode não levar, como conseqüência necessária, à vulneração do direito de defesa, em sua inteireza, dependendo a declaração de nulidade de demonstração do prejuízo à atividade defensiva como um todo".

A Súmula 523 do Supremo Tribunal Federal sedimentou o entendimento exposto ao estabelecer que "no processo penal, a falta de defesa constitui nulidade absoluta, mas a sua deficiência só o anulará se houver prova de prejuízo ao réu".

5.5.2 Colidência de Defesas

Diante da necessidade já exposta de uma defesa efetiva, não se admite, em nossos Tribunais, a colidência de defesas, ou seja, um mesmo advogado patrocinando, em juízo, a defesa de dois acusados valendo-se de teses antagônicas. De fato, não poderá o causídico sustentar duas defesas colidentes, sendo certo que um dos acusados restará prejudicado, compromentendo seu amplo direito de defesa. Nesse sentido, Grinover, Scarance e Gomes Filho alertam que "a nomeação de um só defensor para réus que apresentem versões antagônicas para os fatos apontados como delituosos sacrifica irremediamente o direito de defesa".

Não raro, pode ocorrer de as linhas de defesa técnica e autodefesa apresentarem, entre si, argumentação divergente, alternativa, cumulável ou até mesmo excludente. Trata-se, no particular, de caso diverso da verdadeira colidência de defesas, pois, nesta, o mesmo advogado assume a tarefa de defender dois réus cujas defesas são inconciliáveis por haver conflito de interesses. No caso em testilha, contudo, tem-se uma aparente colidência, em regra plenamente conciliável, entre a defesa técnica e a autodefesa relativas ao mesmo acusado. Grinover, Scarance e Gomes Filho asseveram que a apreciação sucessiva das linhas de defesa apresentadas é a solução acertada para dirimir o aparente conflito que, na verdade, consubstancia-se em mera incompatibilidade lógica.

Alerta-nos os eminentes doutrinadores que pode acontecer, porém, que a defesa técnica ignore os argumentos defensivos apresentados pelo réu em sua autodefesa. Neste caso, deverá o juiz proceder às seguintes análises: primeiramente, verificar se, no caso em apreciação, o comportamento do defensor significou deixar o réu indefeso, circunstância que, se constatada, implicará em nulidade absoluta do processo, tendo em vista a incompatibilidade ter afetado a defesa como um todo. Caso o resultado dessa primeira análise seja negativo, então deverá o juiz apreciar as diversas teses de defesa, também sob pena de nulidade. Já entenderam nossos Tribunais que, numa situação de total disparidade entre a autodefesa e a defesa técnica, sendo a apresentada pelo defensor a mais benéfica, deverá esta prevalecer sobre aquela.

5.5.3 Direito ao Silêncio

O direito a não se auto-incriminar foi concebido, num primeiro momento, a partir da interpretação sistemática de consagradas garantias constitucionais, notadamente, os princípios da ampla defesa, da presunção de inocência e, como não poderia deixar de ser, do devido processo legal. Concluiu-se, portanto, que ninguém seria obrigado a se auto-incriminar, não podendo o acusado ou suspeito ser coagido a produzir prova contra si mesmo.

A Convenção Americana de Direitos Humanos, também conhecida como Pacto de São José da Costa Rica, ratificada pelo governo brasileiro por meio do Decreto n° 678, de 06/11/1992, inseriu, expressamente, no contexto jurídico-positivo de nosso país, o princípio de que a pessoa não está obrigada a produzir prova contra si mesma, prevendo em seu artigo 8°, n.2, "g", que "toda pessoa tem direito de não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a declarar-se culpada".

Do amplo princípio que veda a forçosa auto-incriminação, decorre o direito ao silêncio, manifestamente previsto no artigo 5°, inciso LXIII, da Constituição Federal de 1988, quando assegura que "o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado".

Muito embora o texto constitucional tenha se referido apenas ao preso, entendem a doutrina e a jurisprudência que a interpretação da regra constitucional, em cotejo com o princípio da presunção de inocência, deve ser no sentido de que a garantia ao silêncio seja assegurada a toda e qualquer pessoa que sofra investigações penais ou que esteja sendo acusada em juízo criminal, devendo o ônus da culpabilidade ser imputado à acusação.

Nesse contexto, face ao reconhecimento constitucional da prerrogativa de permanecerem em silêncio, o investigado, o indiciado e o réu têm o direito subjetivo de, se assim desejarem, não responderem às perguntas que lhes forem formuladas por qualquer autoridade ou agente do Estado, porquanto, escolhendo permanecer calados - exercitando, assim, legitimamente a prerrogativa que têm - não podem sofrer qualquer restrição ou prejuízo de ordem jurídica no plano da persecução penal.

José Carlos Gobbis Pagliuca esclarece que a cláusula legitimadora do direito ao silêncio consagrou, no âmbito do sistema normativo constitucional brasileiro, diretriz proclamada em 1971, pela Quinta Emenda que compõe o Bill of Rights norte-americano. Acrescenta o ilustre autor que o direito de ficar em silêncio "insere-se no alcance concreto da cláusula constitucional do devido processo legal. E esse direito ao silêncio inclui, até mesmo de forma implícita, a prerrogativa processual de o indiciado ou réu negar, ainda que falsamente, perante a autoridade policial ou judiciária, a prática da infração penal que lhe foi imputada".

Rogério Tucci também ressalta que o direito de permanecer calado "não pode importar desfavorecimento do imputado, até mesmo porque consistiria inominado absurdo entender-se que o exercício de um direito, expresso na Lei das Leis como fundamental ao indivíduo, possa acarretar-lhe qualquer desvantagem".

Sobre esta questão, pronunciou-se o Pleno do Supremo Tribunal Federal assegurando que "o réu, ainda negando falsamente a prática do delito, não pode, em virtude do princípio constitucional que protege qualquer acusado ou indiciado contra a auto-incriminação, sofrer, em função do legítimo exercício desse direito, restrição que afete o seu estatus poenalis" (HC 68.742-DF, Rel. Ministro Ilmar Galvão – DJU 02.04.93).

À luz do explanado, o direito ao silêncio há de ser exercido de maneira plena, sem pressões – sejam elas diretas ou indiretas – destinadas a forçar o depoimento do acusado. Na esteira desses pensamentos, os artigos 186 e 198 do Código de Processo Penal perdem sua eficácia quando em cotejo com a Constituição Federal, não tendo sido recepcionados pela Lei Maior de 1988, uma vez que aludem a prejuízos ao interrogado face ao legítimo exercício do direito constitucional de permanecer em silêncio.

Grinover, Scarance e Gomes Filho alertam, entretanto, que o Superior Tribunal de Justiça já entendeu "não constituir nulidade a advertência feita ao interrogado, nos termos do art. 186 do CPP, de que seu silêncio poderia prejudicá-lo, quando não provado qualquer prejuízo para a defesa" (STJ, RHC 6524-SP, DJU 30.06.97, Boletim IBCCrim 58/204). Continuam os insígnes autores assertando que, de fato, a nulidade poderá ser absoluta ou relativa, dependendo do exame concreto das circunstâncias, porquanto, se implicar em comprometimento da defesa como um todo, será irremediável, caso contrário, será parcial.

É importante notar que apenas o denominado interrogatório de mérito, enquanto autodefesa, está acobertado pelo direito ao silêncio, devendo as perguntas sobre a qualificação do interrogado (artigo 188, caput, CPP) serem prontamente respondidas, visto que suas respostas não ensejam atos defensivos.

Por fim, ainda sobre o interrogatório, cumpre frisar que um vício grave que este ato pode apresentar é a falta de informação sobre o direito de o indiciado ou acusado permanecer calado. Seguindo a mesma linha de pensamento já explicitada, Grinover, Fernandes e Gomes Filho instruem que a ausência de tal informação resulta nulidade do interrogatório sob duas dimensões, in verbis:

"a mais grave, consubstanciada na nulidade de todo o processo, a partir do interrogatório, se, no caso, o ato viciado redundou no sacrifício da autodefesa e, conseqüentemente, da defesa como um todo. Ou, na dimensão mais moderada, pela invalidade do interrogatório, com sua necessária repetição, mas sem que os atos sucessivos fiquem contaminados, se se verificar que o conteúdo das declarações não prejudicou a defesa como um todo e os atos sucessivos".

É mister observar, contudo, que, em regra, um interrogatório viciado invalida as provas dele decorrentes, ainda mais se essencial para a validade de outro ato processual. Neste caso específico, a nulidade do interrogatório comunicar-se-á com os atos processuais embasados no mesmo, conforme já se pronunciou a 1ª Turma do STF no julgamento do HC 78.708-SP (RTJ 168/977): "Em princípio, ao invés de constituir desprezível irregularidade, a omissão do dever de informação ao preso dos seus direitos, no momento adequado, gera efetivamente a nulidade e impõe a desconsideração de todas as informações incriminatórias dele anteriormente obtidas, assim com as provas derivadas".

Frise-se, entretanto, que a posição do Supremo Tribunal Federal, conforme restou evidenciado no bojo do sobredito julgado, é a de que deve ser ponderada a orientação da defesa do réu no processo: se a de realmente permanecer silente, fazendo o ônus da prova recair sobre a acusação; ou se de intervenção ativa no processo, situação na qual, segundo nosso Excelso Pretório, o réu abdica do direito de manter-se calado e das conseqüências da falta de informação oportuna a respeito.

Por último, resta analisar o caso em que o réu não é cientificado de seu direito de permanecer calado, mas, mesmo assim, deixa de responder às perguntas feitas pela autoridade interrogante ou, se respondendo, nega as acusações que lhe são imputadas. Percebe-se que, neste caso particular, não há prejuízo à autodefesa e nem à defesa como um todo, um vez que do interrogatório não resultaram informações incriminatórias que pudessem influenciar no convencimento do juiz da causa. Por essa razão, não há por que se declarar a nulidade do ato.

5.6 Acusatório

Julio Fabbrini Mirabete ensina que são três os sistemas processuais utilizados na evolução histórica do direito, distinguindo-os segundo as formas com que se apresentam e os princípios que os informam. São eles: o sistema inquisitivo, o sistema acusatório e o sistema misto.

O sistema inquisitivo teve suas raízes na organização política do império romano, onde se admitia ao juiz iniciar o processo ex officio. Foi revigorado na Idade Média e, a partir do século XV, por influência do Direito Penal da Igreja, alastrou-se pelo continente europeu e só entrou em declínio com a Revolução Francesa. Verifica-se, na verdade, que o sistema inquisitivo não é um legítimo processo de apuração da verdade, mas, nas palavras de Mirabete, "uma forma auto-defensiva de administração da justiça". Isso porque nele inexistem regras de igualdade e liberdade processuais, desenrolando-se, em regra, secretamente, por impulso oficial e em busca da rainha das provas, a confissão, permitindo-se, para tanto, o uso da tortura.

No processo inquisitivo, as funções de acusar, defender e julgar encontram-se concentradas em um único órgão, o juiz. Neste contexto, nenhuma garantia é oferecida ao réu, transformando-o em mero objeto do processo. Falta ao referido sistema elementos essenciais do denominado due process of law, como, por exemplo, a publicidade dos atos processuais, a imparcialidade do juiz e as garantias do contraditório e da ampla defesa.

O sistema acusatório, em contrapartida, implica o estabelecimento de uma relação processual triangular (actum trium personarum), onde o órgão jurisdicional encontra-se como imparcial aplicador da lei e as partes acusadora e acusada estão em pé de igualdade, asseguradas as garantias do contraditório e da ampla defesa.

Este sistema teve origem na Inglaterra e na França, após a revolução, e é hoje o adotado na maioria dos países americanos e em muitos da Europa.

Segundo Tourinho Filho, as principais características do sistema acusatório são, in verbis:

"a) o contraditório, como garantia político-jurídica do cidadão; b) as partes acusadora e acusada, em decorrência do contraditório, encontram-se no mesmo pé de igualdade; c) o processo é público, fiscalizável pelo olho do povo; excepcionalmente permite-se uma publicidade restrita ou especial; d) as funções de acusar, defender e julgar são atribuídas a pessoas distintas e, logicamente, não é dado ao juiz iniciar o processo (ne procedat judex ex officio); e) o processo pode ser oral ou escrito; f) existe, em decorrência do contraditório, igualdade de direitos e obrigações entre as partes, pois non debet licere actori, quod reo non permittitur; g) a iniciativa do processo cabe à parte acusadora, que poderá ser o ofendido ou seu representante legal, qualquer cidadão do povo ou um órgão do Estado".

Por fim, o sistema misto, também chamado de sistema acusatório formal, combina elementos acusatórios e inquisitivos, em maior ou menor medida, dependendo do ordenamento jurídico em que é aplicado. Em regra, constitui-se de uma instrução inquisitiva, onde estão compreendidas a investigação preliminar e a instrução preparatória, e de um juízo contraditório a posteriori, quando do julgamento. É ainda o sistema utilizado em alguns países da Europa e até da América Latina, como é o caso da Venezuela.

A Lei Maior de 1988 assegurou, entre nós, a utilização do sistema acusatório no Processo Penal, uma vez que estabelece os princípios do contraditório e da ampla defesa (art. 5°, LV), determina que a ação penal pública deve ser privativamente promovida pelo Ministério Público (art. 129, I), garante o princípio do juiz natural ou constitucional (arts. 5°, LIII, e 92 a 126) e também assegura a publicidade dos atos processuais, facultando à lei sua restrição apenas quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem (art. 5°, LX), dentre outras normas e princípios que visam à imparcialidade do órgão jurisdicional e à igualdade e à liberdade das partes acusadora e acusada na seara da apuração da verdade real.

5.7 Juiz Natural

O princípio do juiz natural ou juiz constitucional, também chamado de princípio do juiz competente, no direito espanhol, e princípio do juiz legal, no direito alemão, originou-se, historicamente, no ordenamento anglo-saxão, desdobrando-se, a posteriori, nos constitucionalismos norte-americano e francês. Entre nós, o referido princípio inseriu-se deste o início das Constituições.

Trata-se de princípio que garante ao cidadão o direito de não ser subtraído de seu Juiz Constitucional ou Natural, aquele pré-constituído por lei para exercer validamente a função jurisdicional.

Assegura expressamente a Constituição Federal que "ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente" (artigo 5°, inciso LIII) e que "não haverá juízo ou tribunal de exceção" (artigo 5°, inciso XXXVII). Outrossim, determina a Carta Política de 1988 que "a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário qualquer lesão ou ameaça a direito" (artigo 5°, XXXV).

Dentro deste contexto, buscam os dispositivos constitucionais impedir que pessoas estranhas ao organismo judiciário exerçam funções que lhe são específicas (salvo, é claro, quando houver autorização da própria Constituição Federal nesse sentido, p.ex., Senado – artigo 52, incisos I e II) e proscrever os tribunais de exceção, aqueles criados post factum. Assim, nenhum órgão, por mais importante que seja, se não tiver o poder de julgar assentado na Constituição Federal não poderá exercer a jurisdição. Tem-se, salienta a doutrina, a mais alta expressão dos princípios fundamentais da administração da justiça.

O insigne Professor Scarance afirma que a dúplice garantia assegurada pelo cogitado princípio – proibição de tribunais extraordinários e de subtração da causa ao tribunal competente, desdobra-se em três regras de proteção: "a) só podem exercer jurisdição os órgãos instituídos pela Constituição Federal; b) ninguém pode ser julgado por órgão instituído após o fato; c) entre os juízes pré-constituídos vigora uma ordem taxativa de competências que exclui qualquer alternativa deferida à discricionariedade de quem quer que seja".

Acentua Vicente Greco Filho que "não se admite a escolha de magistrado para determinado caso, nem a exclusão ou afastamento do magistrado competente; quando ocorre determinado fato, as regras de competência já apontam o juízo adequado, utilizando-se, até, o sistema aleatório de sorteio para que não haja interferência na escolha".

É bem verdade que há casos especialíssimos de deslocação da competência, como no caso previsto no artigo 424 do CPP (desaforamento no procedimento do Tribunal do Júri), entretanto, entende-se que, por estarem determinados pelo interesse público e da própria justiça, não ferem o princípio do juiz natural, pois o intuito é a busca do julgamento justo.

Grinover, Scarance e Gomes Filho, além de outros doutrinadores, defendem que com a garantia do juiz natural assegura-se a imparcialidade do órgão jurisdicional, não como atributo do juiz, mas como pressuposto de existência da própria atividade jurisdicional. Por isso, afirmam que sem o juiz natural não há jurisdição, pois a relação jurídica não pode nascer.

Os mesmos estudiosos asseveram que além de o julgamento da causa ser de incumbência do juiz natural, é mister que perante este também seja instaurado e desenvolvido o processo, não sendo possível o aproveitamento dos atos instrutórios realizados por juiz constitucionalmente incompetente. Neste diapasão, os artigos 108, §1°, e 567, ambos do CPP, devem ser relidos a fim de se adequarem à garantia do juiz natural, restringindo-se sua aplicação apenas aos casos de incompetência infraconstitucional. Em se tratando de juiz constitucionalmente incompetente, não pode haver aproveitamento dos atos, não-decisórios e decisórios, uma vez que o artigo 5°, inciso LIII, da Lei Maior refere-se à garantia de que "ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente" (grifos acrescidos).

De igual forma, também carece de releitura o artigo 564, I, do CPP, que dispõe ser caso de nulidade os atos praticados por juiz incompetente. Como já mencionado, a garantia do juiz natural é um pressuposto de existência da atividade jurisdicional. Sob este prisma, os atos praticados por juiz constitucionalmente incompetente são inexistentes e não nulos. Em decorrência disso, o processo e a sentença eventualmente prolatada são juridicamente inexistentes.

Questão interessante é saber se o réu, submetido a julgamento por juiz constitucionalmente incompetente, estaria sujeito a nova persecução penal sobre os mesmos fatos, uma vez considerando-se que a sentença prolatada seria inexistente e, como tal, não estaria tecnicamente suscetível à formação da coisa julgada.

Grinover, Scarance e Gomes Filhos entendem que "o rigor técnico da ciência processual há de ceder perante os princípios maiores do favor rei e do favor libertatis, fazendo prevalecer o dogma do ne bis in idem, impedindo nova persecução penal a respeito do fato em tela". Esclarecem os insignes estudiosos que, não obstante o princípio do ne bis in idem estar tecnicamente ligado ao fenômeno da coisa julgada e que juridicamente inexistente a sentença esta não poderia transitar em julgado, no terreno da persecução penal estão em jogos valores preciosos do indivíduo, como sua vida, sua liberdade e sua dignidade, e que, nesse particular, o ne bis in idem assume dimensão autônoma, impedindo nova persecução penal do réu pelos mesmos fatos já julgados. Observam os autores que a garantia do juiz natural é erigida em favor do réu e não em detrimento aos direitos deste.

Acerca dos chamados tribunais ou juízos de exceção, assim considerados aqueles criados após o fato a ser julgado, a proibição dos mesmos não abrange o impedimento da criação de justiça ou vara especializada, pois, nestes casos, não há criação de órgãos, mas simples atribuição de órgãos já inseridos na estrutura judiciária, fixada na Constituição Federal, para julgamento de matérias específicas, objetivando a melhoria na aplicação da norma substancial.

Cintra, Grinover e Dinamarco salientam a necessidade de se distinguir tribunais de exceção de justiças especiais, como a Militar, a Eleitoral e a Trabalhista, lembrando que estas são instituídas pela Lei Maior, com anterioridade à prática dos fatos a serem por elas apreciados e, portanto, não constituem ofensa ao princípio do juiz natural.

Inclui-se na proibição dos tribunais de exceção os foros privilegiados, criados como favor pessoal, mas exclui-se as hipóteses de competência por prerrogativa de função, onde é levada em conta a função exercida pelo réu e não a sua pessoa, inexistindo, neste caso, favorecimento ou discriminação.

5.8 Publicidade

Determina a Constituição Federal que "a lei só poderá restringir a publicidade dos atos processuais quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem" (artigo 5°, inciso LX). Estabelece ainda que "todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário são públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei, se o interesse público o exigir, limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes" (artigo 93, inciso IX) e que "todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado" (artigo 5°, inciso XXXIII).

Tem-se, portanto, a elevação a dogma constitucional do princípio da publicidade dos atos processuais, antes previsto apenas no caput do artigo 792 do Código de Processo Penal que já orientava que "as audiências, sessões e os atos processuais serão, em regra, públicos e se realizarão nas sedes dos juízos e tribunais, com assistência dos escrivães, do secretário, do oficial de justiça que servir de porteiro, em dia e hora certos, ou previamente designados".

O princípio da publicidade revela-se numa preciosa garantia do indivíduo e da sociedade no tocante ao exercício da jurisdição, considerando-se que, nos dizeres de Cintra, Grinover e Dinamarco, in verbis:

"a presença do público nas audiências e a possibilidade do exame dos autos por qualquer pessoa do povo representam o mais seguro instrumento de fiscalização popular sobre a obra dos magistrados, promotores públicos e advogados. Em última análise, o povo é o juiz dos juízes. E a responsabilidade das decisões judiciais assume outra dimensão, quando tais decisões hão de ser tomadas em audiência pública, na presença do povo".

A regra geral da publicidade está, pois, em correspondência com os interesses da sociedade e em consonância com o sistema acusatório, contrapondo-se ao processo do tipo inquisitivo onde os atos eram feitos a portas fechadas, secretamente, sem qualquer fiscalização do povo ou mesmo do próprio acusado. A publicidade permite, de fato, a transparência da atividade jurisdicional, evitando-se excessos ou arbitrariedades no decorrer do processo, que, em regra, poderá ser fiscalizado pelos cidadãos a qualquer tempo.

Diz-se "em regra", pois o princípio da publicidade encontra exceções previstas na própria Lei Maior (p.ex. art. 5°, XXXVIII, "b") e também na legislação infraconstitucional (artigos 483 e 792, §1°, do CPP). Por essa razão, a doutrina classifica a publicidade em plena (popular imediata ou geral) e restrita (especial, mediata, interna ou para as partes).

A primeira refere-se a publicidade sem exceções, quando os atos podem ser assistidos por qualquer pessoa e estão abertos a todo o público. É a regra geral, devendo qualquer hipótese de restrição ser expressamente prevista em lei, de acordo com os limites constitucionalmente assegurados.

A publicidade restrita se apresenta quando um número reduzido de pessoas ou apenas as partes e seus defensores podem ter ciência e/ou estar presentes aos atos do processo. Tal limitação à regra geral da publicidade popular encontra amparo quando o decoro, a defesa da intimidade e o interesse social aconselhem que não sejam divulgados determinados atos, também a fim de evitar escândalos, inconvenientes graves ou perigo de perturbação da ordem.

Não obstante a garantia oferecida pelo princípio da publicidade, deve-se evitar a publicidade desnecessária e sensacionalista. Esclarecem Cintra, Grinover e Dinamarco que a publicidade, como garantia política que é, tem por finalidade o controle da opinião pública nos serviços da justiça, não devendo ser confundida com o sensacionalismo que afronta a dignidade. E mais, in verbis:

"toda precaução há de ser tomada contra a exasperação do princípio da publicidade. Os modernos canais de comunicação de massa podem representar um perigo tão grande como o próprio segredo. As audiências televisionadas têm provocado em vários países profundas manifestações de protesto. Não só os juízes são perturbados por uma curiosidade malsã, como as próprias partes e as testemunhas vêem-se submetidas a excessos de publicidade que infringem seu direito à intimidade, além de conduzirem à distorção do próprio funcionamento da Justiça, através de pressões impostas a todos os figurantes do drama judicial".

Por fim, é mister considerar que a doutrina diverge em relação ao princípio da publicidade e sua aplicação nos atos pré-processuais referentes ao Inquérito Policial. Tourinho Filho ensina que, pela natureza inquisitiva da fase pré-processual, a publicidade não o atinge, até porque determina o artigo 20 do CPP que a autoridade assegurará no Inquérito o sigilo necessário. Ademais, acrescenta o autor, a Constituição Federal menciona a publicidade dos atos processuais, e os do Inquérito não o são.

Por outro lado, Cintra, Grinover e Dinamarco esclarecem que, não obstante a regra de sigilo imposta ao Inquérito Policial por força do dispositivo retrocitado, o Estatuto da Advocacia (Lei n° 8.906/94), ao estabelecer como direitos do advogado o de "examinar em qualquer repartição policial, mesmo sem procuração, autos de flagrante e de Inquérito, findos ou em andamento, ainda que conclusos à autoridade, podendo copiar peças e tomar apontamentos" (art. 7°, inciso XIV) e o de "ingressar livremente nas salas e dependências de audiências, secretarias, cartórios, ofícios da justiça, serviços notoriais e de registro, e, no caso de delegacias e prisões, mesmo fora da hora do expediente e independentemente da presença de seus titulares (art. 7°, inciso VI, "b’), praticamente fez com que o sigilo dos Inquéritos desaparecesse.

5.9 Obrigatoriedade

O princípio da obrigatoriedade, também chamado de princípio da indisponibilidade, é o que predomina no processo penal. Segundo ele, a autoridade policial é obrigada a instaurar Inquérito Policial e o órgão do Ministério Público não pode deixar de promover a ação penal quando houver a prática de um crime apurado mediante ação penal pública, conforme dispõem os artigos 5°, 6° e 24, do CPP. Tal princípio contrapõe-se ao da oportunidade ou disponibilidade, pelo qual o órgão estatal tem a faculdade de promover ou não a ação penal, de acordo com a máxima minima non curat praetor, devendo o Estado abster-se de coisas insignificantes e, assim, deixar de promover o jus puniendi quando verificar, sob o prisma do interesse público, que do exercício da ação penal poderá advir maiores inconvenientes que vantagens.

A prevalência do princípio da obrigatoriedade em nosso processo criminal tem razão de ser pelo caráter público das normas penais materiais e pela necessidade de se assegurar à coletividade uma convivência tranqüila e pacífica. Ora, sendo o crime uma lesão irreparável ao interesse coletivo, o Estado não tem apenas o direito, mas o dever de punir aqueles que violarem a ordem jurídica numa ameaça à harmonia e à paz social. Sob essa óptica, os órgãos incumbidos da persecução penal não têm poderes discricionários para apreciarem a oportunidade ou conveniência da instauração de Inquérito Policial ou da propositura da ação penal, conforme o caso.

Cintra, Grinover e Dinamarco lecionam que no princípio da indisponibilidade está a base do Processo Penal e que, reforçando o que já foi dito, enquadrado um fato na tipificação legal, nenhuma parcela de discricionariedade pode ser atribuída aos órgãos responsáveis pela persecutio criminis. Ademais, asseveram que se algumas infrações são consideradas tão insignificantes a ponto de a persecução penal tornar-se inconveniente, compete ao legislador descriminalizá-las.

Há, contudo, algumas exceções ao princípio da obrigatoriedade. Estas podem ser observadas, por exemplo, nos casos de ação penal privada e naqueles de ação penal pública condicionada à representação ou à requisição. Nessas situações, o ius accusationis dependerá da manifestação de vontade do ofendido ou de seu representante legal ou ainda da expressa disposição do Ministro da Justiça.

Outras exceções podem ser verificadas nas infrações penais de menor potencial ofensivo (Lei n° 9.099/95 e Lei n° 10.209/01), onde é clara a mitigação do princípio da obrigatoriedade. Na Lei dos Juizados Especiais, a composição, quando aplicada, tem por conseqüência a renúncia ao direito de queixa ou representação, e, por isso, não gera efeitos penais, e na transação, em que pese a existência de sentença homologatória que atesta uma sanção voluntariamente aceita pelo agente, não há reconhecimento de culpabilidade e sequer figura em certidão de antecedentes criminais, salvo para os fins constantes no artigo 76, §4°, in fine, da Lei n° 9.099/95. Outrossim, nos crimes de média gravidade quando o órgão acusador, de acordo com as circunstâncias do caso, pode propor a suspensão condicional do processo (artigo 89 da Lei n° 9.099/95).

Imperioso notar que a mesma indisponibilidade existente na instauração do Inquérito Policial e na propositura da ação penal também deve nortear a tramitação dos mesmos, não sendo permitido à Autoridade Policial e nem ao Ministério Público desistir de suas investigações ou da ação, respectivamente (arts. 17 e 42 do CPP). Também prevê o artigo 576 do CPP a aplicação do princípio da indisponibilidade em matérias recursais, sendo certo que o órgão acusador não tem a faculdade de desistir do recurso interposto. Trata-se da regra da irretratabilidade que, igualmente, sofre exceções. É o caso dos crimes de ação privada, nos quais as normais infraconstitucionais (arts. 49, 51 e ss e 60, CPP) admitem os institutos da renúncia, do perdão e da perempção, e dos crimes de ação pública condicionada à representação, onde é possível a retratação antes de oferecida a denúncia (art. 25, CPP).

Em que pese não restarem dúvidas da predominância do princípio da obrigatoriedade em nosso sistema processual penal, há forte tendência em se atenuar sua rigidez admitindo-se certa flexibilidade no tocante à oportunidade e conveniência da persecução penal. Vejamos.

Figueiredo Dias adverte que o princípio da legalidade deve continuar a constituir o ponto de partida da modelagem do sistema, porém, continua o autor, in verbis:

"bem se compreende que, relativamente a certos casos concretos, a promoção e a prossecução obrigatórias do processo penal causem à comunidade jurídica maior dano que vantagem – máxime, atento o pequeno significado da questão para o interesse público, ou conexionado este com dificuldades de prova, inflação do número de processos, pequena probabilidade de executar a condenação, etc. (vg., relativamente a fatos cometidos no estrangeiro ou por pessoa que não se encontre no país) – e que, em tais casos, se deixe ao MP uma certa margem de discricionariedade".

Na elaboração do Código de Processo Penal Tipo para América Latina, constou no item IX de sua Exposição de Motivos que, in verbis:

"nenhum sistema penal processa todos os casos que se produzem em uma sociedade; ao contrário, as estatísticas universais e nacionais demonstram a escassa quantidade de casos que são solucionados pelos diversos sistemas. O direito de nossos países, em geral, se aferra ao chamado ‘princípio da legalidade’, que pretende sejam perseguidas todas as ações puníveis, segundo uma regra geral de obrigação. Em que pese o princípio, na prática operam diversos critérios de seleção informais e politicamente caóticos, inclusive dentro dos órgãos de persecução penal e dos órgãos judiciais do Estado. Decorre então que é necessário introduzir critérios que permitam conduzir essa seleção de casos de forma razoável e em consonância com convenientes decisões políticas. Isso significa modificar, em parte, o sistema de exercício das ações do Código Penal, tolerando exceções à ‘legalidade’, com critérios de oportunidade, legislativamente orientados".

Sobre o tema, manifesta-se Scarance afirmando que, in verbis:

"com o aumento populacional e conseqüente incremento da criminalidade, há que se admitir no plano legal certa discricionariedade de atuação do órgão acusatório, principalmente em infrações mais leves ou em determinadas situações concretas onde não há maior interesse em punir. A adoção integral do princípio da obrigatoriedade exigiria do Estado, mormente nas grandes cidades, um número infindável de juízes e promotores para que fossem julgadas todas as infrações. Na prática diária a autoridade policial tem, até com o assentimento público, oportunidade de não instaurar inquéritos policiais em várias ocasiões, em virtude da pequena gravidade dos fatos noticiados. Acaba, por isso, existindo grande discricionariedade da autoridade policial ante o inevitável fato de que o elevado número de crimes noticiados não permite que sejam todos objeto de investigação e processo".

Alguns autores, como Euclides Custódio da Silveira e Frederico Marques, entendem que a redação do artigo 28 do CPP conferiu ao Ministério Público certa margem de discricionariedade para requerer o arquivamento do Inquérito Policial. Pautam-se os eminentes estudiosos na expressão "razões invocadas", contida no referido dispositivo legal, a qual, acreditam, poderia referir-se também a infrações leves, pouco interessantes ao órgão acusador, tendo em vista o insignificante dano causado à sociedade. Este posicionamento é completamente rechaçado por Fernando Tourinho Filho, para o qual tais "razões invocadas" dizem respeito apenas à ausência de materialidade ou prova de autoria.

Concluindo o presente tópico, cite-se o posicionamento de Scarance Fernandes sobre o assunto, in verbis:

"Na prática, em grandes centros é praticamente impossível que de todo crime seja iniciado processo, o que, se ocorresse, representaria o caos em um Justiça já atravancada; é comum, em casos de lesão de pequena intensidade ao bem jurídico, ser pedido arquivamento de inquérito com o beneplácito do Poder Judiciário, invocando-se muitas vezes razões até de política criminal ou fundamentando-se o requerimento justamente na pouca relevância do fato. Outro caminho consistiu em dar maior elasticidade ao conceito de justa causa para a ação penal, fundando-a na viabilidade da acusação; assim, se os indícios vindos da investigação não permitiam antever possibilidade de sucesso da ação penal, ela não era intentada. Mais ainda, formou-se corrente que admite o arquivamento do inquérito quando, pelas circunstâncias do caso, a sentença condenatória seria ineficaz porque inevitável a prescrição pela pena em concreto; fala-se então em falta de interesse de agir ante a inabilidade de se obter sentença eficaz."

5.10 Presunção de Inocência e In Dubio Pro Reo

Tourinho Filho considera o princípio da presunção de inocência como o coroamento do due process of law. Segundo Castanheira Neves, "é um ato de fé no valor ético da pessoa, próprio de toda sociedade livre".

Garante o artigo 5°, inciso LVII, da Constituição Federal que "ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória", elevando o princípio da presunção de inocência a dogma constitucional, tal como proclamado no artigo 11 da Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948. Ressalte-se que o mencionado princípio já se encontrava inserido no ordenamento jurídico brasileiro em conseqüência da adesão do Brasil à Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), conforme Decreto n° 678/92, a qual dispõe em seu artigo 8°, n° 2, que "toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa".

Decorre do princípio da presunção de inocência, ou do estado de inocência, como preferem alguns, que: a liberdade do acusado só pode ser restringida antes da sentença definitiva a título de medida cautelar que seja efetivamente necessária e conveniente, nos termos da lei; cabe ao órgão acusador o ônus de comprovar a culpabilidade do acusado, não tendo este o dever de provar sua inocência; para prolatar a sentença condenatória, o juiz deve estar plenamente convencido de que o réu foi o autor do ilícito penal apurado, sendo que, havendo dúvidas quanto à sua responsabilidade, deverá o juiz absolver o réu. Neste último caso, tem-se o consagrado princípio do in dubio pro reo, ou seja, em caso de ausência de provas suficientes capazes de dirimir por completo qualquer dúvida a respeito da autoria do delito, deverá o juiz prolatar sentença absolutória a favor do acusado, na forma do artigo 386, VI, do CPP. Convém observar que os princípios da presunção de inocência e do in dubio pro reo, embora integrem o gênero favor rei, não se confundem.

Em síntese, enquanto não for definitivamente condenado por meio de sentença penal condenatória transitada em julgado, presume-se o réu inocente e como tal deve ser tratado. Sob este prisma, Mirabete entende que, por força do princípio constitucional da presunção de inocência, ficaram evidentemente revogados os artigos 393, II, e 408, §1°, do Código de Processo Penal.

Édson Luís Baldan ensina que o direito de ser presumido inocente possui quatro funções básicas: "limitação à atividade legislativa, critério condicionador das interpretações das normas vigentes, critério de tratamento extra-processual em todos os seus aspectos (inocente); obrigatoriedade de o ônus da prova da prática de um fato delituoso incidir sempre sobre o acusador, pelo critério da não culpabilidade". Prossegue o ilustre autor lecionando que três exigências decorrem da previsão constitucional da presunção da inocência, quais sejam:

"a) o ônus da prova dos fatos constitutivos da pretensão penal pertence com exclusividade à acusação, sem que se possa exigir a produção por parte da defesa de provas referentes a fatos negativos (prova diabólica); b) necessidade de colheita de provas ou de repetição de provas já obtidas perante o órgão judicial competente, mediante o devido processo legal, contraditório e ampla defesa; c) absoluta independência funcional do magistrado na valoração livre das provas".

O STF firmou entendimento sobre o tema, determinando que, in verbis:

"nenhuma acusação penal se presume provada. Não compete ao réu demonstrar a sua inocência. Cabe ao Ministério Público comprovar, de forma inequívoca, a culpabilidade do acusado. Já não mais prevalece, em nosso sistema de direito positivo, a regra, que, em dado momento histórico do processo político brasileiro (Estado Novo), criou, para o réu, com a falta de pudor que caracteriza os regimes autoritários, a obrigação de o acusado provar a sua própria inocência (Decreto-lei n. 88 de 20.12.1937, art. 20, no. 5)" (HC n° 73.338/RJ – RTJ 161/264).

É importante notar que a presunção de inocência constitucionalmente assegurada é do tipo juris tantum e, por assim ser, poderá ser afastada pelas provas produzidas no decorrer do devido processo legal, sempre sob o manto do contraditório e da ampla defesa.

Face ao preceito da presunção de inocência, as exigências pertinentes à prisão cautelar ficaram mais rigorosas, justificando-se tal medida apenas quando estritamente necessária e respaldada pela lei. Do contrato, ensina-nos Tourinho Filho, o réu estaria sofrendo antecipadamente uma pena, sendo considerado culpado antes da sentença penal condenatória, numa clara ofensa à festejada garantia da presunção de inocência: "Não havendo perigo de fuga do indiciado ou imputado e, por outro lado, se ele não estiver criando obstáculo à averiguação da verdade buscada pelo Juiz, a prisão provisória torna-se medida inconstitucional".

Na esteira desses pensamentos, não podem as redações dos artigos 393, I, e 594 do CPP, do artigo 35 da Lei n° 6.368/76 e do artigo 2°, §2°, da Lei n° 8.072/90 subsistirem tal qual se encontram. Verdadeiramente, se o réu não pode ser considerado culpado enquanto a sentença penal condenatória não transitar em julgado, não parece ser correta a obrigação de ter que se recolher à prisão para poder recorrer à jurisdição superior. Tourinho Filho assevera que se pode inferir do texto constitucional, "com clareza de doer nos olhos, que o réu tem o direito público subjetivo de natureza constitucional de apelar em liberdade".

Ante o exposto, toda e qualquer prisão anterior ao trânsito em julgado da sentença penal condenatória deve revestir-se de natureza cautelar, sob pena de se estar ferindo o princípio da presunção de inocência. Sobre o tema, mais uma vez Tourinho Filho disserta e orienta que, in verbis:

"Quando ocorre uma prisão em flagrante, e não estando presente qualquer das circunstâncias que autorizam a decretação da prisão preventiva, o indiciado tem o direito de ficar em liberdade, nos termos do parágrafo único do art. 310 do CPP; se o cidadão cometeu um crime inafiançável, mas não foi preso em flagrante, sua prisão preventiva somente poderá ser decretada se for necessária, e a lei diz quando ela se torna necessária: se o agente está perturbando a ordem pública ou a ordem econômica, se está criando obstáculo à instrução criminal, ou se está pretendendo subtrair-se da eventual aplicação da lei penal. Ausentes tais circunstâncias, não poderá ser preso preventivamente. […] Pela mesma razão, se for condenado por sentença não transitada em julgado, sua prisão provisória, ou o seu antecipado cumprimento de pena, só se justifica se ele estiver dando sinais de que pretende subtrair-se à aplicação da lei penal. Senão, não."

Cumpre alertar que apenas fato de o réu ter maus antecedentes ou ter praticado crime hediondo não é suficiente para justificar a prisão antes da sentença condenatória definitiva. Nesse sentido, o Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo julgou que "se durante a instrução criminal o réu manteve a liberdade, porque a custódia era desnecessária, impossível a prisão durante o recurso baseada simplesmente em maus antecedentes reconhecidos na sentença" (RT 658/297). E ainda, "segundo revelam os autos, o paciente, embora não tenha bons antecedentes, permaneceu em liberdade durante toda a instrução. Não foi preso em flagrante e não se entendeu necessária sua prisão preventiva. E, em liberdade, não deu causa de qualquer embaraço quanto ao processamento da ação penal. De justiça, portanto, deferir-se a ele, pelo menos, o direito de continuar em liberdade até o julgamento definitivo da ação penal" (HC 198.476/7). No que concerne ao fato de ter praticado crime hediondo, pronunciou-se o STJ afirmando que "a manutenção da prisão em flagrante só se justifica quando presentes os requisitos ensejadores da prisão preventiva, nos moldes do art. 310, parágrafo único, do CPP. O fundamento único da configuração de crime hediondo ou afim, sem qualquer outra demonstração de real necessidade, nem tampouco da presença dos requisitos autorizadores da prisão preventiva, não justifica a prisão em flagrante" (REsp n° 243.893/SP).

Nada impede, contudo, que o Juiz, na sentença condenatória recorrível, decrete a prisão do réu. Entretanto, ao fazê-lo, deverá fundamentar seu ato constritivo na necessidade da medida cautelar, à luz do artigo 312 do CPP.

5.11 Verdade Real

A atual concepção publicista do processo não mais admite o órgão jurisdicional agindo como se fosse mero expectador da demanda judicial. Reconhecida sua autonomia, enquadrada como ramo do Direito Público e considerando a finalidade sócio-política da função jurisdicional, cumpre ao Juiz, em especial no processo criminal, exercer o ius puniendi estatal somente contra aquele que efetivamente praticou a infração penal, nos limites de sua culpa.

Para tanto, o Processo Penal não deve encontrar limites na forma ou na iniciativa das partes, ao contrário, impõe-se-lhe a busca e o descobrimento da verdade real, material, ou seja, cumpre ao Juiz averiguar além dos limites artificiais da verdade formal, com o intuito claro e determinado de valer fazer a função punitiva em face daquele que realmente tenha cometido um ilícito penal.

Bastante em voga no Processo Civil, é denominada verdade formal aquela criada por atos ou omissões das partes, presunções, ficções, transações e outros institutos jurídicos pertinentes. No âmbito civil, o órgão jurisdicional pode satisfazer-se com a verdade formal, limitando-se a acolher o que as partes levam ao processo. Destarte, confiando no interesse das partes para descobrir a verdade, o juiz pode restringe-se às provas trazidas por estas aos autos, procedimento até certo ponto aceitável visto a disponibilidade, em regra, dos direitos em questão.

Ocorre que, no Processo Penal, os direitos são indisponíveis, numa clara prevalência do interesse público sobre a autonomia privada, o que, per si, configura razão suficiente para o predomínio do sistema da livre investigação das provas. Assim sendo, é dever do juiz dar seguimento ao processo quando da inércia da parte, determinar ex officio provas que entender necessárias à instrução da causa e conhecer de circunstâncias sem a provocação das partes, tudo isso visando sempre ao completo esclarecimento da verdade real.

Cintra, Grinover e Dinamarco lecionam, valendo-se de uma visão mais contemporânea do Processo, que, in verbis:

"o processo civil, hoje, não é mais eminentemente dispositivo, como era outrora; e o processo penal, por sua vez, transformando-se de inquisitivo em acusatório, não deixou completamente à margem uma parcela de dispositividade das provas. Impera, portanto, tanto no campo processual penal como no campo processual civil, o princípio da livre investigação das provas, embora com doses maiores de dispositividade no processo civil".

De fato, já há algum tempo que, mesmo na seara civil, os poderes do órgão jurisdicional estão sendo paulatinamente aumentados, fazendo com que o juiz passe de expectador inerte à posição ativa de perquiridor da verdade. A diferença então para o Processo Penal é que, naquele, na maioria dos casos, o juiz, embora possa assumir algumas iniciativas das partes (arts. 130 e 342, CPC), tem a faculdade de satisfazer-se com a verdade formal apresentada nos autos. Neste, entretanto, o juiz penal só aceitará a verdade formal excepcionalmente, se não dispuser de meios capazes para assegurar a verdade material.

Afirmam Cintra, Grinover e Dinamarco que, in verbis:

"enquanto no processo civil o princípio do dispositivo foi aos poucos se mitigando, a ponto de permitir-se ao juiz uma ampla gama de atividades instrutórias de ofício (v. ainda CPP, art. 440), o processo penal caminhou em sentido oposto, não apenas substituindo o sistema puramente inquisitivo pelo acusatório (no qual se faz uma separação nítida entre acusação e jurisdição: CPP, art. 28), mas ainda fazendo concessões ao princípio dispositivo (cf. Art. 386, inc. VI), sem falar na Lei dos Juizados Especiais Criminais (lei n. 9.099/95)."

Inegável a afirmação de que o princípio da verdade real não vige de forma absoluta em nosso Processo Penal. Exemplos de mitigação do citado princípio podem ser facilmente identificados em algumas situações, tais como: após uma absolvição transitada em julgado, não é possível rescindi-la mesmo quando surjam provas concludentes contra o réu; possibilidade de transação nas ações privadas com o perdão do ofendido; a perempção provocada pela omissão ou desídia do querelante; e outras causas de extinção da punibilidade que, de uma forma ou de outra, podem impedir a descoberta da verdade real.

Há, portanto, tanto no Processo Civil quanto no Processo Penal uma conciliação dos princípios do dispositivo com o da livre investigação judicial. O juiz, em ambos, pode transigir com a verdade real, sendo certo que, na seara criminal, tal transigência é, e deve ser, bem menor.

Por fim, Tourinho Filho, com bastante propriedade, traz à baila o que alguns doutrinadores chamam de verdade processual ou verdade forense. In verbis:

"mesmo na justiça penal, a procura e o encontro da verdade real se fazem com as naturais reservas oriundas da limitação e falibilidade humanas, e, por isso, melhor seria falar de ‘verdade processual’ ou ‘verdade forense’, até porque, por mais que o Juiz procure fazer uma reconstrução histórica do fato objeto do processo, muitas e muitas vezes o material de que ele se vale poderá conduzi-lo a uma ‘falsa verdade real’; por isso mesmo Ada P. Grinover já anotava que ‘verdade e certeza são conceitos absolutos, dificilmente atingíveis, no processo ou fora dele’ (A iniciativa instrutória do juiz no processo penal acusatório, RF, 347/6)."

Ao que parece, a expressão verdade processual, também defendida por Ada Pellegrini Grinover, é a mais correta por estar em consonância com os ditames da moderna processualística penal e com o tipo de verdade que efetivamente se pode encontrar no iter processual criminal.

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Sobre o autor
Flúvio Cardinelle Oliveira Garcia

Graduado em Ciências da Computação pela Universidade Católica de Brasília (1995). Graduado em Direito pelo Centro Universitário de Brasília (2002). Pós-graduado em Direito Eletrônico e Tecnologia da Informação pelo Centro Universitário da Grande Dourados (2008). Mestre em Direito Processual Penal pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2008). Professor de Direito Penal e Direito Processual Penal na Pontifícia Universidade do Paraná. Delegado de Polícia Federal. Chefe do Núcleo de Repressão ao Crimes Cibernéticos da Polícia Federal do Paraná, com ênfase investigativa para os delitos de ódio e de pornografia infantojuvenil, mormente praticados pela Internet. Membro do Instituto Brasileiro de Direito da Informática (IBDI), do Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico (IBDE) e do High Technology Crime Investigation Association (HTCIA).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GARCIA, Flúvio Cardinelle Oliveira. Diretrizes constitucionais aplicadas no âmbito do Direito Processual Penal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 278, 11 abr. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4993. Acesso em: 25 abr. 2024.

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