COMPETÊNCIA PELO DOMICÍLIO OU RESIDÊNCIA DO RÉU
A regra para se determinar a competência em limites territoriais brasileiros é, como estudamos, a do locus delicti commissi. Na impossibilidade, contudo, de se conhecer o lugar em que foi cometida a infração penal, prevê o artigo 72 do Código de Processo Penal que a competência seja fixada pelo domicílio ou residência do réu (forum domicilii). Tem-se, destarte, um critério subordinado, subsidiário, um foro supletivo para o exercício jurisdicional nos casos concretos em que não for conhecido o lugar onde o delito foi perpetrado e o critério da prevenção não puder ser aplicado.
Tourinho Filho alerta que domicílio e residência são expressões com significados distintos [24]. Não obstante isso, o Código de Processo Penal não define uma nem outra, o que força o intérprete a recorrer ao Código Civil para dirimir suas dúvidas. O artigo 70 do Novo Código Civil define o domicílio da pessoa natural como o "lugar onde ela estabelece a sua residência com ânimo definitivo". Infere-se, assim, que a residência tem um caráter mais transitório, exprimindo unicamente o fato da habitação. O domicílio, por sua vez, exprime algo mais permanente: a intenção de fixar residência.
Transpondo para o Processo Penal as definições constantes nos artigos 70 e seguintes do novo diploma civil de 2002 (antigos arts. 31 e seguintes do Código Civil de 1916), Mirabete esclarece que "deve-se entender que a competência é determinada pelo domicílio (residência com ânimo definitivo, centro de ocupações habituais, na falta de ambos o ponto central de negócio ou, na falta dos anteriores, o lugar onde for encontrado) ou pela residência (simples local de habitação ou morada)". [25]
Sobre o tema, Tourinho Filho afirma que "o legislador, tendo em vista a distinção que, no cível, se estabelece entre domicílio e residência, procurou, no campo processual penal, solucionar o problema de competência de maneira mais simples: tanto no domicílio como na residência poderá tramitar a causa penal". [26]
Caso o réu possua várias residências, considerar-se-á seu domicílio qualquer uma delas (art. 71, NCC). Na hipótese de não ter residência habitual, o foro competente será aquele onde for encontrado (art. 73, NCC). Em último caso, não se sabendo seu paradeiro, a competência será fixada por prevenção, na forma dos artigos 83 e 72, §2°, do CPP.
Por fim, ressalte-se que a competência também poderá ser determinada pelo domicílio ou residência do réu, mesmo quando conhecido o lugar da infração. É o que pode ocorrer nos casos referentes à ação privada exclusiva, bastando que, para tanto, o querelante expresse sua vontade nesse sentido (art. 73, CPP).
COMPETÊNCIA POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO
Algumas pessoas, tendo em vista a importância do cargo público que ocupam, são julgadas e processadas criminalmente por órgãos jurisdicionais superiores, distintos do foro comum previsto aos cidadãos em geral. Essa distinção, nos dizeres de Mirabete, funda-se "na utilidade pública, no princípio da ordem e da subordinação e na maior independência dos tribunais superiores". [27]
Tourinho Filho ensina que "há pessoas que exercem cargos de especial relevância no Estado e, em atenção a esses cargos ou funções que exercem no cenário político-jurídico da nossa Pátria, gozam elas de foro especial, isto é, não serão processadas e julgadas como qualquer do povo, pelos órgãos comuns, mas, pelos órgãos superiores, de instância mais elevada". [28]
Nesse exercício jurisdicional levado a termo por órgãos diferenciados, relevando-se o cargo ou a função pública da pessoa, é que se verifica a competência pela prerrogativa de função (art. 69, VII, CPP).
Observe-se que não se trata de um privilégio concedido à pessoa, pois isso seria contrário ao princípio da igualdade expressamente contido no caput do artigo 5° da Constituição Federal, mas de uma prerrogativa que decorre da relevância e da importância do cargo ou da função que a pessoa ocupa ou exerce.
Fernando Capez discorre acerca do assunto e defende o respeito ao princípio da igualdade nos casos de prerrogativa de função. In verbis:
"de fato, confere-se a algumas pessoas, devido à relevância da função exercida, o direito a serem julgadas em foro privilegiado [sic]. Não há que se falar em ofensa ao princípio da isonomia, já que não se estabelece a preferência em razão da pessoa, mas da função [...] Na verdade, o foro por prerrogativa visa preservar a independência do agente político, no exercício de sua função, e garantir o princípio da hierarquia, não podendo ser tratado como se fosse um simples privilégio estabelecido em razão da pessoa". [29]
Corroborando esta mesma tese, Tourinho Filho didaticamente esclarece que:
"Poderia parecer, à primeira vista, que esse tratamento especial conflitaria com o princípio de que todos são iguais perante a lei [...], e, ao mesmo tempo, entraria em choque com aquele que proíbe o foro privilegiado. Pondere-se, contudo, que tal tratamento especial não é dispensado à pessoa [...], mas sim ao cargo, à função. [...] O que a Constituição veda e proíbe, como conseqüência do princípio de que todos são iguais perante a lei, é o foro privilegiado e não o foro especial em atenção à relevância, à majestade, à importância do cargo ou função que essa ou aquela pessoa desempenhe. [...] Esse foro especial, como bem disse Garraud ‘se legitima e se explica em face da necessidade de serem criadas garantias especiais de firmeza e de imparcialidade nos processos aos quais essas pessoas são expostas’". [30]
Convém frisar, portanto, a distinção entre privilégio, que decorre de benefício à pessoa, e prerrogativa, que se alicerça na função ou no cargo que a pessoa exerce ou ocupa. No primeiro, há ofensa ao texto constitucional, no segundo, não.
As hipóteses de foro especial previstas na Constituição Federal estão separadas de acordo com os órgãos constantes na estrutura do Poder Judiciário.
Assim, pela ordem, compete ao Supremo Tribunal Federal processar e julgar, originariamente, "nas infrações penais comuns, o Presidente da República, o Vice-Presidente, os membros do Congresso Nacional, seus próprios Ministros e o Procurador-Geral da República (art. 102, I, b, CF/88) e "nas infrações penais comuns e nos crimes de responsabilidade, os Ministros de Estado e os Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica, ressalvado o disposto no art. 52, I, os membros dos Tribunais Superiores, os do Tribunal de Contas da União e os chefes de missão diplomática de caráter permanente" (art. 102, I, c, CF/88).
Ensina Scarance Fernandes que, para o STF, a competência por prerrogativa de função atinge também crime eleitoral e até mesmo a contravenção penal. [31]
Ao Superior Tribunal de Justiça compete processar e julgar, originariamente, nos termos do art. 105, I, a, da Lei Maior:
"nos crimes comuns, os Governadores dos Estados e do Distrito Federal, e, nestes e nos de responsabilidade, os desembargadores dos Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal, os membros dos Tribunais de Contas dos Estados e do Distrito Federal, os dos Tribunais Regionais Federais, dos Tribunais Regionais Eleitorais e do Trabalho, os membros dos Conselhos ou Tribunais de Contas dos Municípios e os do Ministério Público da União que oficiem perante tribunais."
Contudo, no que concerne aos crimes eleitorais, o entendimento do próprio STJ é no sentido de que prevalece a competência da Justiça Eleitoral, no particular o Tribunal Superior Eleitoral, para o processo e o julgamento do delito, uma vez tratar-se de órgão jurisdicional especializado para conhecimento da matéria. [32]
Os Tribunais Regionais Federais são competentes para o processo e o julgamento dos "juízes federais da área de sua jurisdição, incluídos os da Justiça Militar e da Justiça do Trabalho, nos crimes comuns e de responsabilidade" e dos "membros do Ministério Público da União, ressalvada a competência da Justiça Eleitoral" (art. 108, I, a, CF/88) (grifei).
Aos Tribunais Estaduais, compete o julgamento dos prefeitos municipais (art. 29, X, CF/88) e dos juízes estaduais e do Distrito Federal e Territórios, bem como dos membros do Ministério Público, nos crimes comuns e de responsabilidade, ressalvada a competência da Justiça Eleitoral (art. 96, III, CF/88). Ainda em relação aos Tribunais Estaduais, preceitua o artigo 125 da Carta Magna que aos Estados, observados os preceitos constitucionalmente firmados, incumbe a organização de sua Justiça e que "a competência dos tribunais será definida na Constituição do Estado, sendo a lei de organização judiciária de iniciativa do Tribunal de Justiça" (art. 125, §1°, CF/88).
Pelo princípio da simetria, as autoridades estaduais que ocuparem cargos ou exercerem funções equivalentes aos de âmbito federal têm a prerrogativa de ser julgadas por órgão jurisdicional superior que represente o equivalente estadual ao previsto na Lei Maior para os cargos federais. É de se atentar, porém, que o STJ já decidiu ser inconstitucional dispositivo constante em Constituição Estadual que institua foro por prerrogativa de função não previsto na Constituição Federal ou em lei federal.
Scarance Fernandes, em referência à Justiça Eleitoral, afirma que "no tocante ao processo e julgamento de autoridades sujeitas, em relação ao crime comum, ao Tribunal de Justiça Estadual, tanto o Supremo Tribunal Federal como o Superior Tribunal de Justiça atribuem a competência ao Tribunal Regional Eleitoral". [33]
Urge salientar que nos casos de competência por prerrogativa de função o local onde o delito foi cometido não é relevante, sendo sempre ressalvada a competência originária dos órgãos jurisdicionais. Infere-se, portanto, que se um Promotor de Justiça do Distrito Federal, por exemplo, for acusado de um crime praticado em São Paulo, deverá ser processado e julgado perante o Tribunal de Justiça do Distrito Federal, e não perante o do locus delicti commissi. [34] De igual forma, se um Procurador da República ou um Juiz Federal, em exercício no TRF da 1ª Região, cometer um crime em São Paulo, não responderá perante o TRF da 3ª Região, mas perante o de 1ª Região, com sede e jurisdição em Brasília.
Com bastante proficiência, Mirabete ressalta que "os dispositivos constitucionais sobre prerrogativa de função, alteraram, evidentemente, os artigos 86 e 87 do Código de Processo Penal com relação à competência do Supremo Tribunal Federal e dos Tribunais de Apelação (de Justiça, de Alçada), além de acrescentar hipóteses de competência de nova Corte, o Superior Tribunal de Justiça". [35]
Interesse notar que a competência por prerrogativa de função, quando for o caso de concurso de pessoas, abrangerá também, ex vi arts. 77, I, e 78, III, do CPP, pessoas não gozam de foro especial. Contudo, consoante a jurisprudência, se a denúncia contra a pessoa que desfruta do foro especial for rejeitada, os demais denunciados, não beneficiados originalmente pela prerrogativa de função, serão processados e julgados segundo as regras gerais de competência, ou seja, o julgamento retorna para o primeiro grau de jurisdição (RT 740/643).
O artigo 85 do Código de Processo Penal prevê nova situação em que se assegura o foro especial por prerrogativa de função a pessoas que originariamente dele não poderiam se beneficiar. Vejamos: "Nos processos por crime contra a honra, em que forem querelantes as pessoas que a Constituição sujeita à jurisdição do Supremo Tribunal Federal e dos Tribunais de Apelação, àquele ou a estes caberá o julgamento, quando oposta e admitida a exceção da verdade".
Magalhães Noronha, citado por Mirabete, leciona que a razão para tanto é clara. In verbis:
"Movida ação por pessoa que goza de foro especial contra o autor da ofensa à sua honra, é óbvio que o processo deve ocorrer perante a Justiça comum, mas, oposta a exceptio veritatis, isto é, propondo-se o acusado demonstrar a verdade do fato que imputou, fato que acarretará conseqüências nocivas e prejudiciais e, eventualmente, até ação penal contra o ofendido, tudo aconselha a que o processo em curso, com a exceção de verdade, seja apreciado pelo Juízo competente conforme o foro por prerrogativa de função. Este que é competente para o processo do querelante é também para apreciar a exceção da verdade oposta contra ele. Dá-se agora, prorrogação e competência do foro especial". [36]
Mirabete bem lembra que, dentre os crimes contra a honra previstos na legislação penal, o artigo 85 do CPP somente é aplicável para os casos de calúnia, pois na injúria não se admite a exceção de verdade e na difamação, ainda que admitida a exceptio veritatis, não há imputação de fato definido como crime, mas apenas de fato ofensivo à reputação.
Nos casos de crime doloso contra a vida, em que o réu gozar de foro especial por prerrogativa, boa parte da doutrina entende que a competência para o processo e o julgamento será do foro especial e não do Tribunal do Júri, desde que a prerrogativa de função não esteja prevista em Constituição Estadual, em lei processual ou em normas de organização judiciária. Nesses casos, deverá prevalecer a norma constitucional. [37]
Outros, porém, consideram o Tribunal do Júri como uma garantia individual, posto que inserido no rol do artigo 5° da Constituição Federal. Nesse diapasão, elencado o sobredito instituto como cláusula pétrea, deve sempre sobrepor-se ao foro especial por prerrogativa de função. [38]
Como a competência por prerrogativa de função relaciona-se diretamente ao cargo ou função que a pessoa ocupe ou exerça, parece óbvio afirmar que a mesma não se estende aos delitos perpetrados após a cessação definitiva do exercício funcional, conforme apregoa a Súmula 451 do STF. [39] Nesse sentido, RTJ 75/420; RT 412/113, 499/302, 506/318, 534/380; RJTJESP 42/294 e outros.