3. PRINCÍPIO DA BOA-FÉ OBJETIVA
O princípio da boa-fé objetiva vem ao longo do tempo, ganhando seu espaço dentro do direito processual civil brasileiro, visto que no inicio não era tão presente dentro do nosso ordenamento jurídico.
O Direito reconhece a importância dos valores que regem as relações humanas cotidianas e incorporam tais valores como regras a serem observadas nas relações jurídicas existentes. A boa-fé é um exemplo clássico dessa dita incorporação de valores pelo Estado.
No Código Civil editado em 1916, portanto, no início do século XX, não havia referência expressa ao princípio da boa-fé objetiva, visto que este nasceu sob a égide do liberalismo em que ainda reinavam soberanos os princípios da autonomia da vontade e da força vinculante dos contratos.
Na medida em que a sociedade foi mudando, surgiu a necessidade de moldar o ordenamento jurídico vigente, em atenção às mudanças emergentes notadas no cotidiano social.
No código de processo civil de 1973, o princípio da boa fé objetiva, recebeu sua redação própria expressa no art. 1427, trazendo em seu caput que “são deveres das partes e de todos aqueles que de qualquer forma participam do processo”, e, ainda, em seu inciso II “proceder com lealdade e boa-fé”.
Com essa redação expressa em lei, este princípio passou a vigorar sobre os atos jurídicos, tendo que ser não só seguido, como também respeitado, pois o descumprimento desse princípio pode acarretar em nulidade processual.
Em 1988, com a reforma da nossa carta maior, a Constituição Federal, o princípio da boa-fé teve sua menção juntamente com o princípio do devido processo legal, onde liga diretamente ao princípio da boa-fé objetiva, de modo que, visa a lealdade e a verdade entre si.
Vendo a importância desse princípio, e mesmo com todo esse avanço jurídico que ocorreu em todos esses anos, em 2014, houve a elaboração do pré-projeto para o novo Código de processo civil brasileiro. Dentro desse projeto, o princípio da boa-fé, vem esboçado com redação própria em quatro Artigos, do Art. 14. ou 17. Essa nova redação, que ainda esta em projeto, vem dando mais força a esse princípio deixando-o com mais força e destaque dentro do nosso ordenamento jurídico.
Com isso o princípio da boa-fé, diariamente, tem conseguido seu espaço e reconhecimento nas relações jurídicas, tornando-se um princípio de alto valor e referência a ser seguida e respeita nas lides.
Contudo, hoje vemos o princípio da boa-fé objetiva, presente em grandes áreas do nosso ordenamento jurídico brasileiro, impondo a lealdade processual, o respeito à verdade e protegendo a sanidade processual.
4. CONSIDERAÇÕES A RESPEITO DA BOA-FÉ SUBJETIVA
A boa-fé subjetiva é aquela na qual se encontra presente a boa intenção do agente ou onde não há má intenção, onde é observada a intenção do indivíduo na prática de um ato.
Nas palavras de Viana; Stolze28, “consiste em uma situação psicológica, um estado de ânimo ou de espírito do agente que pratica determinado ato ou vivencia dada situação, sem ter ciência do vício que a inquina”.
Diferentemente da boa-fé objetiva, que é baseada na conduta do indivíduo, a boa-fé subjetiva pode ser vista como a intenção, a consciência ou a ideia do agente que precede essa conduta.
O subjetivo, no caso, deve ser visto como a intenção do agente em praticar um ato, o seu estado psicológico ou íntima convicção, seja sobre um convencimento ou desconvencimento a respeito de determinada situação ou de determinado fato. Desse modo, o agente pratica determinado ato ilícito ou prejudicial a outrem com o convencimento de se tratar de uma prática lícita ou de possuir direito sobre determinado bem.
Sobre o tema em questão, Martins-Costa29 leciona que:
A boa-fé subjetiva denota, portanto, primariamente, a idéia de ignorância, de crença errônea, ainda que excusável, acerca da existência de uma situação regular, crença (e ignorância excusável) que repousam seja no próprio estado (subjetivo) da ignorância (as hipóteses do casamento putativo, da aquisição de propriedade alheia mediante a usucapião), seja numa errônea aparência de certo ato (mandato aparente, herdeiro aparente etc.). Pode denotar, ainda, secundariamente, a idéia de vinculação ao pactuado, no campo específico do direito contratual, nada mais aí significando do que um reforço ao princípio da obrigatoriedade do pactuado, de modo a se poder afirmar, em síntese, que a boa-fé subjetiva tem o sentido de uma condição psicológica que normalmente se concretiza no convencimento do próprio direito, ou na ignorância de se estar lesando direito alheio, ou na adstrição “egoística” à literalidade do pactuado.
Nas questões práticas, deve haver investigação por parte do legislador, especialmente quando há antecipação em atribuir a determinadas condutas a presunção de ter sido o indivíduo movido por qualquer intenção, seja boa ou má, conforme previsto nos artigos 1.201, parágrafo único, e no artigo 1.256, parágrafo único, e também nos artigos 17 e 600 do Código de Processo Civil de 197330.
Viana; Stolze31 salientam que:
Ora, é sabido que todo efeito jurídico é decorrência de fato jurídico, afinal, o fato jurídico é um acontecimento, ou um conjunto de acontecimentos, natural ou humano, que, por se subsumir a uma hipótese prevista no sistema normativo – a hipótese de incidência –, é apto para produzir determinado efeito, o efeito jurídico, consistente na criação, conservação, modificação ou extinção de uma relação jurídica.
Assim, fica fácil concluir que a boa-fé subjetiva é um elemento fático. Ela integra determinados fatos jurídicos. Se assim não fosse, a sua presença não produziria efeitos jurídicos.
Verifica-se, portanto, que a boa-fé subjetiva se encontra na crença do agente de estar agindo corretamente, ou ainda, na ignorância do mesmo a respeito da ilicitude de sua ação. Caso o agente esteja ciente da consequência ou ilicitude de suas ações, ele estará simplesmente agindo de má-fé.
5. A BOA-FÉ COMO PRINCÍPIO IDEAL DO PROCESSO
A boa-fé é elemento necessário a todas as relações humanas, ligada à ética e à honestidade, pode ser considerada uma virtude individual, que deve ser observada na maneira de agir do indivíduo, seja perante a sociedade de um modo geral ou em uma relação jurídica em que deve haver boa-fé das partes envolvidas.
Segundo Mendes32:
[...] Pode-se definir, a princípio, a boa-fé como sendo uma virtude que, dentro do parâmetro do certo e errado do padrão do homem probo, representa ações humanas valoradas como certas, que tem como objetivo final o bem. Estar de boa-fé implica, pois, demonstrar um espírito leal, sincero e honesto, opondo-se ao dolo e à fraude.
A boa-fé também é vista como um princípio, por se tratar de fonte do direito e por sua importância no sistema jurídico, que como todo princípio, é base e influi diretamente nas normas e nas relações jurídicas em geral.
Os princípios podem ser vistos como pilares do ordenamento jurídico, por se tratarem de normas jurídicas fundamentais e de grande importância no sistema jurídico brasileiro.
A respeito dos princípios, Mendes33 ressalta que:
Os princípios têm função hermenêutica, integrativa e regulativa, funcionando assim como um guia de como deve o aplicador do Direito atuar em face do caso concreto. Ao mesmo tempo que os princípios servem de modelo para a conduta do operador jurídico, eles dão validade às decisões emanadas pelo Poder Judiciário quando estas se envolvem em seus preceitos. Dessa forma, o aplicador deve fazer um esforço metodológico no intuito de buscar legitimar suas decisões invocando os preceitos dos princípios jurídicos e, principalmente, dos princípios gerais do Direito.
Como normas jurídicas de maior importância que são, os princípios servem como diretrizes interpretativas e trazem direitos. Os princípios constitucionais trazem um padrão para interpretação e integração do direito, assim como dão coerência ao sistema jurídico, por evidenciarem os valores a serem respeitados, observados e sustentados no processo de interpretação constitucional34.
Importante ressaltar que, no que tange a boa-fé, existem entendimentos divergentes sobre se tratar de uma cláusula geral ou um princípio, especialmente pela extensão de sua aplicação, o que, contudo, não pode ser confundido.
As cláusulas gerais são vistas como normas conexas que, por utilizarem uma linguagem vaga, trazem ao julgador a necessidade de buscar soluções em outras fontes do direito. Ao contrário dos princípios, que podem ser implícitos ou explícitos, as cláusulas gerais são explicitas.
Os princípios, implícitos ou explícitos, por outro lado, servem como guia de direcionamento para aplicação em determinado caso concreto, possuindo maior importância e aplicabilidade.
Em suma, não se pode afirmar que cláusulas gerais e princípios são o mesmo, se tomarmos a expressão princípio jurídico em toda a extensibilidade que lhe é própria. É certo que, tanto quanto às cláusulas gerais, aos princípios pode ser atribuída a vagueza semântica, mas esta, como se viu, pode ser observada em qualquer termo ou expressão, constituindo antes uma questão de grau do que de característica. Boa parte da incerteza acerca dos lindes das cláusulas gerais e dos princípios é devida à confusão entre o sintagma cláusula geral e o enunciado, com a correspondente proposição normativa, contido num texto que consubstancia cláusula geral. Aí se fala, indistintamente, no “princípio da boa-fé”, inscrito no § 242 do BGB, e na “cláusula geral da boa-fé”, desenhada pelo mesmo texto legislativo, como se poderia falar no conceito juridicamente indeterminado revelado na expressão linqüística “boa-fé” 35.
Entende-se, desse modo, tratar-se o princípio da boa-fé de um princípio implícito, daí a discussão sobre se tratar de princípio ou cláusula geral, a qual é reflexo também de estar contido em diversos dispositivos legais e em outros princípios fundamentais. O princípio da boa-fé pode ser encontrado nos próprios direitos e garantias fundamentais contidos na Constituição Federal de 1988, podendo ser verificado, por exemplo, nos princípios do acesso à justiça, do devido processo legal e da igualdade.
5.1. Princípio Processual da Boa-fé e a Constituição Federal de 1988
A boa-fé está inserida em várias passagens da Constituição Federal de 1988, o que embasa o entendimento de se tratar também de um princípio e não apenas de uma cláusula geral.
A Carta Magna traz em seu texto direitos e garantias fundamentais processuais, que se relacionam diretamente com a boa-fé se tratar de um princípio que possui como base a confiança que antecede a prática de um ato jurídico.
As garantias processuais mínimas que podem ser identificadas nas constituições modernas e nos tratados internacionais do século XX, de modo bastante amplo, são as seguintes: (a) acesso à justiça; (b) devido processo legal; (c) direito de ação; (d) direito de defesa; (e) contraditório; (f) impossibilidade de uso no processo de provas obtidas por meios ilícitos; (g) juiz natural e impossibilidade de serem construídos tribunais de exceção; (h) garantias mínimas da magistratura; (i) dever de fundamentar as decisões; (j) publicidade dos julgamentos; (k) duplo grau de jurisdição; (l) auxílio jurídico aos menos favorecidos economicamente; (m) eficácia e tutela adequada e imediata das garantias constitucionais por meio de remédios jurídicos adequados36.
Algumas normas processuais encontram-se inseridas na Constituição Federal, são os chamados princípios constitucionais processuais, que são considerados instrumentos processuais que visam à tutela dos direitos fundamentais. Nesse aspecto, verifica-se que o direito constitucional compreende a tutela constitucional dos princípios fundamentais da organização judiciária e do processo, e, também, a jurisdição constitucional37.
Dentre os principais princípios em que pode haver a verificação da legitimidade da boa-fé no ordenamento jurídico brasileiro, estão: o princípio do acesso à justiça, o princípio do devido processo legal e o princípio da igualdade, os quais poderão ser vistos nos tópicos seguintes.
5.1.1. A boa-fé e o acesso à justiça
A Constituição Federal de 1988 em seu artigo 5º, XXXV, garante a todos o acesso à justiça ao dispor que a lei não irá excluir da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito, a partir dessa garantia verifica-se o princípio do acesso à justiça, também chamado de princípio da inafastabilidade do Judiciário ou do direito de ação.
Esse princípio permite à parte o acesso à justiça para buscar o que entende lhe ser de direito, não podendo o legislador criar normas que dificultem ou impeçam o acesso à justiça, sendo de direito do litigante a busca pelo que entende ser justo38.
No entendimento de Brunela Vieira De Vincenzi39:
No processo civil contemporâneo, todavia, a garantia do acesso à justiça é entendida como garantia de inafastabilidade do controle jurisdicional, não se liga somente ao direito de ação e defesa, pois tomou foros de universalização da garantia da tutela jurisdicional, sem a preocupação exacerbada com os direitos individuais, o enfoque está voltado para a sociedade e para a efetividade da prestação da tutela jurisdicional.
O acesso à justiça é garantido na busca à defesa aos direitos violados, sejam eles, individuais, difusos e coletivos.
“[...] Engloba também a exigência do cumprimento da boa-fé nas relações jurídicas, devendo as partes desta relação agir conforme os mandamentos do princípio da boa-fé, pois, como dito, o acesso à justiça representa o direito a uma Justiça proba40”.
Em cumprimento ao princípio do acesso à justiça no processo, o juiz não poderá alegar lacuna ou obscuridade da lei, podendo, na falta de norma cabível, utilizar a analogia, os costumes e os princípios gerais do direito, conforme disposto no artigo 126 do Código de Processo Civil.
5.1.2. A boa-fé e o devido processo legal
O Princípio do Devido Processo Legal está previsto no artigo 5º, LIV, da Constituição Federal de 1988, que determina que nenhum indivíduo poderá ser privado de sua liberdade ou de seus bens sem que haja o devido processo legal.
Na busca de um processo justo e eficaz, o devido processo legal reúne outros princípios garantidores contidos na Constituição, como os princípios da igualdade, do acesso à justiça, do contraditório e da ampla defesa, do duplo grau de jurisdição, da garantia do juiz natural e imparcial, etc.
Como se vê, a garantia do devido processo legal, nos sistemas de civil Law, tem por objetivo delinear uma norma genérica reguladora das garantias internas do processo – as que definem a forma do procedimento e o exercício das posições subjetivas das partes e do juiz na relação jurídica processual – e a principal garantia externa do processo, qual seja, a efetividade das decisões judiciais. Assegura-se, assim, de forma genérica, que deverá ser concretizada caso a caso, observando-se o limite das garantias mínimas, uma garantia processual de meio e de resultado, concedendo às partes os meios e os remédios adequados para o exercício do processo e da jurisdição, de modo a possibilitar a realização do direito de forma efetiva, ou seja, garantindo o processo civil de resultados41.
Por abranger outros princípios constitucionais, entende-se que o princípio do devido processo legal abrange também o princípio da boa-fé, que embora este último se trate de um princípio implícito, possui legitimidade no ordenamento jurídico brasileiro e na sociedade como um todo. O alcance do processo justo, pretendido pelo devido processo legal, não é possível sem que haja boa-fé nas relações processuais e nas condutas das partes envolvidas, sendo elemento necessário ao alcance da verdade e justiça42.
5.1.3. A boa-fé e o princípio da igualdade
O princípio da igualdade, também chamado de princípio da isonomia, está previsto no caput do artigo 5º da Constituição Federal, que dispõe que todos os indivíduos são iguais perante a lei, sem qualquer distinção, e, garante a todos os brasileiros e estrangeiros residentes no Brasil a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade. O inciso I do mesmo artigo dispõe sobre a igualdade entre homens e mulheres em direitos e obrigações, e, ainda, o artigo 3º, IV, da Carta Magna, veda a discriminação pela origem, raça, sexo, cor, idade e outras formas de preconceito.
Sobre a relação entre o princípio da boa-fé e o princípio da igualdade, tem-se que43:
A atuação de acordo com boa-fé reflete na igualdade constitucionalmente garantida como direito fundamental na Constituição da República, isso porque, a atuação de má-fé viola o princípio da igualdade já que a pessoa que desenvolve atividade estando convicta de certo estado de coisas, erguendo sobre ele um edifício, fica em posição de desigualdade perante a outra parte quando se apura a mera aparência da situação em que acreditou, inutilizando toda a sua construção ( GONÇALVES, 2008, apud MENDES, 2012).
Desta forma, fica clara a importância da boa-fé contida nos demais princípios constitucionais e da relação existente com esses princípios, seja na busca pela lisura processual, na confiança das partes, do acesso à justiça e da igualdade, por se tratarem de instrumentos garantidores de direitos, na busca individual daquilo entendido como correto para as partes, e, principalmente no alcance de uma finalidade maior que é a justiça.