6. A BOA-FÉ NO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL ATUAL (LEI Nº 5.869/1973)
A boa-fé no Código de Processo Civil de 1973 encontra-se inserida no artigo 14, II, que dispõe ser dever das partes e demais participantes do processo agir com lealdade e boa-fé.
“[...] Pode ser entendido como uma regra geral de conduta para os participantes do processo, concitando-os a agirem com probidade e lealdade com a outra parte, muito embora estejam participando de uma disputa processual e queiram vencer44”.
Pode-se interpretar a boa-fé contida no inciso II do artigo 14 como uma norma geral que estabelece às partes envolvidas no processo agirem de acordo com a boa-fé objetiva, ou seja, uma conduta honesta e leal, das partes e demais envolvidos, dentro de todas as fases processuais.
Parece que a melhor interpretação e aplicação para o art. 14, com efeito, está na aceitação efetiva de que ele contempla um feixe de deveres decorrentes da cláusula geral da boa-fé (objetiva), que arrimados nas garantias constitucionais do contraditório efetivo e do devido processo legal em seus postulados mínimos, que visam limitar o exercício dos poderes conferidos ao juiz no processo civil, poderão dar ensejo à efetiva aplicação – prática, e não só teórica – dos postulados éticos do processo civil contemporâneo, que busca resultados e não somente o cumprimento de fórmulas estruturais preconcebidas em detrimento do direito material objeto do processo e dos escopos da jurisdição45 [...].
Além do artigo 14 do Código de Processo Civil de 1973, a boa-fé está inserida em outros artigos do mesmo Código, podendo ser verificada no artigo 15, que prevê a violação da boa-fé objetiva no caso de quebra do decoro na linguagem utilizada no processo; no artigo 16, que prevê o cabimento de perdas e danos quando houver má-fé; no artigo 17, que lista as condutas que caracterizam a litigância de má-fé; e, no artigo 18, que prevê a aplicação de multa à parte condenada por litigância de má-fé.
Importante ressaltar que tais sanções podem ser aplicadas cumulativamente, conforme o contexto uma vez que possuem natureza distinta. Assim sendo, vejamos a natureza jurídica de cada uma:
Art. 14. do CPC: trata-se de sanção processual por ato atentatório à dignidade da jurisdição (contempt of court).O descumprimento de ordens judiciais pelo advogado pode configurar violação de deveres éticos profissionais com responsabilização do advogado frente à Ordem dos Advogados do Brasil, em que responderá administrativamente (sanção administrativa ).
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Art. 15. do CPC: trata-se de sanção processual por ato quebra do decoro na linguagem, podendo configurar violação de deveres éticos profissionais com responsabilização do advogado frente à Ordem dos Advogados do Brasil, em que responderá administrativamente (sanção administrativa ).
Art. 16. do CPC: trata-se de sanção civil, em que deve ser lido conjuntamente com os arts. 186, 187 e 927 do Código Civil.
Art. 17. do CPC: previsão de condutas que ensejam a sanção processual (litigância de má-fé);
Art. 18. do CPC: previsão dos percentuais no caso de sanção processual por litigância de má-fé (até 1%) e da sanção civil pela ocorrência de danos à parte contrária (até 20%) 46.
Verificada o emprego da boa-fé como norma geral e como princípio constitucional, verifica-se também, sua aplicação em diversas fases e âmbitos do direito processual, como no direito de ação, na citação, no direito de defesa, no estudo das provas e no processo de execução.
6.1. A boa-fé no direito de ação
O direito de ação, mais conhecido como acesso à justiça, é o direito concedido, ao agente que se sentir lesado de alguma forma, de buscar a tutela jurisdicional, com o ajuizamento da ação pertinente.
Qualquer pessoa possui o direito de ajuizar uma ação quando entender que houve lesão de algum direito, sendo importante o emprego da boa-fé, tanto subjetiva quanto objetiva, em todas as fases da ação.
Quanto à definição do direito de ação, tem-se que:
Direito de ação é o direito fundamental (situação jurídica, portanto) composto por um conjunto de situações jurídicas, que garantem ao seu titular o poder de acessar os tribunais e exigir deles uma tutela jurisdicional adequada, tempestiva e efetiva. É direito fundamental que resulta da incidência de diversas normas constitucionais, como os princípios da inafastabilidade da jurisdição e do devido processo legal47 [...].
Dentro desse contexto, o artigo 17 do Código de Processo Civil de 1973 traz em seus incisos os casos em que há litigância de má-fé, sendo eles: quando houver dedução da pretensão ou defesa contra texto expresso em lei ou fato incontestável; quando alterar a verdade dos fatos; quando utilizar da ação processual com o intuito de obter finalidades ilícitas; quando opuser resistência injustificada ao andamento processual; quando proceder de maneira temerária em qualquer incidente ou ato processual; quando provocar incidentes manifestamente sem fundamento; e, por último, quando interpuser recurso com a finalidade manifestada de protelar.
Desta forma, entende-se que todas as fases processuais devem estar munidas de boa-fé, e, assim como na fase do ajuizamento da ação, que é a fase inicial do processo e da busca pelo direito da parte litigante.
6.2. A boa-fé e a citação
A citação é o ato através do qual se comunica ao réu ou interessado sobre a existência de ação processual na qual é parte, chamando-o a juízo para que possa exercer seu direito de defesa, segundo definição trazida pelo Código de Processo Civil de 1973 sem seu artigo 213.
A citação é o ato processual de comunicação ao sujeito passivo da relação jurídica processual (réu ou interessado) de que em face dele foi proposta uma demanda, a fim de que possa, querendo, vir a defender-se ou a manifestar-se. Tem, pois, dupla função: a) in iusvocatio, convocar o réu a juízo; b) edictioactionis, cientificar-lhe do teor da demanda formulada48.
Ainda, segundo o artigo 215 do Código de Processo Civil de 1973, a citação poderá ser pessoal, na pessoa do réu, de seu representante legal ou procurador legalmente autorizado. O artigo 221 do mesmo dispositivo determina que, a citação deverá ser feita através do correio (comumente utilizada), por meio de Oficial de Justiça (quando a citação por correio for frustrada) ou por edital (nos casos previstos no artigo 231).
No campo da comunicação dos atos processuais é também muito comum a participação pontual e/ou eventual de pessoas igualmente vinculadas ao dever de se comportar em consonância com a boa-fé objetiva.
É o que acontece com o mandatário, administrador ou gerente do citando ausente, quando a demanda houver sido proposta com base em ato por ele praticado e a citação for feita na pessoa dele (art. 215, § 1º); com o carteiro incumbido da entrega, ao citando, da carta de citação (art. 223, parágrafo único); com a pessoa com poderes de gerência geral ou de administração, que vier a receber a carta de citação dirigida para a pessoa jurídica (arts. 223, parágrafo único); e com a pessoa da família ou o vizinho do citando, a quem, no caso de citação com hora certa, o oficial de justiça cientificar de que voltará a fim de efetuar a citação ou a intimação (arts. 227)[49].
Considera-se válida a citação de terceiro que recebe citação em nome de pessoa jurídica, mesmo que não possua procuração específica para recebê-la, caso em que será empregada a boa-fé objetiva. Será considerada válida, ainda, a citação recebida na portaria estabelecida pela pessoa jurídica, caso em que não será nula, conforme entendimento jurisprudencial50.
Desse modo, a boa-fé pode ser verificada também nesse estágio processual, sendo a citação instrumento essencial, em um primeiro momento, para o exercício do direito de defesa da parte citada.
6.3. A boa-fé no direito de defesa
O direito de defesa é garantido às partes de uma ação processual e encontra-se inserido nos direito e garantias fundamentais da Constituição Federal de 1988, disposto no artigo 5º, LV, da Constituição, que trata dos princípios do contraditório e da ampla defesa.
A boa-fé, nesse caso, é importante para a asseguração do direito de defesa das partes envolvidas na ação processual, não podendo haver abuso por nenhuma das partes, garantindo assim, o exercício pleno desse direito.
“[...] A boa-fé é presumida, sendo esta presunção relativa, competindo a quem alegar a má-fé comprovar tal ocorrência. Toda e qualquer decisão que considere a parte como violadora da boa-fé deve ser amplamente fundamentada (CF/88, art. 93, IX)51[...]”.
A decisão que considerar que a parte violou a boa-fé deve ainda, preservar o contraditório e à plena defesa, especialmente quando, se tratar de processos secretos, por ser incompatível com o direito à plena defesa, não cabendo depoimento de inimigos capitais do acusado ou julgamento sem a presença do mesmo, devendo ainda, haver cautela quanto à aplicação de sanção por litigância de má-fé, para não ferir o direito à plena defesa; o direito de informação das partes sobre os elementos e atos praticados no processo; o direito de manifestação das partes no processo; e, o direito das partes de possuírem seus argumentos considerados52.
Quando houver abuso de direito de defesa ou manifesto protelatório por parte do réu, o juiz pode utilizar da antecipação da tutela, mediante prova inequívoca e verossimilhança da alegação do autor, segundo disposto no artigo 273, inciso II, do Código de Processo Civil de 1973.
Dentro desse tema, Brunela Vieira De Vincenzi ensina que:
A técnica antecipatória é utilizada no art. 273, II, do Código como forma de sanção ao réu que violar os deveres processuais estabelecidos pelo art. 14. Assim, a conseqüência negativa – teoricamente inevitável – imposta à parte que violar os deveres processuais é a inversão do tempo do processo em seu desfavor. O tempo de duração do processo que naturalmente corre contra o autor, que tem de aguardar o provimento judicial final para a solução da crise que o trouxe para o processo, por meio da técnica antecipatória, é invertido e recai sobre o réu, que passa a ter, então, interesse em colaborar para a rápida solução do conflito.
Trata-se de sanção que visa a impedir que os efeitos do intuito protelatório do réu, demonstrado no processo pela insuficiência jurídica e fática da defesa apresentada, ocorram efetivamente no processo. Dessa forma, mais do que reprimir a violação dos deveres processuais, a medida permite impedir que os efeitos danosos do ato ocorram no mundo jurídico, ao mesmo tempo em que impõe o dever de colaboração ao réu para o fim útil e rápido do processo.
Destarte, ao contrário do que ocorre com as sanções à litigância de má-fé (multas, responsabilidade processual agravada e indenização pecuniária), na antecipação de tutela, no caso do inciso II, inverte-se o ônus do tempo do processo, transferindo-o ao réu que não apresenta defesa consistente, permitindo, dessa forma, a imediata “punição”, ou seja, a conduta que visa a impedir o rápido fim do processo é coibida e reprimida imediatamente para que não produza efeitos. A sanção por litigância de má-fé atinge um ato processual já concretizado e só tem efeitos para o futuro, pois a multa (de cunho indenizatório) só irá incidir após o trânsito em julgado da decisão, quando então o autor deverá executar o crédito dela decorrente em processo de execução autônomo53.
Assim, a má-fé prejudica o exercício de direito de defesa da parte contrária, e, se verificada, justifica a antecipação da tutela, que como visto serve de sanção para a parte ré, transferindo o ônus do tempo do processo e coibindo a conduta protelatória da parte.
6.4. A boa-fé no estudo das provas
O direito das partes apresentarem provas, como forma de exercício da própria defesa e para convencimento do próprio juiz sobre seu direito, cabem no processo todas as provas em direito admitidas.
“Daí a importância do estudo das provas, sem o qual se mostra totalmente impotente os direitos de ação e de defesa. Entretanto, também o direito a provar suas alegações deve ser temperado com as regras inerentes à boa-fé objetiva54 [...]”.
O artigo 333 do Código de Processo Civil de 1973 trata do ônus da prova, trazendo em seu texto:
Art. 333. O ônus da prova incumbe:
I - ao autor, quanto ao fato constitutivo do seu direito;
II - ao réu, quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor.
Parágrafo único. É nula a convenção que distribui de maneira diversa o ônus da prova quando:
I - recair sobre direito indisponível da parte;
II - tornar excessivamente difícil a uma parte o exercício do direito.
Verifica-se, desta forma, que é dever das partes apresentarem as provas relativas ao processo, quando necessárias, como meio colaborativo ao Poder Judiciário para o desenrolar do processo e descobrimento da verdade para uma decisão justa do litígio entre as partes55.
O inciso IV do artigo 14 do Código de Processo Civil de 1973, determina a não produção de provas e práticas de atos inúteis ou desnecessários à declaração ou defesa do direito como sendo dever das partes e participantes do processo.
O artigo 358 do mesmo Código apresenta os casos em que o juiz não admitirá recusa de provas, quando: o requerido tiver obrigação legal de exibir; o requerido aludiu ao documento ou à coisa, no processo, com o intuito de constituir prova; o documento, por seu conteúdo, for comum às partes.
O dispositivo legal claramente representa limitação ao direito subjetivo da parte (o direito de recusa em apresentar documento, encampado pela regra de que ninguém pode ser obrigado a produzir provas contra si mesmo), diante da vedação da conduta contraditória. Assim, o ato próprio da parte (fazer menção a um documento com finalidade de constituir prova), gera naquele que ocupa o outro pólo da demanda, a legítima expectativa de que tal documento será apresentado em juízo e, conseqüentemente, poderá ser usado como meio de prova.
Essa confiança gerada na contra-parte não pode ser defraudada – tutela da confiança. Com efeito, o direito a recusa não pode ser exercitado neste caso, pois, caso contrário, estaria sendo privilegiado o ato contraditório56.
Importante ressaltar que, as provas previstas no Capítulo VI do Código de Processo Civil de 1973 são: depoimento da parte, prova documental, prova testemunhal e prova pericial.
6.5. A boa-fé no estudo de recursos
O recurso faz parte do direito de defesa das partes no processo, portanto, cabe recurso às partes, por exemplo, de decisão que considerada insatisfatória ou de decisão que beneficie a parte contrária, sendo o recurso dirigido às instâncias de grau superior, para nova apreciação.
No âmbito da boa-fé na matéria de recurso processual, o Código de Processo Civil de 1973 estabeleceu em seu artigo 17, inciso II, que a parte que interpuser recurso com finalidade manifestamente protelatória será considerada e sofrerá as sanções da litigância de má-fé.
Dentre os casos em que o recurso é considerado manifestamente protelatório, podem-se mencionar aqueles em que o meio de impugnação provoca matéria em que já houve preclusão, que já transitou em julgado ou que contraria entendimento já pacificado pela jurisprudência57.
Destarte, também diante da duração excessiva dos procedimentos, principalmente pela potencialização do tempo para a obtenção da tutela jurisdicional por aquele que tem razão, decorrente da utilização reiterada de um sem-número de recursos previstos no sistema brasileiro pela contraparte, é necessário inverter o ônus da duração do processo, impondo o fator tempo àquele que der causa a essa duração, à parte vencida em primeiro grau e em segundo grau, nos casos em que é possível ainda a utilização dos recursos especial e extraordinário, por exemplo.
A inversão do ônus do tempo pelo processo é, ademais, forma de coibir o uso indevido dos recursos. Presume-se, a partir da sentença favorável a uma parte, que a contraparte não tenha fundamentos jurídicos e de fato suficientes para a reforma da decisão, impondo-lhe o ônus pelo tempo de julgamento do recurso, ou seja, deve aguardar o julgamento final sem prejudicar o direito da parte vencedora em primeiro grau.
Necessário, também, se faz atentar para o fato de que os recursos não podem ser considerados genericamente como protelatórios pelo simples fato de demandarem maior tempo de julgamento58.
Importante frisar que, o fato dos recursos influenciarem em uma demora no andamento do processo, por necessitarem de maior tempo para análise e apreciação, não os torna protelatórios, em alguns casos as próprias decisões interlocutórias, emanadas dos poderes conferidos aos julgadores, influencia nessa demora, assim como a falta de recursos suficientes do poder judiciário brasileiro59.
Segundo o artigo 503 do Código de Processo Civil de 1973, não caberá recurso à parte que aceitar a sentença de forma expressa ou tácita, sendo entendida como tácita, a prática de ato incompatível com a vontade de recorrer.
6.6. A boa-fé no processo de execução
No processo de execução é necessária a existência de título executivo, seja ele judicial ou extrajudicial, os títulos executivos extrajudiciais encontram-se previstos no artigo 585 60 do Código de Processo Civil de 1973, enquanto o título judicial é a própria sentença.
No que tange à execução de título judicial, o artigo 575 do Código de Processo Civil de 1973, determina que deverá ser processada perante os tribunais superiores, nas causas de competência originária; pelo juízo que decidiu a causa no primeiro grau de jurisdição; ou, pelo juízo cível competente, quando se tratar de sentença penal condenatória ou sentença arbitral.
Quanto à aplicação da boa-fé no processo de execução, o artigo 593 do Código traz os casos em que havendo má-fé da parte ré, comprometendo a eficiência processual, será considerada fraude à execução. A fraude à execução ocorrerá quando houver alienação ou oneração de bens sobre os quais existir ação fundada em direito real, ou ainda, quando no momento da alienação ou oneração exista contra o devedor demanda que o leve à insolvência, e, nos demais casos previstos pela lei.
Outras hipóteses de comprometimento da instituição jurisdicional são: a oposição maliciosa do devedor à execução, a resistência às ordens judiciais e a não indicação da localização dos bens sujeitos à execução61.
Brunela Vieira De Vincenzi faz uma crítica ao processo de execução e leciona que:
[...] O complicado rito estabelecido para a incidência da sanção pecuniária para aquele que atentasse contra a dignidade da justiça e o fato de a multa ser revertida em favor da parte prejudicada fizeram com que as sanções aos atos atentatórios quase nunca sejam aplicadas no processo civil brasileiro. Destarte, a preocupação foi tanta em proteger o executado e sua liberdade no processo, que se acabou por impor tantas formalidades para a aplicação das sanções, conferindo ao executado tamanha liberdade, que o processo de execução é visto hoje como o menos eficaz e o mais lento dos procedimentos do Código, não alcançando os resultados programados pelo direito, nem atendendo aos postulados contemporâneos do acesso à justiça, do contraditório e do devido processo legal. Ademais, com a imposição de multas pecuniárias que se revertem em benefício da parte prejudicada, não se restabelece a dignidade da justiça62.
Desta forma, verifica-se a importância da boa-fé no processo de execução, que, embora não seja um rito plenamente eficaz, busca a resolução do conflito entre as partes, buscando sempre um desenrolar adequado à demanda e a decisão mais justa para o caso concreto.