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A questão da legalidade da Segunda Guerra do Golfo

31/03/2004 às 00:00
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Muito se tem falado sobre a não descoberta, até o momento, das armas de destruição em massa no Iraque, como se o aparecimento ou não de tais armas tornasse a guerra legal ou ilegal perante o direito internacional.

O relatório do juiz da Hutton (isentando o Governo Britânico de maquiar as informações para fomentar a opinião pública a ser favorável à guerra), e o anúncio recente da instauração pelos governos dos Estados Unidos e Grã-Bretanha de comissões para investigar as informações de suas respectivas inteligências com relação às armas de destruição em massa do Iraque, mesmo que apontem falhas ou acertos, não são instrumentos que possam ser usados para justificar a legalidade ou ilegalidade da intervenção militar ocorrida.

O presente artigo é uma análise da questão da legalidade da Segunda Guerra do Golfo sob a ótica do direito de uso da força no direito internacional. Trato somente com as questões legais, não me envolvendo nas questões políticas e morais levantadas pela operação militar da Segunda Guerra do Golfo, colocando de lado ideologias ou sentimentos que afloram quando o assunto é discutido.

Para entendermos melhor a questão da legalidade da Segunda Guerra do Golfo é importante revermos o histórico das Resoluções aprovadas pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas relacionadas ao Iraque. Porém, antes, apresentarei um breve resumo sobre o direito de uso da força.


PROIBIÇÃO DO USO DA FORÇA

O direito internacional proíbe o uso da força ou a ameaça do uso da força contra a integridade territorial ou independência política de qualquer Estado. Tal proibição encontra-se no artigo 2(4) da Carta das Nações Unidas ("Carta").

Porém, há três exceções à proibição do uso da força, duas estabelecidas na própria Carta e outra decorrente do desenvolvimento do direito internacional.

I - AUTODEFESA

A primeira exceção está no artigo 51 da Carta, que estabelece que nada afasta de um Estado seu direito inerente de autodefesa individual ou coletivo contra um ataque armado ocorrido contra sua integridade territorial ou independência política.

II – AUTORIZAÇÃO DO CONSELHO DE SEGURANÇA

A segunda exceção decorre do Capítulo VII da Carta, segundo o qual o Conselho de Segurança (que tem a responsabilidade primária de manter a paz mundial) pode considerar determinada situação um ato de agressão, uma ameaça à paz ou quebra da paz. Nessas situações o Conselho de Segurança pode determinar sanções contra o Estado que infringiu a lei internacional contra a paz e seguridade internacional, estabelecendo sanções que podem chegar até ao uso da força (ação militar), por tropas das Nações Unidas (como no caso da Guerra da Coréia) ou autorizando Estados ou Organizações Internacionais a executá-las, como tem sido a prática recente do Conselho de Segurança.

III – INTERVENÇÃO HUMANITÁRIA

A terceira exceção decorre do desenvolvimento do direito internacional quando da possibilidade do uso da força contra um Estado, quando há um enorme desastre humanitário com a perda em larga escala de vidas humanas, estando o Conselho de Segurança inerte ou inapto a tomar as providências necessárias (como no caso ultrajante de Ruanda) e nada, a não ser uma força militar, pode impedir tal catástrofe, como nos casos de Kosovo, Norte do Iraque na região dos Curdos (1991) e Libéria.


HISTÓRICO

Quando o Iraque invadiu o Kuwait em 2 de Agosto de 1990, a comunidade internacional e principalmente o Conselho de Segurança da ONU, que por quase meio século ficou imobilizado pela Guerra Fria e pelo veto das grandes potências para proteger seus aliados, deparou-se com um formidável desafio.

Ao invadir e anexar o Kuwait, Saddam Hussein foi contra as regras do direito internacional que proibiam o uso da força (ignoradas durante a Guerra Fria). Porém, dessa vez, a velha rivalidade oeste-leste não existia mais, e uma nova ordem internacional se instaurava.

No mesmo dia que o Iraque anexou o Kuwait, o Conselho de Segurança decretou na Resolução 660, dentro do Capítulo VII da Carta, que a invasão fora uma quebra da paz e seguridade internacional e ordenou a retirada imediata das tropas iraquianas.

Com a relutância do Iraque em cumprir a Resolução 660, o Conselho de Segurança adotou a Resolução 661 impondo sanções econômicas contra o Iraque - o total embargo comercial e o congelamento de bens Iraquianos no exterior.

Entretanto, nem isso persuadiu o Iraque a retirar suas tropas do Kuwait. Assim, em 29 de Novembro de 1990, o Conselho de Segurança aprovou a Resolução 678 demandando a retirada das tropas Iraquianas do Kuwait até o prazo limite de 15 de Janeiro de 1991, e autorizando os Estados-membros cooperando com o Governo do Kuwait a tomar todos os meios necessários (leia-se ataque militar) para implementar a Resolução 660 (retirada das tropas Iraquianas) e a restaurar a paz e seguridade na região.

A Resolução 678 é importantíssima para entendermos certas conseqüências legais com relação ao uso da força no presente caso. Até a tomada da Resolução 678, o Kuwait e as Estados aliados ao Governo Kuwaitiano poderiam atacar as tropas Iraquianas com base no direito de autodefesa coletivo. Porém, teriam o limite legal de poder somente retirá-las do Kuwait.

Com a aprovação da Resolução 678 a ação militar transferiu-se do âmbito de autodefesa coletivo ou individual (do Kuwait ou eventualmente da Arábia Saudita) para o de uma ação militar autorizada pelo Conselho de Segurança, e com o adendo de restaurar a paz e seguridade na região, ou seja, um mandato muito mais amplo, autorizando até, se necessária, a ida das tropas aliadas à Bagdá para a retirada de Saddam Hussein.

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As hostilidades começaram após o prazo final de 15 de Janeiro de 1991 e terminaram cerca de seis semanas depois quando as tropas da coalização, depois da libertação do Kuwait, foram ordenadas pelo Presidente Bush em 28 de Fevereiro de 1991 a cessarem o ataque.

O Conselho de Segurança mediante a Resolução 687 impôs os requisitos ao Iraque para o cessar fogo. Os mais importantes requisitos impostos ao Iraque foram: (i) libertação dos prisioneiros de guerra; (ii) devolução dos bens saqueados do Kuwait; (iii) pagamento de compensação pelos prejuízos causados pela invasão ilegal do Kuwait e pelas hostilidades subseqüentes; (iv) autorização de inspeções de suas facilidades nucleares e ligadas a armas de destruição em massa, conseqüente destruição das armar de destruição em massa e de mísseis balísticos de longa distância e de toda capacitação para construí-los; e (v) encerramento de ajuda a grupos terroristas.

Não é necessário dizer o quanto o Iraque descumpriu os requisitos e o quanto tripudiou com os inspetores de armas enviados pela ONU. O Governo Iraquiano nunca devolveu os bens roubados do Kuwait, recusou-se a pagar os prejuízos causados pela invasão ao Kuwait (recusou um acordo que permitiria ao Iraque voltar a vender livremente o seu Petróleo se 30% do valor fosse destinado a pagar os prejuízos causados), nunca cooperou integralmente com os inspetores de armas (só resolvia abrir seus complexos e dossiês quando havia a ameaça séria do uso da força, como em 1998), e financiava grupos terroristas, especialmente palestinos (como envio de dinheiro aos familiares dos homens-bomba).


QUESTÃO DA LEGALIDADE

Entretanto, mesmo com a clara violação pelo Iraque dos requisitos estabelecidos para o cessar fogo, o uso da força contra o Iraque só poderia ser justificado se estivesse dentro de uma das três exceções que possibilitam o uso da força no direito internacional, conforme acima descrito. Resta saber se a Segunda Guerra do Golfo se enquadra em uma delas:

  1. Intervenção Humanitária
  2. – a coalizão nunca apresentou essa justificativa como base legal para a operação militar da Segunda Guerra do Golfo. Nada, na época da invasão, demonstrava que o Governo Iraquiano estava promovendo um enorme desastre humanitário com a perda em larga escala de vidas humanas, como no caso de Ruanda. Tal justificativa foi usada pela coalizão após a Primeira Guerra do Golfo, quando as forças aliadas atacaram as forças Iraquianas no Norte do Iraque, sem a expressa autorização do Conselho de Segurança, em decorrência da gigantesca repressão aos curdos promovida por Saddam Hussein, causando uma grande massa de refugiados que tentavam cruzar a fronteira com a Turquia. Portanto, conclui-se que Intervenção Humanitária não poderia ser a base legal para a Segunda Guerra do Golfo.
  3. Direito inerente de autodefesa individual ou coletivo
  4. – não houve um ataque iraquiano, nem havia a possibilidade imediata e próxima de um ataque iraquiano ao Kuwait, Arábia Saudita, Estados Unidos ou Grã-Bretanha. Mesmo com as constantes ameaças de Saddam Hussein, não se acreditava na possibilidade de um ataque Iraquiano ao Kuwait. Autodefesa não pode ser a base legal para justificar a operação militar contra o Iraque em 2003.
  5. Autorização do Conselho de Segurança da ONU
  6. – (a)
    que poderia ser uma nova Resolução determinando uma ação militar contra o Iraque por uma nova situação que se caracterizaria como ato de agressão, ameaça à paz ou quebra da paz e seguridade internacional; ou (b) uma Resolução afirmando que o Iraque estaria descumprindo os requisitos do cessar fogo da Resolução 687, e conseqüentemente revivendo a Resolução 678 que autorizou as ações militares da Primeira Guerra do Golfo.

Somente a Resolução 1441, aprovada pelo Conselho de Segurança por unanimidade em 8 de novembro de 2002, até com grande surpresa para os Estados Unidos e a Grã-Bretanha que não esperavam os votos favoráveis de França e Rússia, poderia se enquadrar dentro de uma das hipóteses do item III.

A Resolução 1441 não caracteriza nenhuma ação do governo Iraquiano como uma nova agressão, ameaça à paz ou quebra da paz. A Resolução lida somente com as questões da Primeira Guerra do Golfo e com as Resoluções e circunstâncias conseqüentes da mesma. Resta saber se a Resolução 1441 encontra-se na hipótese "b" acima, ou seja, se a resolução afirmou que o Iraque estaria descumprindo os requisitos do cessar fogo e reviveu a Resolução que autorizou as ações militares da Primeira Guerra.

Na Resolução 1441, o Conselho de Segurança reafirma a Resolução 678 que autorizou os Estados Membros a usar todos os meios necessários (leia-se ataque militar) para implementar a Resolução 660 e Resoluções subseqüentes e a restaurar a paz e a seguridade na região. A Resolução ressalta a Resolução 687 que impôs as obrigações ao Iraque para o cessar fogo, deplorando que o Iraque não tenha providenciado uma abertura precisa, total, final e completa de todos os aspectos dos seus programas de desenvolvimento de armas de destruição em massa e mísseis balísticos, e que o Governo do Iraque tenha falhado em cumprir com as obrigações com relação a terrorismo, repressão à população civil e devolução de todos os bens e prisioneiros retirados do Kuwait.

A afirmação mais importante da Resolução 1441 está contida no primeiro parágrafo, onde o Conselho de Segurança "decide que o Iraque tem estado e permanece em violação substancial das obrigações contidas nas resoluções, incluindo a Resolução 687,...". O Conselho de Segurança decidiu que o Iraque quebrou os requisitos do cessar fogo da Resolução 687 e reviveu a Resolução 678 que autorizou o ataque militar contra o Iraque para restabelecer a paz e seguridade na região.


CONCLUSÃO

Conclui-se que a Resolução 1441 encontra-se dentro da hipótese III, b. O Conselho de Segurança afirma que o Iraque tem estado e permanece em violação substancial das resoluções, principalmente da Resolução 687 que impôs os requisitos para o cessar fogo, reativando a Resolução 678 que autoriza o uso de todos os meios necessários contra o Iraque para o estabelecimento da paz e seguridade na região. O uso da força estava legalmente aberto contra o Iraque pelos Estados membros das Nações Unidas.

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Sobre o autor
Daniel Naum Sobral Kotez

advogado, especialista em Processo Civil pela PUC/SP, Master of Laws – LLM – Direito Internacional - London School of Economics and Political Science (LSE)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

KOTEZ, Daniel Naum Sobral. A questão da legalidade da Segunda Guerra do Golfo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 267, 31 mar. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5024. Acesso em: 26 abr. 2024.

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