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A independência do magistrado e o desvio de poder nos atos jurisdicionais

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02/04/2004 às 00:00
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6- Conclusão

Demonstra-se, assim que o juiz tem o dever de decidir de acordo com a norma que entende ser aplicável ao caso concreto e que, caso não o faça, as decisões por ele proferidas serão nulas.

Poder-se-ia indagar qual a razão para tanto celeuma, eis que para escapar do vício do desvio de poder basta ao magistrado não dar notícia de sua íntima convicção, quando sentenciar em desacordo com ela.

A essa indagação responde-se que o presente trabalho serve no mínimo como um lembrete aos magistrados. Um lembrete feito há muito por Sócrates de que "o juiz não toma assento para dispensar o favor da justiça, mas para julgar; ele não jurou favorecer a quem bem lhe pareça, mas julgar segundo as leis" [30]. Uma lembrança sobre o correto exercício da função de julgar, que de acordo com Carlos Maximiliano exige "são e ardente sentir, grandeza d’alma, tato, simpatia" [31]. Ensinava ainda o mesmo mestre que a ação inovadora da jurisprudência sempre se faz sentir nos órgãos julgadores inferiores, pois "vêem estes de mais perto os interesses e os desejos dos que recorrem à justiça: uma jurisdição demasiado elevada não é apta a perceber rápida e nitidamente a corrente das realidades sociais. A nova lei vem de cima; as boas jurisprudências fazem-se embaixo" [32].

Carlos Maximiliano afirmava, ainda que "os julgados constituem bons auxiliares de exegese, quando manuseados criteriosamente, criticados, comparados, examinados à luz dos princípios, com os livros de doutrina, com as exposições sistemáticas do Direito em punho. A jurisprudência, só por si, isolada, não tem valor decisivo, absoluto. Basta lembrar que a formam tanto os arestos brilhantes, como as sentenças de colégios judiciários onde reinam a incompetência e a preguiça" [33].

É por isso que o mesmo autor ensinava "que o julgado, para constituir precedente, vale sobretudo pela motivação respectiva; o argumento científico tem mais peso do que o de autoridade" [34].

Concluía Carlos Maximiliano fazendo um alerta em relação à subserviência dos magistrados:

"Aos magistrados que acham meritório não ter as suas sentenças reformadas (prova apenas de subserviência intelectual) e seguem, por isso, de modo absoluto e exclusivo, a orientação ministrada pelos acórdãos dos tribunais superiores, Pessina recorda o verso de Horácio: os demasiado cautos e temerosos da procela não se alteiam ao prestígio, nem à glória: arrastam-se pela terra, como serpentes – serpit humi tutus nimium timidusque procelloe" [34].

É essa a conclusão a que se pretendia chegar. A de que os magistrados devem assumir a responsabilidade pela elaboração de suas sentenças. Se querem ser subservientes, que o sejam, e acatem calados as decisões dos tribunais superiores. Se compactuam com as decisões dos tribunais superiores, que reconheçam expressamente essa realidade.

Essa, contudo, não é atitude que esperamos, pois queremos uma magistratura independente e disposta a defender sua independência em nome do ideal maior de justiça. Essa magistratura não dá gritos tímidos de inconformismo no momento em que acata decisões estapafúrdias. Age diferente. Utiliza o dever-poder que o ordenamento jurídico lhe confere e combate esses equívocos com as suas decisões. Essa luta muitas vezes é inglória, mas pior do que perder a batalha é perecer sem nem mesmo ter lutado.


BIBLIOGRAFIA

CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 8. ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris.

CINTRA, Ada Pellegrini et. al. Teoria Geral do Processo. 10. ed. São Paulo: Malheiros.

DALLARI, Dalmo de Abreu. O poder dos juízes. São Paulo: Saraiva, 1996.

DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 4.ed. São Paulo: Malheiros.

JÚNIOR, Humberto Theodoro. Curso de Direito Processual Civil. 39.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003.

MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 18. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999.

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 15. ed. São Paulo: Malheiros, vol. I, 2003.

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Discricionariedade e controle jurisdicional. São Paulo: Malheiros, 1992.

PEREZ, Jesus Gonzáles. El principio general de la buena fe en el derecho administrativo. 2. ed. Madrid: Civitas, 1989.

PORTANOVA, Rui. Princípios do processo civil. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997.

SILVA, Ovídio A. Baptista da. Curso de Processo Civil (Processo de conhecimento). 2 .ed. Porto Alegre, Fabris, vol. I, 1991.

SÓCRATES. Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, p. 44. Edição de 1996.

SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de direito público. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 1997.

TÁCITO, Caio. Temas de direito público (estudos e pareceres). Rio de Janeiro: Renovar, vol. I, 1997.


Notas

1 José dos Santos Carvalho Filho. Manual de direito administrativo, p. 447.

2Esta expressão – agentes públicos – é a mais ampla que se pode conceber para designar genérica e indistintamente os sujeitos que servem ao Poder Público como instrumentos expressivos de sua vontade ou ação, ainda quando o façam apenas ocasional ou episodicamente.

Quem quer que desempenhe funções estatais, enquanto as exercita, é um agente público. Por isto, a noção abarca tanto o Chefe do Poder Executivo (em quaisquer das esferas) como os senadores, deputados e vereadores, os ocupantes de cargos ou empregos públicos da Administração direta dos três Poderes, os servidores das autarquias, das fundações governamentais, das empresas públicas e sociedades de economia mistas nas distintas órbitas de governo, os concessionários e permissionários de serviço público, os delegados de função ou ofício público, os requisitados, os contratados sob locação civil de serviços e os gestores de negócios públicos. (Celso Antônio Bandeira de Mello, Curso de direito administrativo, p.226-227)

3Celso Antônio Bandeira de Mello. Curso de direito administrativo, p. 228.

4Celso Antônio Bandeira de Mello. Discricionariedade e controle jurisdicional, p.13.

5Curso de Direito Administrativo. Celso Antônio Bandeira de Mello, p. 89.

6Discricionariedade e controle jurisdicional. Celso Antônio Bandeira de Mello, p.14.

7Fundamentos de direito público.Carlos Ari Sundfeld, p.102.

8Celso Antônio Bandeira de Mello. Curso de direito administrativo, p. 134-135.

9O âmbito do presente trabalho não comporta um maior aprofundamento em relação ao tema das diferentes funções estatais.

10Sobre esse tema já escrevemos um trabalho intitulado "O Estado de Direito Brasileiro e a Quebra no Princípio da Tripartição dos Poderes".

11"A atividade pública - cujo exercício é regulado pelo direito público - constitui função. Função, para o Direito, é o poder de agir cujo exercício traduz verdadeiro dever jurídico e que só se legitima quando dirigido ao atingimento da específica finalidade que gerou sua atribuição ao agente. O legislador, o administrador, o juiz, desempenham função: os poderes que receberam da ordem jurídica são de exercício obrigatório e devem necessariamente alcançar o bem jurídico que a norma tem em mira".(Carlos Ari Sundfeld. Fundamentos de direito público, p. 151).

12Humberto Theodoro Júnior. Curso de Direito Processual Civil, p. 35.

13Humberto Theodoro Júnior. Curso de Direito Processual Civil, p. 153.

14"Uma das principais características da função jurisdicional é a independência com que o juiz a exerce, o que de um lado constitui fator muito favorável à dinâmica da Constituição e da lei, cujo conteúdo se altera na medida das evoluções havidas na consciência axiológica nacional (o juiz independente não se aferra às linhas interpretativas da jurisprudência formada sob o império de juízos valorativos superados) - e de outra parte é condição propícia a possíveis resistências às "mudanças" operadas, porque o juiz independente, sendo conservador, terá sempre a legítima possibilidade de liberar as suas próprias tendências e com isso repudiar as interpretações progressistas".(Cândido Rangel Dinamarco. A Instrumentalidade do Processo, p. 43)

15Dalmo de Abreu Dallari. O poder dos juízes, p. 47.

16 Dalmo de Abreu Dallari. O poder dos juízes, p. 51.

17 Dalmo de Abreu Dallari. O poder dos juízes, p. 52-53.

18Dalmo de Abreu Dallari. O poder dos juízes, p. 45.

19Rui Portanova. Princípios do Processo Civil, p. 246.

20Antônio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido R. Dinamarco. Teoria Geral do Processo. p. 67-68.

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21 As normas jurídicas são expressas por intermédio de palavras. Em virtude disso, algumas vezes acabam assumindo a imprecisão que é própria da linguagem. A imprecisão, contudo, é reduzida pelo sistema no qual a norma se insere, pelos princípios jurídicos e pela própria significação dos conceitos utilizados. A norma deve ter um campo significativo mínimo, sem o qual jamais poderia ser compreendida ou aplicada e o interprete não pode afastar-se desse campo sob pena de desvirtuar a norma a pretexto de aplicá-la.

22 Ovídio Baptista da Silva, Curso de Processo Civil, Vol. I, p. 337

23 Ovídio Baptista da Silva, Curso de Processo Civil, Vol. I, p. 337 e 338

24"Também assim melhor se compreenderá a distinção corrente da doutrina italiana entre interesses públicos ou interesses primários - que são os interesses da coletividade como um todo - e interesses secundários, que o Estado (pelo só fato de ser sujeito de direitos) poderia ter como qualquer outra pessoa, isto é, independentemente de sua qualidade de servidor de interesses de terceiros: os da coletividade. Poderia, portanto, ter o interesse secundário de resistir ao pagamento de indenizações, ainda que procedentes, ou de denegar pretensões bem-fundadas que os administrados lhe fizessem, ou de cobrar tributos ou tarifas por valores exagerados. Estaria, por tal modo, defendendo interesses apenas "seus", enquanto pessoa, enquanto entidade animada do propósito de despender o mínimo de recursos e abarrotar-se deles ao máximo. Não estaria, entretanto, atendendo ao interesse público, ao interesse primário, isto é, àquele que a lei aponta como sendo o interesse da coletividade: o da observância da ordem jurídica estabelecida a título de bem curar o interesse de todos.

Por isso os interesses secundários não são atendíveis senão quando coincidirem com interesses primários, únicos que podem ser perseguidos por quem axiomaticamente os encarna e representa.

(Celso Antônio Bandeira de Mello. Curso de Direito Administrativo, p. 63)

25"La desviación de poder, correctamente delimitada en el artículo 83.3, de la Ley de la Jurisdicción contencioso-administrativa, consiste en el ejercicio de potestades administrativas para fines distintos de los fijados por el Ordenamiento jurídico. Es un supuesto patológico en el que la anormalidad se concreta, según há destacado la jurisprudencia, en, <la discrepancia entre la finalidad que el Ordenamiento jurídico señala a la actividad de un órgano de la Administración, para cuya finalidad éste está dotado de la adecuada potestad, y el uso que tal órgano hace en caso concreto de tal potestad..." (Jesus Gonzalez Perez. El principio general de la buena fe en el derecho administrativo, p. 46-47)

26Celso Antônio Bandeira de Mello. Discricionariedade e controle jurisdicional, p.65.

27Celso Antônio Bandeira de Mello. Curso de direito administrativo, p. 372.

28Caio Tácito. Temas de Direito Público: Estudos e Pareceres, p. 341.

29 Humberto Theodoro Júnior. Curso de Direito Processual Civil. p. 259.

30Os Pensadores. Sócrates, p. 44.

31Carlos Maximiliano. Hermenêutica e aplicação do direito, p.171.

32Carlos Maximiliano. Hermenêutica e aplicação do direito, p. 180.

33Carlos Maximiliano. Hermenêutica e aplicação do direito, p.183.

34Carlos Maximiliano. Hermenêutica e aplicação do direito, p. 186.

34Carlos Maximiliano. Hermenêutica e aplicação do direito, p. 182-183.

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Sobre o autor
Marcelo Harger

Advogado em Joinville (SC). Graduado em Direito pela Universidade Federal do Paraná. Pós-graduado em Processo Civil pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Mestre e Doutor em Direito do Estado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Ex-conselheiro do Conselho Estadual de Contribuintes de Santa Catarina. Coordenador do Curso de Pós-Graduação em Direito Administrativo e Gestão Pública do Complexo de Ensino Superior de Santa Catarina - CESUSC. Professor em diversos cursos de graduação, pós-graduação e extensão universitária. Membro do Instituto de Direito Administrativo de Santa Catarina – IDASC. Autor de diversos artigos científicos publicados nas principais revistas jurídicas do país. Autor dos livros "Os consórcios públicos na lei n° 11.107/05" e "Princípios Constitucionais do Processo Administrativo". Coordenador do livro "Curso de Direito Administrativo". Co-autor dos livros "ICMS/SC - regulamento anotado", "Direito Tributário Constitucional" e "Princípios Constitucionais e Direitos Fundamentais".

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

HARGER, Marcelo. A independência do magistrado e o desvio de poder nos atos jurisdicionais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 269, 2 abr. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5031. Acesso em: 26 abr. 2024.

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