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Ações inibitória e de ressarcimento na forma específica no anteproyecto de "Código Modelo de Procesos Colectivos para Iberoamérica" (art. 7°)

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05/04/2004 às 00:00
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6. O ressarcimento na forma específica

Em tema de responsabilidade civil, sempre esteve presente, no direito brasileiro, o princípio da dupla forma de ressarcimento: ou o ressarcimento na forma específica ou a indenização em dinheiro [17]. Mais do que isto, o direito brasileiro sempre deu prioridade ao ressarcimento na forma específica em relação ao ressarcimento em pecúnia. Neste sentido, basta atentar para a norma que estava no art. 1.537 do CC de 1.916 – agora reproduzida no art. 947 do Código Civil de 2.002 -, assim escrita: "Se o devedor não puder cumprir a prestação na espécie ajustada, substituir-se-á pelo seu valor, em moeda corrente". Esta norma estabelece a centralidade do ressarcimento na forma específica, deixando em segundo lugar a indenização em dinheiro, que por isto é meramente subsidiária. Isto quer dizer que, na ação que objetiva reparar ato ilícito, "o pedido pode dirigir-se a restauração em natura, e somente quando haja dificuldade extrema ou impossibilidade de se restaurar em natura é que, em lugar disso, se há de exigir a indenização em dinheiro". [18]

Portanto, é errado imaginar que o ordenamento jurídico brasileiro não permite o ressarcimento na forma específica.

O Código Civil argentino é expresso no sentido da prioridade do ressarcimento na forma específica. Diz o seu art. 1.083: "El resarcimiento de daños consistirá en la reposición de las cosas a su estado anterior, excepto si fuera imposible, en cuyo caso la indemnización se fijará en dinero. También podrá el damnificado optar por la indemnización en dinero." Como escreve Jorge Bustamente Alsina, "esta reparación natural es la más apropiada, sobre todo si se trata del daño ambiental, pues el ambiente sano es un derecho humano que determina la calidad de vida del hombre garantizada por la Constitución Nacional. Por otra parte, el derecho al ambiente constituye uno de esos intereses supraindividuales por su incidencia colectiva. Su significación ecológica solamente recupera su valor mediante su recomposión, y no satisface colectivamente a todos los damnificados que padecen el impacto ambiental, que alguno o algunos de ellos reciban una indemnización pecuniaria como compensación por el daño particular de cada uno de ellos". [19]

O problema, portanto, nunca esteve no plano do direito material, mas sim no plano dos valores e do direito processual. Partindo da premissa de que os direitos sempre possuíam natureza patrimonial, e que assim a sua eventual lesão poderia ser medida em pecúnia, a doutrina não só indevidamente associou as categorias da ilicitude e da responsabilidade civil, como ainda supôs que a tutela ressarcitória poderia ser adequadamente prestada por meio de dinheiro. Isto significa que, no plano dos valores, imaginou-se que a obrigação de reparar o dano poderia ser convertida em obrigação de pagar dinheiro.

Porém, foi o Código de Processo Civil que transformou o direito ao ressarcimento na forma específica em direito ao recebimento de dinheiro. Isto pela simples razão de ter conferido ao jurisdicionado, sem raciocinar adequadamente sobre o direito ao ressarcimento na forma específica, um processo civil completamente incapaz de atendê-lo.

O direito ao ressarcimento na forma específica implica em uma obrigação de reparar o dano, ou seja, em uma obrigação de fazer fungível. Entretanto, o Código de Processo Civil brasileiro de 1973 previu, para o direito ao ressarcimento na forma específica, o processo de conhecimento (condenatório) seguido do processo de execução das obrigações de fazer. Este último somente poderia se desenvolver por meio da execução por sub-rogação, uma vez que, se a condenação não fosse adimplida, o autor teria que solicitar que a obrigação de reparar, devida pelo réu, fosse cumprida por um terceiro.

A opção pela nomeação de um terceiro para fazer aquilo que deveria ter sido feito pelo réu não só acarreta maior demora, como também custos para o autor, que ficava obrigado, segundo a disposição do art. 634, §7º, do Código de Processo Civil brasileiro, a adiantar as despesas necessárias ao fazer.

Ora, se o autor, mesmo depois de dois ou três anos de processo de conhecimento, deve pagar para que um terceiro faça o que deveria ter sido feito pelo réu, lhe é muito melhor arcar imediatamente com as custas para a reparação do dano (sem a necessidade de processo judicial) e depois postular a condenação do infrator a pagar indenização equivalente ao seu valor.

Portanto, foi o Código de Processo Civil que transformou o direito à reparação do dano em direito à obtenção de soma em dinheiro. Isto pelo simples motivo de que este modelo estruturado para o ressarcimento é completamente inidôneo para a prestação da tutela ressarcitória na forma específica, e assim para atender aos direitos que melhor se adaptam a esta forma de ressarcimento.

7. Segue: os meios de execução idôneos para a prestação da tutela ressarcitória na forma específica

Entretanto, o art. 7º, §1º, do "Anteproyecto de Código Modelo de Procesos Colectivos para Iberoamérica", foi sábio ao frisar que a conversão da tutela específica em indenização pecuniária "solamente será admisible si por ella optara el autor o si fuese imposible la tutela específica o la obtención del resultado práctico correspondiente".

Ora, se o art. 7º, em seu §1º, deixa clara a preferência da tutela específica sobre a tutela pelo equivalente, e, em seu § 3º, admite o uso da multa (coerção indireta) na sentença ou na decisão concessiva de tutela antecipatória, está autorizando a tutela ressarcitória na forma específica mediante a imposição de multa.

Lembre-se que a obrigação de reparar é, antes de tudo, uma obrigação de fazer e não uma obrigação de pagar soma em dinheiro. O argumento que poderia ser invocado contrariamente ao uso da multa para compelir à reparação, é o de que o demandado pode não ter capacidade técnica para proceder à reparação do dano. Neste caso, porém, necessitando-se da intervenção de terceiro - que deverá ser designado (após indicação do autor e manifestação do réu) pelo juiz -, este deverá obrigá-lo sob pena de multa a custear as despesas da reparação.

Não procede, aí, o argumento de que não é possível usar a multa para compelir ao pagamento de soma em dinheiro. Esta idéia não cabe quando se está diante da necessidade da realização de um direito que foi objeto de dano. Aliás, se a obrigação de pagar, no caso, serve somente para viabilizar o cumprimento da obrigação de reparar – sem a qual o direito não poderia ser efetivamente tutelado – a primeira obrigação é meramente acessória à segunda. Ora, esta obrigação é tão acessória quanto à obrigação de informar o local em que está a coisa móvel – no caso em que se deseja a sua entrega.

Se ninguém nega que é possível obter forçadamente, através da expropriação de bens, o custo do ressarcimento, porque razão seria impossível utilizar a multa para pressionar o infrator a custear a reparação? Ora, somente assim o lesado não será penalizado pelo infrator e pelo processo, e apenas desta forma o ordenamento jurídico será efetivamente atuado.

Lembre-se que a inexistência de uma efetiva tutela ressarcitória implica na aceitação da transformação dos bens em pecúnia, e assim no pagamento do valor em dinheiro que seria equivalente ao do dano após vários anos da infração (por meio do binômio sentença condenatória-execução forçada). Para ser mais preciso: a negação da efetividade do ressarcimento na forma específica, em face das novas relações de direito substancial, equivale à própria negação do direito material, ou na transformação das normas relativas aos direitos ambiental e do consumidor (por exemplo) em mera proclamação retórica.

Como é óbvio, um processo que só permite a cobrança de dinheiro não constitui resposta adequada aos direitos. Um processo deste tipo é, na realidade, um incentivo a prática de danos ou, pior, uma porta aberta à desconsideração do direito material, já que o infrator, neste caso, somente terá que pagar o valor equivalente ao do dano depois de um bom tempo, o que certamente poderá ser, em termos meramente econômicos e de mercado, uma excelente opção.


8. A cumulação do ressarcimento na forma específica com o ressarcimento pelo equivalente pecuniário

Deixe-se claro que, com a afirmação da preferência da tutela ressarcitória na forma específica sobre a indenização em dinheiro, não se está dizendo que para a efetiva tutela dos direitos não é possível a cumulação do ressarcimento na forma específica com o ressarcimento em dinheiro.

Há quem suponha que o dano não-patrimonial não pode ser materializado, e que assim somente pode ser compensado em dinheiro; pensa-se, neste sentido, na chamada "dor moral". Trata-se de engano, uma vez que a natureza do dano não pode ser confundida com a forma de sua reparação. Há danos não-patrimoniais que, em razão da sua natureza, podem ser reparados na forma específica (como visto anteriormente), enquanto que outros somente podem ser compensados em dinheiro. [20] O dano não-patrimonial pode abrir ensejo ao ressarcimento na forma específica cumulado com o ressarcimento em dinheiro ou, quando a primeira forma de reparação for impossível, apenas ao pagamento de dinheiro.

É importante frisar que ressarcimento na forma específica não significa mero restabelecimento da situação anterior a do ilícito, mas sim o estabelecimento da situação que deveria existir caso o dano não houvesse ocorrido [21]. Há casos em que é impossível o estabelecimento de uma situação equivalente àquela que existiria caso o dano não tivesse ocorrido, mas é viável o estabelecimento da situação anterior à do dano, ou de uma situação que satisfaz, em parte, à necessidade de sua reparação.

Assim, por exemplo, se somente é possível, no caso da poluição de um rio, o estabelecimento de uma situação parcialmente equivalente àquela que existia antes da poluição, apenas parcela do dano será ressarcida através da tutela ressarcitória na forma específica. A outra parcela do dano, que não poderá ficar sem sanção, terá que ser ressarcida através do pagamento de dinheiro.

No caso de corte de árvores, a determinação do plantio de pequenas árvores, evidentemente não equivalentes àquelas que existiriam caso o corte não houvesse ocorrido, configura apenas ressarcimento parcial do dano, sendo necessário, também neste caso, para que o dano seja adequadamente sancionado, a cumulação da tutela ressarcitória pelo equivalente. [22]

Nesta linha, é perfeita a regra do art. 6º do "Anteproyecto de Código Modelo de Procesos Colectivos para Iberoamérica", que assim estabelece: "En la acción condenatoria a la reparación de los daños provocados al bien indivisiblemente considerado, la indemnización revertirá en un fondo administrado por un Consejo gubernamental, del que participarán necesariamente el Ministerio Público y representantes de la comunidad, siendo sus recursos destinados a la reconstitución de los bienes lesionados". Ou seja, no caso "de los daños provocados al bien indivisiblemente considerado", sendo impossível ou inadequado o ressarcimento na forma específica ou necessária a sua cumulação com o ressarcimento em dinheiro, estabelece-se que "la indemnización revertirá en un fondo administrado por un Consejo gubernamental, del que participarán necesariamente el Ministerio Público y representantes de la comunidad, siendo sus recursos destinados a la reconstitución de los bienes lesionados".

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Com esta regra, não só fica garantido o ressarcimento do bem e a sanção do dano no caso em que a reparação em natura não se mostrar adequada, como ainda se confere o valor em dinheiro, em tal hipótese, a uma entidade idônea – em que participarão necessariamente o Ministério Público e representantes da comunidade -, advertindo-se, ainda, que as somas por ela geridos devem ser destinados à reparação dos bens lesados.


9. Da ação coletiva para o ressarcimento na forma específica de direitos individuais

Se é evidente a possibilidade da tutela ressarcitória na forma específica dos direitos indivisíveis, alguma dúvida poderia haver acerca da viabilidade de uma ação coletiva voltada à tutela ressarcitória na forma específica de direitos individuais.

O "Anteproyecto de Código Modelo de Procesos Colectivos para Iberoamérica", após afirmar, em seu art. 18, que "los legitimados podrán proponer, en nombre propio y en el interés de las víctimas o sus sucesores, acción civil colectiva de responsabilidad por los daños individualmente sufridos", estabelece, em seu art. 20, que "en caso de procedencia del pedido, la condena será genérica, fijando la responsabilidad del demandado por los daños causados y el deber de indemnizar". De acordo com o art. 22, parágrafo único, deste "Anteproyecto","en la liquidación de la sentencia, que podrá ser promovida ante el juez del domicilio del liquidante, corresponderá a éste probar, tan sólo, el daño personal, el nexo de causalidad y el monto de la indemnización".

Como está claro, quando o "Anteproyecto" admite uma "acción civil colectiva de responsabilidad por los daños individualmente sufridos", afirma que a sua sentença de procedência deverá ser liquidada, fixando-se o "monto de la indemnización". Porém, no caso de ação coletiva para o ressarcimento na forma específica de direitos individuais, não há como pensar em "valor" do dano. Isto não é possível - no caso de ressarcimento na forma específica - porque o objetivo não é o de dar aos lesados os valores equivalentes aos seus danos, mas sim o de permitir a reparação na forma específica dos danos que foram impostos a cada um dos prejudicados. Isto significa que a prova do valor da indenização somente precisará ser feita quando se buscar indenização em pecúnia.

Conforme evidencia o referido art. 20, a sentença da ação coletiva de ressarcimento de danos individuais deverá apenas fixar "la responsabilidad del demandado por los daños causados y el deber de indemnizar". Portanto, até o momento desta sentença não se questiona acerca da "forma de ressarcimento", mas apenas sobre o dever de reparar o dano. Na chamada "habilitación", prevista no art. 22 do "Anteproyecto", é que a vítima ou seus sucessores poderão optar pelo ressarcimento na forma específica ou pelo ressarcimento pelo equivalente em dinheiro. No primeiro caso, será necessário provar somente o dano e o nexo de causalidade; na segunda hipótese, além do dano e do nexo de causalidade, deverá ser provado o "quantum" indenizatório.

No caso de ressarcimento na forma específica, a sentença que define a "habilitación" (prevista no art. 22) deve ordenar ao réu, sob pena de multa (art. 7º, par. 3º), o fazer necessário para que surjam situações equivalentes àquelas que existiriam caso os danos não tivessem sido cometidos, ou mesmo a entrega de coisa da mesma espécie daquela que foi destruída.

A exigência da entrega de coisa da mesma espécie da destruída, como é sabido, também implica em ressarcimento na forma específica. Neste caso, poderá ser invocado, pelo consumidor, o art. 8º do "Anteproyecto", que assim estabelece: "en la acción que tenga por objeto la obligación de entregar cosa, determinada o indeterminada, se aplican, en lo pertinente, las disposiciones del artículo anterior" (art. 7º).

Entretanto, justamente porque o ressarcimento na forma específica pode não abarcar a totalidade do dano, é que o legitimado coletivo deve também postular a fixação da responsabilidade do réu pelo dano conseqüente. Nesta hipótese, a vítima ou seu sucessor poderá requerer, ao lado da reparação na forma específica, a condenação ao pagamento do valor equivalente ao do dano conseqüente. Como é óbvio, este valor também deverá ser provado na "habilitación".

Além disto, o "Anteproyecto" prevê, em seu art. 25 [23], que, "transcurrido el plazo de un año sin habilitación de interesados en número compatible con la gravedad del daño, podrán los legitimados del artículo 3o (24) promover la liquidación y ejecución colectiva de la indemnización debida por los daños causados". De acordo com os parágrafos 1º e 2º deste artigo "el valor del daño causado será fijado por peritaje arbitral" e "el producto de la indemnización revertirá para el fondo [25] previsto en el artículo 6o" (26).

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Sobre o autor
Luiz Guilherme Marinoni

professor titular de Direito Processual Civil dos cursos de Graduação, Mestrado e Doutorado da UFPR, mestre e doutor em Direito pela PUC/SP, pós-doutor pela Universidade de Milão, advogado em Curitiba, ex-procurador da República

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARINONI, Luiz Guilherme. Ações inibitória e de ressarcimento na forma específica no anteproyecto de "Código Modelo de Procesos Colectivos para Iberoamérica" (art. 7°). Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 272, 5 abr. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5042. Acesso em: 28 mar. 2024.

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