3. A unificação entre as categorias da ilicitude e da responsabilidade civil e sua projeção sobre o processo civil
3.1. Explicação inicial
Existe um dogma – de origem romana – no sentido de que a tutela ressarcitória é a única forma de tutela contra o ilícito civil. 57 Isso quer dizer que a unificação entre as categorias da ilicitude e da responsabilidade civil, já realizada no direito romano, percorreu a história do direito, inclusive do direito processual civil, sem suscitar maior inquietude por parte da doutrina. Pior do que isso: chegou-se a identificar o ilícito com o ressarcimento em dinheiro.
A razão desse item é tentar demonstrar os motivos que conduziram à unificação entre o ilícito civil, o fato danoso e o ressarcimento em dinheiro, e, ainda, como essa unificação repercutiu sobre o processo civil.
Embora a história de tal unificação seja bastante antiga, é oportuno considerar a questão – especialmente no que aqui interessa – a partir do direito liberal clássico. Como visto, nessa época, diante da idéia de equivalência das mercadorias, entendia-se que o bem podia ser visto como uma "coisa" dotada de valor de troca 58. Por isso mesmo, o valor da lesão era passível de aferição em pecúnia e, dessa forma, supunha-se que os direitos podiam ser adequadamente tutelados através do ressarcimento em dinheiro.
Diante disso, a técnica cautelar poderia ser pensada, no máximo, como garantidora da frutuosidade da tutela ressarcitória e, assim - ainda que o seu objetivo fosse o de espancar o periculum in mora - era obrigada a aceitar a violação do direito que deu origem ao pedido de ressarcimento.
Isso significa que a técnica processual que atuava em face do periculum in mora não se destinava à prestação de tutela de inibição do ilícito 59. O liberalismo clássico não tinha necessidade – diante dos direitos e bens que considerava – nem a possibilidade – em razão da maneira como enxergava as relações entre o Estado e os particulares – de conferir função realmente preventiva ao processo de conhecimento. Sendo assim, a ilicitude, diante do processo civil, podia ser reduzida à responsabilidade civil.
Porém, associar ato contrário ao direito, dano e dinheiro não significa somente negar a tutela inibitória, mas sobretudo não perceber que o dever de reparar não pode se confundir com as formas de reparação, e que há atos contrários ao direito que, ainda que não produzindo danos, não podem deixar de ser sancionados pelo processo civil.
O dever de reparar não pode ser identificado com uma obrigação de pagar soma em dinheiro. Não apenas porque a obrigação de reparar é, em regra, uma obrigação de fazer, mas sobretudo porque, se tal maneira de ver o dano era natural ao direito liberal, ela é completamente imprópria às novas situações de direito substancial. Pense-se, por exemplo, no direito ambiental, em que o ressarcimento em dinheiro jamais terá a mesma efetividade do que o ressarcimento na forma específica.
É preciso deixar claro, assim, que se a reparação constitui tutela contra o dano, existem duas formas para a sua prestação, uma vez que a tutela ressarcitória pode ser concedida em dinheiro ou na forma específica.
Contudo, se o dano abre ensejo à reparação, cabe investigar a tutela que deve incidir em relação ao ato contrário ao direito que não produziu dano. Perceba-se que a questão não pergunta sobre a tutela que seria efetiva para evitar o ato contrário ao direito ou para reparar o dano, mas sim sobre a tutela que seria adequada para remover o ato contrário ao direito e, por conseqüência lógica, impedir o dano.
O desenvolvimento do raciocínio, no caso, encontraria um obstáculo, que seria consistente em saber se realmente existe, no plano do direito substancial, um ilícito civil que não tenha repercussão danosa. Mas, a superação de tal obstáculo não é difícil.
Atualmente, diante da transformação do Estado, a tipificação de condutas contrárias ao direito também constitui decorrência do dever de proteção do Estado em relação a determinados bens e situações imprescindíveis para a justa organização social. É o caso, por exemplo, das normas de proteção à saúde, de proteção ao consumidor ou de proteção ao meio ambiente. Tais normas, em tese, poderiam ser sancionadas pelo processo penal. Contudo, não há como imaginar que o processo civil, diante da sociedade contemporânea, deva lavar as mãos em relação aos ilícitos - como se não tivesse o dever de contribuir para a efetividade das normas -, resignando-se à função de dar reparação aos danos.
Veja-se apenas um exemplo. No caso de norma que proíbe a venda de produto nocivo à saúde do consumidor, a exposição à venda de produto com essa qualidade constitui ato contrário ao direito, embora não configure dano. Diante da exposição ilícita, o legitimado à tutela dos direitos do consumidor (art. 82, CDC) certamente poderá propor ação coletiva de busca e apreensão dos produtos. Nesse caso, embora o ato contrário ao direito já tenha ocorrido, ninguém poderá pensar em tutela ressarcitória. Entretanto, a busca e apreensão, aí, também não será anterior ao ato contrário ao direito. A busca e apreensão, assim, será uma tutela de remoção do ilícito, tendo a capacidade de impedir, em razão da restauração do conteúdo da norma que havia sido inobservada, a produção do dano.
Quando o ilícito civil é identificado com o dano, conclui-se, de forma apressada, que não há ato contrário ao direito que, não provocando dano, deva ser sancionado civilmente. O dano é uma conseqüência meramente eventual do ato contrário ao direito, pois esse último pode, ou não, gerá-lo. O fato de uma transgressão não ter produzido dano, não permite que o processo civil possa deixá-la de lado, como se não mais importasse ou tivesse significação. Quando se toma em consideração a função de proteção das normas jurídicas não-penais, não é difícil perceber que, em determinados casos, um ilícito – ainda que configurando ação que se exaure em um único instante – pode possuir eficácia continuada, como no caso de exposição à venda de produtos nocivos à saúde do consumidor.
Aliás, mesmo no plano dos direitos individuais, não há como ignorar a necessidade de isolar uma tutela jurisdicional que se preocupe somente com o ato contrário ao direito. Imagine-se a tutela de busca e apreensão de produtos que evidenciam contrafação de marca comercial ou a tutela que determina a retirada de cartazes publicitários que configuram concorrência desleal 60. Nesses dois casos, a tutela ressarcitória, ainda que viável em vista da possibilidade de os ilícitos terem gerado danos, não elimina a necessidade da busca e apreensão e da retirada dos cartazes, as quais constituem tutelas de remoção do ilícito.
O exemplo da concorrência desleal é importante para a demonstração do impacto da evolução da sociedade e do direito material sobre a dissociação entre ato contrário ao direito e dano. Diante da exposição de propaganda que configure concorrência desleal, é muito mais importante ao empresário obter a retirada de circulação da propaganda do que ser indenizado pelo dano ocasionado. Isso porque, a preservação de uma marca, de um invento ou mesmo da significação do trabalho de uma empresa, é fundamental para sua sobrevivência no mercado. Pouco adiantaria ao empresário obter indenização após sua empresa ter fechado as portas. Além disso, o valor agregado a uma marca, a um invento ou a vida de uma empresa, dificilmente poderá ser precisado e quantificado em dinheiro. Melhor: tal valor não se concilia com o ressarcimento e, assim, esse somente deve ser aceito quando impossível evitar o dano – ou seja, como última alternativa. Nesse caso, o ideal, diante do ato contrário ao direito, é a ação de remoção do ilícito. Essa ação conduzirá – obviamente que no caso de procedência – à remoção do ilícito, e não ao ressarcimento. Note-se que remover o ilícito é secar a fonte dos danos. 61 Essa ação, portanto, terá o objetivo de remover o ilícito e, por conseqüência, impedir que danos ocorram. Entretanto, se danos já ocorreram, nada impede que se peça remoção do ilícito mais ressarcimento dos danos ocasionados.
3.2. A função do processo de conhecimento clássico. Sua insensibilidade para a necessidade de prevenção do direito
O processo, como instrumento, serve a um fim. De modo que a sua função e estrutura dependem de seu objetivo. Isso quer dizer que a função e a estrutura do processo de conhecimento clássico são conseqüências da finalidade que lhe foi atribuída por aqueles que o moldaram.
Assim, a pergunta respeitante à função do processo civil clássico exige, como antecedente lógico, a análise dos objetivos do Estado liberal e, assim, o simples retorno aos valores que o inspiraram.
Cabe voltar a frisar, dessa forma, que o direito liberal clássico, além de eminentemente patrimonialista, era marcado pela preocupação fundamental de delimitar rigidamente os poderes de interferência do Estado na esfera jurídica dos particulares.
Pois bem, quando se parte da suposição que o bem jurídico a ser protegido pelo processo pode ser reduzido a uma "coisa" dotada de valor de troca, e que o juiz deve ter os seus poderes limitados - para não interferir na esfera jurídica privada -, o processo civil não só não precisa, como também não pode, exercer função preventiva.
A condenação foi pensada para o caso de violação, ao passo que a sentença que é suficiente por si só – como a declaratória -, e assim não precisa interferir na realidade dos fatos, é completamente incapaz de evitar o ilícito ou o dano. Para que a função preventiva fosse possível – se desejável, deixe-se claro – seria necessário dar ao juiz o poder de ordenar mediante coerção indireta – o que, como já foi demonstrado, foi expressamente vedado pelo Código Napoleão.
Mas, se as sentenças do processo de conhecimento clássico eram evidentemente incapazes de conferir prevenção, alguém poderia perguntar sobre a tutela cautelar, diante da sua conhecida relação com o periculum in mora. Tal pergunta exige breve exercício de lógica. A doutrina sempre viu na cautelar uma garantia de efetividade do processo de conhecimento. Daí ter afirmado sua natureza instrumental. Porém, se a tutela do processo de conhecimento não é preventiva, a cautelar não pode assumir tal função. Não apenas porque aí a cautelar estaria exercendo exatamente a função não desejada e permitida pelos valores liberais, mas também porque uma providência instrumental não pode ser usada para alcançar algo (prevenir) que a própria tutela final está impossibilitada de conceder.
A essa altura, certamente algumas dúvidas aparecerão, dada a associação da tutela cautelar com o perigo e a idéia de que tudo o que tutela contra o perigo possui função preventiva 62. Assim, para que o discurso se torne mais claro, é imprescindível desfazer tal equívoco. A tutela cautelar, ainda que voltada contra o perigo, foi moldada para impedir que a demora do processo pudesse retirar a utilidade da tutela jurisdicional final. A tutela cautelar, quando concebida, não poderia ter o fim de evitar a violação do direito, pois nem mesmo o processo de conhecimento clássico foi pensado e estruturado para tanto. Ora, se o processo de conhecimento não tem como fim evitar a violação do direito, não há como admitir, por lógica, que uma tutela que a ele deve servir possa ultrapassar a sua função, outorgando tutela inibitória. Note-se, em primeiro lugar, que a tutela cautelar, ao servir a uma tutela ressarcitória, era obrigada a aceitar a ocorrência da violação do direito necessária para legitimar a própria ação ressarcitória. Após algum tempo, a tutela cautelar passou a ser usada para evitar que, durante o tempo do processo, a violação que abriu ensejo ao interesse de agir na tutela repressiva trouxesse outras conseqüências danosas ao autor. Mas, o que importa, é que a tutela cautelar sempre foi pensada em relação a uma ação de conhecimento que admitia a violação do direito.
Como diz Adolfo di Majo, a tutela cautelar inominada do art. 700. do CPC italiano (cuja redação é semelhante a do art. 798. do CPC brasileiro) pressupõe que uma violação já tenha ocorrido, e não que seja simplesmente objeto de ameaça ou que em relação a ela existam meros indícios. Segundo o jurista, a tutela cautelar não foi instituída para evitar a violação do direito, mas sim porque a violação pode trazer conseqüências que podem constituir prejuízos não reparáveis através da tutela final. 63
Como está claro, diante dos valores que permearam o processo civil clássico, a função da tutela jurisdicional restou limitada à repressão – como era natural.
3.3. A dita função preventiva da ação declaratória, o liberalismo clássico e a escola sistemática
Das sentenças da classificação trinária, a sentença declaratória, por ser admitida antes da violação de um direito, e assim para a sua simples declaração, foi admitida como tendo natureza preventiva.
Porém, a afirmação de que a sentença declaratória possui função preventiva somente pode ser compreendida quando se constata que essa era a única sentença da classificação trinária que podia chegar perto da prevenção – embora não pudesse a exercer com efetividade, diante de suas limitações.
Barbosa Moreira, ao analisar de forma crítica a dita função preventiva da sentença declaratória, adverte que ela somente poderá exercer com efetividade essa função 64 "desde que a parte vencida saia também convencida e se resolva a cumprir a obrigação em tempo oportuno". 65 Tal sentença, porém, não tem por força para atuar sobre a vontade do réu para impedi-lo de praticar o ilícito. Conforme acrescentou Barbosa Moreira, como meio de intimidação, e pois de coerção, "o remédio é fraco: basta pensar que, na eventualidade do inadimplemento, o titular do direito lesado terá de voltar a juízo para pleitear a condenação do infrator, ao qual se concede assim uma folga em boa medida tranqüilizadora". 66
Ou seja, a sentença declaratória é dependente do cumprimento voluntário do demandado, pois, em caso contrário, nada poderá impedi-lo de praticar o ilícito, quando restaria ao ofendido apenas a pífia possibilidade de propor ação condenatória contra o infrator.
Nesse momento, porém, não interessa apenas demonstrar a inefetividade da sentença declaratória para atuar diante da ameaça de violação, mas sobretudo perceber as razões que levaram à suposição de que tal espécie de sentença teria função preventiva.
Se a sentença mandamental não podia ser admitida pelo Estado liberal, a sentença declaratória era perfeita às suas intenções. Essa sentença possui laços visíveis com o modelo de Estado de Direito de matriz liberal 67, pois não incide sobre a vontade do réu – e assim o Estado-Juiz não interfere na esfera jurídica do particular -, limitando-se apenas a declarar algo sobre uma relação jurídica 68 – quando o Estado-Juiz atua sobre uma relação jurídica já formada pela autonomia das vontades. Se a sentença que ordena sob pena de multa (mandamental) faz com que o juiz atue sobre a vontade do réu para, por exemplo, assegurar o adimplemento da obrigação in natura, a sentença declaratória se limita a regular, formalmente, a relação jurídica que foi criada a partir da livre vontade dos particulares.
Contudo, ainda que destinada apenas a regular formalmente uma relação jurídica já formada pela autonomia das vontades, a sentença declaratória, por ser admitida antes da violação do direito, para dar certeza a uma relação jurídica incerta em sua existência ou conteúdo, passou a ser vista como tendo algo de preventivo, embora sua evidente falta de efetividade para impedir o ilícito - conforme já demonstrado.
Mas, a ligação da declaração com a prevenção não está relacionada apenas com os valores do liberalismo clássico, mas também com os pressupostos da escola chiovendiana. Com efeito, não há como negar que a necessidade de demonstração de que a ação não se confunde com o direito material teve importante papel para a identificação de um fim preventivo na ação declaratória. 69
A teoria de Chiovenda, preocupada em demonstrar a autonomia da ação em relação ao direito material, encontrou na ação declaratória um ponto favorável para a consecução de seu objetivo. Sabe-se que Chiovenda discordou da teoria de Redenti sobre o fim sancionatório da justiça civil, exatamente porque, ao aceitar a tese de Wach, que demonstrava uma relação teórica entre a autonomia do direito de ação e a ação declaratória, concluiu que a ação declaratória não supõe a violação de um direito e não tem por fim aplicar uma sanção. 70
A ação declaratória, além de permitir a demonstração da autonomia da ação, destacou, definitivamente, a ação da violação do direito. Já que aqui interessam as bases da escola sistemática, cabe recordar, para demonstrar a relação entre essa escola e a prevenção, a "prolusione" proferida por Chiovenda na Universidade de Bolonha em 3 de fevereiro de 1903: "É verdade que a ação pode ser coordenada à satisfação de um direito subjetivo, mas não necessariamente. Aqui interessa expor sumariamente os casos nos quais o poder de pedir a atuação da lei aparece coordenado a um simples interesse, portanto como um direito em si mesmo, independente de algum outro direito (...) O mesmo ocorre nas ações declaratórias positiva e negativa, admitidas também em nossa lei, seja em casos particulares, seja como figura geral, em virtude do art. 36. do CPC, e que constituem figuras distintas seja dos ‘giudizi preventivi’, seja dos abolidos ‘giudizi di giattanza’. Quando alguém pede que se declare a existência de uma relação jurídica, sem aspirar a outros efeitos jurídicos, que não aqueles imediatamente derivados da declaração, não afirma algum direito subjetivo contra o adversário que não o próprio direito de ação, coordenado a um interesse de declaração; qualquer tentativa de dar um outro conteúdo a esse direito é inútil, porque precisamente a declaração judicial a que se tende não é prestação que se possa pretender do réu. E isso por razões mais fortes, quando a ação é coordenada a um interesse de declaração negativa, isto é, à declaração da não existência de uma relação jurídica". 71
A sentença declaratória tem uma nítida relação com o Estado de Direito de matriz liberal e com a escola sistemática, especialmente com a sua preocupação de isolar a ação do direito material, resultado para o qual foi decisiva a demonstração de que a declaração pode ser pedida independentemente da violação do direito. Ou melhor, a afirmação da natureza preventiva da sentença declaratória derivou da necessidade de se destacar a ação da violação do direito, para se demonstrar a autonomia da ação frente ao direito material e, assim, para se inserir a ação em uma perspectiva publicista.
3.4. A inidoneidade do processo civil para a prestação da tutela ressarcitória na forma específica
Não é possível confundir o dever de ressarcir – que é o reflexo do dano – com as formas que podem ser utilizadas para viabilizar o ressarcimento. O ressarcimento pode ser prestado mediante equivalente em dinheiro ao valor do dano ou na forma específica.
É natural que o regime que supõe que os bens jurídicos podem ser reduzidos a pecúnia assimile ressarcimento com dinheiro ou não se preocupe com formas processuais capazes de permitir a efetividade do ressarcimento na forma específica.
Como adverte Jorge Mosset Iturraspe - um dos mais respeitados civilistas da Argentina -, não admitir o ressarcimento na forma específica significa supor que, com dinheiro, "tudo seja possível", o que traduziria uma concepção "materialista em excesso" e apegada a uma infundada defesa da liberdade individual do devedor, a qual então poderia se vincular à tese do "dever livre". 72 Essa tese, atribuída a Brunetti, sustenta que o devedor, no caso de inadimplemento, tem a faculdade de adimplir a sentença na forma específica ou deixar que o credor se satisfaça com seus bens, o que seria um "dever livre", e não um verdadeiro "dever jurídico". 73
Embora o processo civil mais recente tenha admitido uma forma para a realização coativa da sentença que impõe um fazer – a chamada ação de execução da sentença que condena a um fazer -, e sendo certo que reparar implica, em regra, em fazer, o fato é que, na prática forense, ninguém se aventurava a pedir reparação na forma específica através de sentença condenatória. Se essa sentença, no caso de inadimplemento, tem que ser executada por meio de ação de execução, e essa última, no caso de persistir a inércia do devedor, abre oportunidade – após a realização de uma complicada e demorada concorrência – para que um terceiro faça aquilo que deveria ter sido feito pelo devedor - e é lógico que ninguém irá fazer nada sem ser pago -, chega mesmo a ser absurdo pensar que tal forma processual tenha sido instituída para viabilizar o ressarcimento na forma específica.
Na realidade, tal forma processual, embora ao menos ligada à importância do ressarcimento na forma específica, manteve-se presa à idéia de que o uso da multa poderia violar a liberdade individual do devedor.
Não é possível identificar responsabilidade de reparar com obrigação de pagar. Se a vontade do infrator continuar a ser concebida como incoercível, ou se a multa não puder ser utilizada para convencê-lo a reparar ou a custear o valor da reparação, ele prosseguirá com a faculdade de reparar na forma específica ou deixar que o lesado procure o ressarcimento do dano em seu patrimônio, como se tivesse um "dever livre", e não um dever de reparar.
Há casos em que o infrator possui condições técnicas para proceder a reparação, embora a reparação possa ser feita por terceiro. Nessas hipóteses, a multa obviamente pode ser utilizada para obrigá-lo a reparar. Em outras situações, diante da incapacidade técnica do infrator, a reparação necessariamente terá que ser feita por terceiro. Porém, o fato de a reparação ter que ser feita por terceiro, não extingue o dever de reparar do infrator, que assim deve custear o valor da reparação. Como essa obrigação de custeio – eminentemente acessória – somente pode ser cumprida com efetividade se o juiz puder agir sobre a vontade do infrator, aí a multa também não pode ser dispensada.
Há hipóteses, ainda, em que o ressarcimento depende de atuação do ofensor, ou melhor, que o ressarcimento (na forma específica, é claro) somente pode ocorrer se o infrator for convencido a fazer. No caso em que o lesado por notícia veiculada em jornal precisa de retificação para que o seu direito seja reparado, a sentença somente terá razão de ser se tiver força suficiente para constranger o demandado a fazer (retificar), quando a imprescindibilidade do uso da multa para dar efetividade ao ressarcimento na forma específica é evidente.
Como está claro, a única forma processual para se dar concretude ao direito ao ressarcimento na forma específica é a multa – também conhecida como astreintes. Ela somente foi deixada de lado, preferindo-se outras formas processuais, em virtude de valores que não enxergavam a importância do ressarcimento na forma específica e viam no uso da multa algo que atentava contra a liberdade individual do infrator.
3.5. A inadequação da ação cautelar para a prestação das tutelas inibitória e de remoção do ilícito
A inadequação da ação cautelar para inibir ou remover o ilícito, se possui nítida relação com os fundamentos do direito liberal clássico, pode ser facilmente evidenciada diante da constatação de que a inibição ou a remoção do ilícito jamais constituirão tutelas instrumentais ou assecuratórias de qualquer outra modalidade de tutela, muito menos da ressarcitória.
A ação cautelar não é adequada para a inibição do ilícito, eis que a tutela inibitória não pode ser considerada instrumento de nenhuma das tutelas que podem ser prestadas ao final do processo de conhecimento. 73
É pouco mais do que absurdo imaginar que a tutela inibitória possa ser um instrumento da tutela ressarcitória, pois essa última aceita a violação do direito. O que é preciso, para uma efetiva tutela inibitória, é uma ação de conhecimento que possa prestá-la. Para tanto, é necessário um procedimento com técnica antecipatória e sentença a ela adequada (mandamental ou executiva), que pode ser construído com base nos arts. 461. do CPC e 84 do CDC. E, mais do que isso, uma elaboração dogmática voltada a essa realidade.
Por outro lado, como o direito brasileiro jamais isolou uma tutela voltada a remover o ilícito, imaginou-se que a sua natureza fosse cautelar. Mas, não é difícil perceber, isso é conseqüência da ausência de distinção entre o dano e o ilícito. Como a remoção do ilícito impede, por conseqüência da restauração do conteúdo da norma violada, a produção do dano, confundiu-se tutela contra o ilícito (remoção do ilícito) e tutela contra o dano. Note-se, por exemplo, que a ação de busca e apreensão, ao tomar em consideração ato contrário ao direito, constitui ação de remoção do ilícito, que satisfaz por si mesma. Se essa ação, ao remover o ilícito, acaba colaborando com a prevenção, a verdade é que o seu fundamento não está na probabilidade do dano, mas sim na prática do ilícito. O autor, nessa ação, deve afirmar que foi praticado um ilícito de eficácia continuada que deve ser removido, e não simplesmente que há ameaça de dano. Frise-se, ainda que no presente momento apenas para esclarecer, que a produção de prova da ocorrência do ilícito é muito mais fácil do que a produção de prova da probabilidade do dano.
Se algumas cautelares foram chamadas de "ações cautelares satisfativas", isso ocorreu pelo motivo de que, muitas vezes, eram "satisfativas" do direito à inibição ou a remoção do ilícito. A expressão "satisfativa", aí, pode ser compreendida no sentido leigo, de satisfação. Tais tutelas eram "satisfativas" porque "bastavam", ou eram "suficientes", ao autor. Somente exigiam "ações principais" porque rotuladas de cautelar, ou melhor, porque somente podiam ser buscadas com esse rótulo, o qual indicava a necessidade da propositura da "ação principal" (cf. art. 806. do CPC).
É claro que a tutela de remoção do ilícito, ao se voltar contra um ato contrário ao direito já ocorrido, e assim evitar os danos que poderiam decorrer do ilícito removido, acaba exercendo função preventiva. Mas, essa tutela, assim como a tutela inibitória, nada tem a ver com um processo principal.
Não há dúvida, assim, de que o uso satisfativo, e assim desvirtuado, da ação cautelar, decorreu do fato de que tal ação, tendo sido pensada em outro contexto, não foi imaginada para inibir ou remover o ilícito.
As ações inibitória e de remoção do ilícito são autônomas, e assim devem ser veiculadas através do processo de conhecimento, especificamente por intermédio de um procedimento dotado de técnica antecipatória e das sentenças mandamental e executiva. Atualmente, diante de uma leitura adequada dos arts. 461. do CPC e 84 do CDC, não há como ignorar que os direitos à inibição e à remoção do ilícito podem ser efetivamente exercidos através de ação de conhecimento, o que não mais justifica o uso distorcido da ação cautelar.
Frise-se que, se a ação cautelar foi utilizada de forma distorcida – como será visto de maneira mais clara a seguir -, isso ocorreu pelo motivo de que o processo de conhecimento clássico era inidôneo para prestar as tutelas inibitória e de remoção do ilícito. Ou seja, o problema do uso anômalo da ação cautelar está na própria estrutura do processo de conhecimento, marcada – como amplamente já demonstrado – por valores incompatíveis com a necessidade de prevenção dos direitos.