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Culpabilidade: pressuposto da pena ou característica do crime?

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04/04/2004 às 00:00
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3. ELEMENTOS DA CULPABILIDADE

3.1. Da imputabilidade

3.1.1. Conceito

Para que se possa dizer que uma conduta é reprovável, ou seja, que há culpabilidade, é necessário que o agente tivesse podido agir de acordo com a norma.

Entretanto, para que o sujeito aja de acordo com o direito é imperioso que o mesmo tenha a capacidade psíquica de entender o que a lei determina e que face a sua não observância, haverá uma sanção predeterminada.

Essa capacidade psíquica denomina-se de imputabilidade.

Não existe no ordenamento jurídico brasileiro uma definição desse elemento do juízo de reprovação, ficando essa tarefa a cargo de nossa doutrina.

Para Heleno Cláudio Fragoso, "imputabilidade é a condição pessoal de maturidade e sanidade mental que confere ao agente a capacidade de entender o caráter ilícito do fato ou de se determinar segundo esse entendimento" [18].

Segundo Damásio E. de Jesus, "imputabilidade penal é o conjunto de condições pessoais que dão ao agente capacidade para lhe ser juridicamente imputada a prática de um fato punível" [19].

Das definições acima mostradas chega-se ao entendimento de que o indivíduo incapaz de compreender o caráter ilícito do fato em razão de alguma doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, ou até mesmo de uma embriaguez completa proveniente de caso fortuito ou força maior, não deve responder pelo seu ato praticado, ou seja, não é culpável, vez que, juridicamente, podemos considerá-lo inimputável, nos termos do Código Penal Brasileiro [20].

No Direito Penal, o fundamento da imputabilidade é a capacidade de entender e de querer. Somente o somatório da maturidade e da sanidade mental confere ao homem a imputabilidade penal. O seu reconhecimento depende de aptidão para conhecer a ilicitude do fato e determinar-se de acordo com esse entendimento.

Importante ressaltar que a capacidade de entender o caráter criminoso do fato não deve se confundir com a exigência de que o agente tenha consciência de que sua conduta se encontra descrita em lei como infração. Imputável, segundo Damásio E. de Jesus, "é o sujeito mentalmente são e desenvolvido que possui a capacidade de saber que sua conduta contraria os mandamentos da ordem jurídica" [21].

3.1.2. Causas de exclusão da imputabilidade

Como visto há pouco, a imputabilidade, em suma, consiste na capacidade de entender e de querer, entretanto, essa aptidão pode estar ausente, seja porque o indivíduo, por questão de idade, não alcançou determinado grau de desenvolvimento físico e psíquico, ou porque existe em concreto uma circunstância que a exclui. Nesse caso, fala-se em inimputabilidade.

Importante ressaltar, que a imputabilidade é a regra, sendo exceção a inimputabilidade. Todo individuo, a priori, é imputável, salvo quando ocorrer uma causa de exclusão.

Há vários sistemas utilizados para se determinar quais os que, por serem inimputáveis, não podem ser considerados culpáveis.

O primeiro é o sistema biológico ou etiológico, no qual aquele que apresenta uma anomalia psíquica é sempre inimputável. Presente a enfermidade mental, ou o desenvolvimento psíquico deficiente ou a perturbação transitória da mente, é ele, sem quaisquer outras investigações psicológicas, considerado inimputável. Dispensável se ressaltar que, obviamente, trata-se de um critério falho visto que deixa impune aquele que tem discernimento e capacidade de determinação, apesar de ser portador de uma doença mental ou desenvolvimento mental incompleto.

O segundo sistema é o psicológico, onde se verificam apenas as condições psíquicas do autor no momento do fato, afastada qualquer hipótese de verificação da presença de doenças mentais ou distúrbio psíquico patológico. Para alguns doutrinadores, dentre eles Julio Fabbrini Mirabete [22], E.Magalhães Noronha [23], esse sistema é pouco científico, de difícil averiguação, ensejando abusos na prática e dilatando desmensuradamente a esfera da imputabilidade.

O terceiro sistema, denominado de biopsicológico, e adotado pela lei brasileira, é a junção dos critérios anteriores e consiste, em primeiro lugar, na verificação se o agente apresenta doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado. Em caso negativo, não é inimputável. Caso positivo, será necessário analisar se o indivíduo era capaz de entender o caráter ilícito do fato; será inimputável se não tiver essa capacidade. A inimputabilidade decorre da conjugação dos critérios anteriores.

O Código Penal Brasileiro, em seus artigos 26, caput e 28, §1º, prevê quatro causas de exclusão de imputabilidade, que por conseqüência excluem a culpabilidade. São elas: a) doença mental; b) desenvolvimento mental incompleto; c) desenvolvimento mental retardado; d) embriaguez completa, proveniente de caso fortuito ou forca maior.

3.1.2.1.Da imputabilidade por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado

Previstas pelo artigo 26 do Código Penal Brasileiro, a doença mental, o desenvolvimento mental incompleto e o desenvolvimento mental retardado, enquanto motivos que excluem a imputabilidade, e conseqüentemente, a culpabilidade, são situações absolutamente diferentes uma das outras e merecem ser analisadas em separado.

A doença mental, assim referida pela legislação penal substantiva, deve ser entendida como perturbação mental ou psíquica de qualquer ordem, capaz de eliminar ou afetar a capacidade de entender o caráter criminoso do fato ou a de comandar a vontade de acordo com esse entendimento [24].

Para Júlio Fabbrini Mirabete, a expressão utilizada pelo Código Penal é muito vaga e sem maior rigor científico [25]. Partindo desse pensamento, o jurista conceitua doença mental como qualquer moléstia que causa alteração mórbida à saúde mental. Neste ensejo, data vênia, convém se ressaltar que a definição dada pelo doutrinador é um tanto precipitada, até porque a doença mental que o Código Penal se refere não é qualquer uma que acomete o indivíduo.

Ora, a imputabilidade é a capacidade de entender o caráter ilícito do fato e de determinar-se de acordo com esse entendimento. Para que haja exclusão da imputabilidade por doença mental é necessário que esta tenha o condão de eliminar a capacidade de entender e de querer do indivíduo, características principais daquele elemento da culpabilidade. Se a doença mental não comprometer essa capacidade, certamente que a imputabilidade não será excluída.

A expressão em análise abrange, dentre outras doenças, as psicoses em geral, a esquizofrenia, a loucura, a histeria, a paranóia, a epilepsia etc [26].

Alguns doutrinadores, entre eles Flávio Augusto Monteiro de Barros, costumam afirmar que a doença mental pode ser, ainda, permanente ou transitória, levando em consideração o tempo em que a doença afeta o indivíduo [27]. O essencial é que a doença subsista no momento da prática da conduta criminosa, podendo, inclusive, ter origem tóxica, como no caso de ingestão de álcool, cocaína etc.

Nesse ensejo, necessário se frisar que a dependência patológica de substâncias tóxicas (psicotrópica), configura doença mental, segundo dispõe a Lei nº 6.368/76, em seu artigo 19 [28], sempre que retirar a capacidade de entender ou de querer do indivíduo.

Refere-se o Código Penal, ainda, em desenvolvimento mental incompleto, como segunda causa de exclusão da imputabilidade. O desenvolvimento mental incompleto é aquele que ainda não se concluiu, devido à recente idade cronológica do agente ou a sua falta de convivência em sociedade, ocasionando imaturidade mental e emocional [29].

É o caso dos menores de idade e dos os silvícolas, os quais serão objetos de análise a partir de então.

A magna carta, repetindo os dizeres do artigo 27 do Código Penal, dispõe em seu artigo 228 que "são penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos, sujeito a normas da legislação especial". Ressalte-se, ainda, que, além de serem tratados nos dois artigos supracitados, os menores de idade estão inseridos, também, no artigo 26 da lei penal substantiva, quando determina como causa de exclusão da imputabilidade o desenvolvimento mental incompleto.

Nesse sentido, necessário se frisar que alguns penalistas, dentre eles Heleno Cláudio Fragoso [30], entendem que, em relação aos menores acima citados, aos quais a lei os isenta de sua aplicação, não deve se pensar que seja um caso de inimputabilidade, haja vista que tais indivíduos estão fora do Direito Penal, o que não acarreta na ausência de capacidade de culpa, mas proporciona aos mesmos a impossibilidade desses ocuparem o pólo ativo de um determinado fato punível e definido como crime.

Data Vênia, discorda-se dos doutrinadores que seguem a corrente acima, visto que os menores de dezoito anos são exemplo cristalino da inimputabilidade, mesmo porque o próprio Código Penal Brasileiro usa tal expressão no momento em que se refere a esses indivíduos, por ocasião do artigo 27. Além do mais, mesmo que não considerássemos o artigo retro, ainda assim, os menores deveriam ser considerados inimputáveis, vez que também estão acobertados pela expressão "desenvolvimento mental incompleto", causa de exclusão daquele elemento da culpabilidade, assim utilizada pelo art.26, caput, da legislação penal substantiva.

Ao determinar que os menores de idade são inimputáveis, o Código Penal adotou o chamado critério biológico, que já tivemos oportunidade de aludir. Há nesse caso uma presunção absoluta de que os menores de 18 anos não reúnem a capacidade de autodeterminação. Nessa oportunidade, importante observar que alguns autores, com razão, entendem tal critério como mera ficção, pois nenhum critério científico é capaz de demarcar o exato momento em que se dá o pleno desenvolvimento da personalidade moral de um indivíduo, principalmente nos dias de hoje, onde as crianças, nos seus primeiros anos de vida, já começam o seu processo educacional [31].

Estão, ainda, abrangidos pela expressão "desenvolvimento mental incompleto", os silvícolas (também chamados homens da floresta).

Em relação a esses indivíduos é necessário registrar que só serão considerados inimputáveis se não estiverem adaptados a civilização. Se o agente é índio integrado e adaptado ao meio civilizado não incorrerá em uma causa excludente da imputabilidade.

De acordo com alguns doutrinadores, entre eles Damásio E. de Jesus, a inimputabilidade do silvícola é discutível, visto que não há razão para considerar os indígenas inadaptados como carentes de desenvolvimento mental completo, porque podem ter um desenvolvimento muito mais completo que outras raças [32].

Entendendo de outra forma, Flávio Augusto Monteiro de Barros, defende que, sem dúvida alguma, há situações em que o silvícola sofre de desenvolvimento mental incompleto [33]. O que deve, principalmente, ser levado em consideração é o critério norteado pelo legislador ao fixar tal situação como causa de exclusão da imputabilidade: a assimilação dos valores da vida civilizada por parte do índio.

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Indubitavelmente, no caso dos silvícolas imperioso será a realização de um laudo pericial para que se possa aferir a inimputabilidade.

Refere-se o Código Penal, ainda, em seu artigo 26, caput, em desenvolvimento mental retardado, como excludente da imputabilidade. Para Fernando Capez, tal desenvolvimento "é o incompatível com o estágio de vida em que se encontra a pessoa, estando, portanto, abaixo do desenvolvimento normal para idade cronológica" [34].

Ao contrário do desenvolvimento incompleto, no qual não há maturidade psíquica em razão da ainda precoce fase de vida ou da falta de conhecimento empírico do agente, no desenvolvimento retardado a capacidade não corresponde às expectativas para aquele momento da vida, o que significa que a plena potencialidade jamais será adquirida.

É o caso dos oligofrênicos (idiotas, imbecis e débeis mentais), que são pessoas de reduzidíssimo coeficiente intelectual.

Dada a sua quase insignificante capacidade mental, ficam impossibilitados de avaliar de forma correta a realidade que os cerca, não tendo, por conseguinte, condições de entender o crime que porventura cometerem.

Segundo a classificação de Terman, os oligofrênicos obedecem a seguinte escala, de acordo com o nível de seu quociente de inteligência [35] :

Q.I.

Significação

Acima de 140

Gênio

De 120 a 140

Inteligência muito superior

De 110 a 120

Inteligência superior

De 90 a 110

Normal

De 70 a 90

Debilidade mental fronteiriça

De 50 a 70

Debilidade mental

De 25 a 50

Imbecilidade

Abaixo de 25

Idiota

Ressalte-se que para alguns doutrinadores somente haverá exclusão de imputabilidade nas faixas mais baixas.

Por último pode-se classificar como portadores de desenvolvimento mental retardado os surdos-mudos, conforme circunstâncias. O isolamento do surdo-mudo pode impedir o desenvolvimento mental e afetar a capacidade de discernimento no campo intelectual ou ético, ainda que não acompanhado de doença mental ou oligofrenia.

No tocante a esses indivíduos, nem sempre os mesmos se revelam inimputáveis, competindo a perícia fixar o grau de seu retardamento sensorial. Podem ocorrer três hipóteses [36]:

a) o surdo-mudo, ao tempo do crime, não tinha capacidade de autodeterminação; nesse caso, ele é considerado deficiente mental, equiparando-se aos oligofrênicos (art.26, caput, do Código Penal).

b) o surdo-mudo, ao tempo do crime, estava com a capacidade de autodeterminação diminuída; nesse caso, deverá ser tratado como semi-imputável [37], enquadrando-se no parágrafo único do art.26 do Código Penal.

c) o surdo-mudo, ao tempo do crime, reunia plena capacidade de autodeterminação; nesse caso, deverá ser tratado como imputável e sofrer pena cabível.

Por fim, necessário registrar que não basta somente a presença dessas situações de base biológica (doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado) para que fique excluída a imputabilidade, é necessária, também, a observância de determinado estado psicológico por parte do agente.

O Código Penal, em seu artigo 26, caput, determina que só é inimputável aquele que ao tempo da ação ou omissão era inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.

Ora, já ficou demonstrado em linhas passadas que a imputabilidade, essencialmente, é a capacidade de entender e de querer determinado fato definido em lei como crime. Dessa forma, pode o sujeito, por ocasião da prática de um delito, estar apresentando um daqueles estados mórbidos há pouco descritos e, ao mesmo tempo, ser perfeitamente capaz de entender o caráter ilícito do fato ou pelo menos podemos verificar que seu aspecto volitivo não foi comprometido. Nesse caso, sem dúvida nenhuma o critério biológico deverá ser descartado, predominando, conseqüentemente, a característica psicológica, base do conceito do elemento da culpabilidade em análise. Em razão disso, deverá o agente ser, perfeitamente, considerado imputável nos termos do artigo retrocitado, visto que a capacidade de entender e de querer estão presentes.

Excluída a imputabilidade por incapacidade total de entendimento da ilicitude do fato ou de autodeterminação, o autor é absorvido e aplicar-se-á obrigatoriamente a medida de segurança.

3.2.1.2.Da imputabilidade por embriaguez completa proveniente de caso fortuito ou força maior

Para que se possa compreender claramente essa última causa de exclusão de imputabilidade, necessário se conhecer alguns conceitos referentes a embriaguez.

Para Fernando Capez, a embriaguez é uma "causa capaz de levar à exclusão da capacidade de entendimento e vontade do agente, em virtude de uma intoxicação aguda e transitória causada por álcool ou qualquer substância de efeitos psicotrópicos, sejam eles entorpecentes (morfina, ópio etc.), estimulantes (cocaína) ou alucinógenos (ácido lisérgico)" [38].

Para efeitos didáticos, a doutrina penal costuma dividir a embriaguez em três em fases, a saber:

a) Também chamada de embriaguez incompleta por Mirabete [39], a primeira fase é marcada pela excitação. É um estado eufórico inicial provocado pela inibição dos mecanismos de autocensura. O agente torna-se inconveniente, perde a acuidade visual e tem seu equilíbrio afetado. Em virtude de sua maior extroversão, esta fase denomina-se "fase do macaco" [40].

b) Passada a excitação inicial, o ébrio começa a migrar para a segunda fase da embriaguez. Estabelece-se uma confusão mental e há irritabilidade, que deixam o sujeito mais agressivo. Por isso denomina-se fase do leão.

c) Na última fase, denominada por Mirabete [41] como embriaguez comatosa, sendo alcançada somente se o ébrio ingerir grandes doses do conteúdo, observa-se um estado de dormência profunda por parte do agente, com perda do controle sobre as funções fisiológicas. Nesta fase, conhecida como "fase do porco", evidentemente, o ébrio só pode cometer delitos omissivos.

Os penalistas costumam, ainda, dividir a embriaguez em espécies, levando em consideração a origem desse estado e sua intensidade, ou seja, a forma como o sujeito veio a adquirir tal situação e o grau de influência que o conteúdo ebriante apresenta sobre o organismo do indivíduo.

Desse modo, então, temos as seguintes espécies de embriaguez:

a) Embriaguez não acidental: são todos os casos em que o agente ingere a substância alcoólica ou de efeitos análogos, que não sejam em razão de caso fortuito ou forca maior. Esse tipo de embriaguez subdivide-se em voluntária (dolosa ou intencional) e culposa.

Na embriaguez voluntária, dolosa ou acidental o agente ingere a substância alcoólica com a intenção de embriagar-se. Nessa situação, então, se observa um desejo por parte do agente de ingressar em um estado de alteração psíquica.

Na embriaguez culposa, ainda como subespécie de embriaguez não acidental, o agente quer ingerir a substância, mas sem intenção de embriagar-se, vindo isso acontecer, contudo, por força da imprudência de consumir doses excessivas.

As duas subespécies de embriaguez não acidental há pouco descritas podem, ainda, ser classificadas de acordo com o grau de influência que a substância ebriante possui sobre o organismo do agente.

Nesse sentido, fala-se em embriaguez completa e incompleta, sendo a primeira aquela situação na qual se observa a retirada total da capacidade de entendimento e vontade do agente, que perde integralmente a noção sobre o que está acontecendo e a segunda aquela embriaguez na qual há a retirada apenas parcial da capacidade de entendimento e autodeterminação do agente, que ainda consegue deter um resíduo de compreensão e vontade.

Alguns doutrinadores [42] falam, ainda, em embriaguez preordenada quando o agente embriaga-se propositadamente para cometer o crime; é a embriaguez com o escopo de encorajar a pessoa a delinqüi, e funciona como circunstância agravante genérica [43].

Necessário se faz ressaltar que a embriaguez não acidental jamais excluiu a imputabilidade, seja ela voluntária, culposa, completa ou incompleta. Isso ocorre porque o indivíduo, no momento em que ingeria a substância, era livre para decidir se devia ou não fazer. A conduta, mesmo que praticada em estado de embriaguez completa, originou-se de uma ato de livre arbítrio do sujeito, que optou por ingerir o líquido ebriante, quando possuía a possibilidade de não o fazer.

Dessa forma, observa-se que, nesse caso, o que se leva em consideração é o momento da ingestão e não a prática do fato delituoso. É o que os penalistas costumam chamar de aplicação da teoria da actio libera in causa (ações livres na causa).

Tal teoria não apresenta problemas nenhum ao ser aplicada nos casos de embriaguez preordenada na qual o sujeito embriaga-se propositadamente para pôr-se em estado de inimputabilidades para cometer o crime.

Quanto aos casos de embriaguez completa, voluntária ou culposa, e não preordenada, onde o sujeito se embriaga completamente porque possui tal intenção ou porque chegou àquele estado em razão de sua imprudência quando da ingestão do líquido, e chega a delinqüir não porque possui o animus específico, mas porque estava privado da sua capacidade de querer e de autodeterminação, é certo afirmar que a teoria acima citada encontrará dificuldades quando da sua aplicação.

Para alguns doutrinadores, a aplicação dessa teoria constitui resquício da responsabilidade objetiva em nosso sistema penal e pode ser admitida excepcionalmente quando for de todo necessário para não deixar o bem jurídico sem proteção.

Para outros penalistas, entre eles Damásio E. de Jesus, o Código Penal Brasileiro, quando determinava a aplicação da actio libera in causa, sem dúvida nenhuma admitia a responsabilidade penal objetiva [44], entretanto, tal situação alterou-se com a Constituição Federal de 1988, que, em seu artigo 5º, LVII [45], introduziu o princípio do estado de inocência, não mais permitindo-se a interpretação da legislação penal substantiva com a presença da responsabilidade penal objetiva, o que leva-se a concluir pela inaplicabilidade da teoria acima citada.

Quanto a essa discussão, correto é o posicionamento de Fernando Capez, quando afirma que "ainda existem casos em que se mantêm resquícios de responsabilidade objetiva em nosso sistema penal, quando imprescindível para a proteção do bem jurídico" [46]. A actio libera in causa é uma desses casos. A fim de que o agente não fique imune a ação punitiva estatal e o bem jurídico sem tutela, na embriaguez não acidental leva-se em conta, exclusivamente, o momento em que o sujeito escolheu livremente entre consumir ou não a substância.

b) Ainda como espécie de embriaguez, tem-se a aquela decorrente de acidentes, mais precisamente em razão de caso fortuito ou forca maior, assim determinada como causa de exclusão da imputabilidade pelo Código Penal, em seu artigo 28, §1º [47].

Para Fernando Capez, a embriaguez acidental proveniente de caso fortuito é aquela na qual o indivíduo ingere bebida na ignorância de que tem conteúdo alcoólico ou dos efeitos psicotrópicos que provoca [49]. É também o caso do agente que, após tomar antibiótico para tratamento de uma gripe, consome álcool sem saber que isso fará perder completamente o poder de compreensão. Nessa hipótese o sujeito não se embriagou porque quis, nem porque agiu com culpa.

A embriaguez acidental proveniente de força maior é aquela que deriva de uma forca externa ao agente, que o obriga a consumir droga. É o caso do sujeito obrigado a ingerir álcool por coação física ou moral irresistível, perdendo, em seguida, o controle sobre suas ações.

Em relação a esses dois casos de embriaguez acidental, necessário se registrar que só há exclusão de imputabilidade se aquela for completa, ao tempo da ação ou omissão, e em conseqüência da qual o agente se encontrar inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determina-se de acordo com esse entendimento.

Ressalte-se que a exclusão da imputabilidade só ocorre caso haja a redução da capacidade intelectual ou volitiva do agente ao tempo da prática do fato. Se não se observar essa redução, mesmo frente a uma embriaguez acidental proveniente de caso fortuito ou forca maior, o agente deverá responder pelo crime, subsistindo a imputabilidade na íntegra.

Por outro lado, caso o agente venha a delinqüir sob a influência da embriaguez, observando-se, apenas uma diminuição da capacidade de entender caráter criminoso do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento, deverá reduzir a pena de um a dois terços, nos termos do artigo 28, §2º do Código Penal. Nesse último caso, há uma situação de semi-imputabilidade.

A embriaguez admite todos os meios de prova, inclusive a testemunhal. A prova ideal é o exame de sangue para verificação da dosagem alcoólica. O bafômetro tem se mostrado útil. Todavia, ninguém é obrigado a extrair sangue ou submeter-se ao bafômetro. A recusa a essas provas constitui lícito desdobramento do princípio da ampla defesa e do direito ao silêncio.

3.2. Potencial consciência da antijuridicidade

3.2.1.Considerações introdutórias

Hodiernamente, para que o indivíduo seja realmente culpável é de mister importância que, além de imputável, aquele tenha, pelo menos, a possibilidade de entender o caráter ilícito do fato praticado. Não se concebe uma idéia de culpabilidade desprovida de potencial consciência da ilicitude do fato.

A pena só será justamente aplicada naquele indivíduo que, ao praticar o evento danoso, tinha, pelo menos, a possibilidade de entender que sua conduta é considerada como delito pelo local onde a praticou.

Alguns doutrinadores [50], tentando justificar esse elemento da culpabilidade, afirmam que:

A mesma razão que leva a considerar-se inculpável a ação cometida por um inimputável (impossibilidade de entender o caráter criminoso ou de determinar-se de acordo com esse entendimento), deve pesar, também, para impedir que seja movida uma censura a quem, mesmo sendo normal e imputável, age igualmente sem a possibilidade de entender o caráter criminoso do fato, isto é, sem a consciência da ilicitude, embora por deficiências momentâneas e circunstanciais, mas inevitáveis.

Dessa forma, percebe-se sem muito esforço, que para que o sujeito seja realmente considerado culpável é indispensável que se apure se aquele poderia estruturar, em lugar da vontade antijurídica da ação praticada, outra conforme o direito. Se essa possibilidade não for verificada, certamente, o juízo de reprovação estará excluído e, conseqüentemente, o criminoso não responderá pelo ilícito praticado.

A respeito desse elemento da culpabilidade, de acordo com Damásio E. de Jesus, há três teorias que tentam determinar a correta colocação da potencial consciência da ilicitude na estrutura do delito, variando de acordo com a doutrina adotada em relação ao conceito da ação e da culpabilidade [51], já abordados nesse trabalho. São elas: teoria extrema do dolo, teoria limitada do dolo, teoria extrema da culpabilidade, as quais, a partir de então, serão abordadas.

3.2.2.Teoria extrema do dolo e culpabilidade

A teoria extrema do dolo, a mais antiga, situa o dolo na culpabilidade e a consciência da ilicitude, faz parte desse, devendo a mesma ser atual, não sendo suficiente a possibilidade de conhecimento do injusto.

Segundo essa teoria, se o indivíduo, ao praticar uma determinada conduta ilícita, não tiver o real conhecimento de que sua ação é considerada como delito, certamente o dolo estará excluído, quando a ausência daquele conhecimento for inevitável, uma vez que, nulo está seu elemento normativo, que é a consciência da ilicitude.

Assim, para a teoria em análise a real consciência da ilicitude é excludente do dolo, podendo o sujeito responder por crime culposo, se evitável o erro ou a ignorância da norma e prevista modalidade culposa.

3.2.3.Teoria limitada do dolo e culpabilidade

Surgida como aperfeiçoamento da doutrina extrema do dolo, a teoria limitada procurou evitar as lacunas de punibilidade que esta possibilitava, exigindo no dolo apenas a potencialidade do conhecimento do injusto e não a real e atual consciência da ilicitude.

Para essa doutrina, essa medida evitaria absolvições infundadas e condenações baseadas na culpa de direito ou cegueira jurídica.

Para Damásio E. de Jesus, tal teoria não merece aplausos, uma vez que a denominada inimizade ao direito ou cegueira jurídica é muito vaga para fundamentar decisões na prática [52].

Cézar Roberto Bitencourt, ao tratar do assunto, afirma que a potencial consciência da ilicitude, enquanto elemento do dolo, baseada na cegueira jurídica e inimizade ao direito, é extremamente importante, principalmente nos casos em que o autor do crime (normalmente, um delinqüente habitual) demonstra desprezo ou indiferença tais para com os valores do ordenamento jurídico que, mesmo não se podendo provar o conhecimento da antijuridicidade, deve ser castigado pelo crime doloso [53].

Por outro lado, não se deve deixar de perceber que a substituição do conhecimento atual da ilicitude (defendido pela doutrina extrema do dolo) pelo conhecimento presumido, de certa forma, introduziu o polêmico elemento denominado por alguns penalistas de culpabilidade pela condução de vida, criando, dessa forma, a possibilidade de condenação do agente não por aquilo que ele faz, mas por aquilo que ele é, dando origem ao combatido direito penal do autor.

3.2.4.Teoria extrema da culpabilidade

Em relação a teoria extrema da culpabilidade, empreendida pela teoria finalista da ação e pela doutrina da culpabilidade normativa pura, necessário se registrar que esta parte da reelaboração dos conceitos de dolo e culpabilidade.

Para os seguidores dessa doutrina [54], o dolo e a consciência da ilicitude são institutos completamente distintos, com diferentes funções dogmáticas, não devendo o segundo integrar o primeiro.

Tratando-se o dolo de um elemento puramente psicológico certamente deve ser transferido para o injusto, devendo fazer parte do tipo penal.

A consciência da ilicitude, por sua vez, não possuindo dados psicológicos, é desconsiderada como elemento do dolo, haja vista que tem natureza normativa, e, junto com a exigibilidade de conduta diversa, passa a fazer parte da culpabilidade, num puro juízo de valor. Dessa forma, se o magistrado chega à conclusão de que o sujeito não teve possibilidade de conhecer o caráter ilícito do fato, deve absolvê-lo não por ausência de dolo, mas por inexistir reprovabilidade.

Com propriedade, Damásio E. de Jesus afirma que tal doutrina "está apta a chegar sempre a resultados justos, sem extremar-se em severidade quanto ao delinqüente. Mas, sobretudo, evita os vazios que por força de coisas resultam quando se aceita a teoria do dolo" [55]

3.3. Da exigibilidade de conduta diversa

Para que a culpabilidade fique realmente caracterizada não é necessário que se observe apenas os dois elementos há pouco estudados, quais sejam, a imputabilidade e a potencial consciência da ilicitude; é necessário, ainda, que a conduta ilícita tenha sido realizada em circunstâncias normais, de modo que o agente podia e devia proceder conforme o direito. A esse último requisito do juízo de reprovação, chama-se de exigibilidade de conduta diversa.

De acordo com Fernando Capez, tal elemento da culpabilidade consiste "na expectativa social de um comportamento diferente daquele que foi adotado pelo agente. Somente haverá exigibilidade de conduta diversa quando a coletividade podia esperar do sujeito que tivesse atuado de outra forma" [56].

Assim, a inexigibilidade de outra conduta conforme o direito exclui a culpabilidade.

Para Flávio Augusto Monteiro de Barros, o elemento do juízo de reprovação em análise se justifica por motivos óbvios, haja vista que, por uma questão humanitária e lógica é fácil perceber que, em circunstâncias anormais, o comportamento contrário ao direito não é reprovável quando o agente não podia proceder de outra maneira [57].

É inquestionável que o homem deve amoldar seus atos aos modelos traçados pelo ordenamento jurídico, entretanto, esse modelo é desenhado para ser cumprido dentro da normalidade.

O não cumprimento da norma jurídica em circunstâncias anormais, quando não possível realizar um comportamento diferente, por via de conseqüência faz desaparecer a culpabilidade.

A inclusão desse elemento no juízo de reprovação deve-se a Frank, que em 1907, afirmou que a culpa em sentido amplo é algo mais que uma relação entre o sujeito e o resultado: a culpabilidade depende da normalidade das circunstâncias concomitantes, pois só assim o agente teria a possibilidade de motivar normalmente sua vontade no rumo da conduta realizada [58].

No Brasil, a adoção da teoria normativa da culpabilidade é evidenciada nos institutos da coação moral irresistível e obediência hierárquica, de ordem não manifestamente ilegal. Ambas constituem causas legais de exclusão de culpabilidade, inspiradas na inexigibilidade de conduta diversa, podendo ambas serem aplicadas tanto aos fatos dolosos como também ao culposos.

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Sobre o autor
Luciano da Silva Fontes

Advogado em Belém/PA

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FONTES, Luciano Silva. Culpabilidade: pressuposto da pena ou característica do crime?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 271, 4 abr. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5047. Acesso em: 5 nov. 2024.

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