Segurança pública brasileira: um sistema déspota

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Segurança Pública, no Brasil, é atirar para resolver tudo, e não prevenção!

Este artigo não se esgota em si. Os problemas sociopolíticos que fomentaram, e fomentam, as desigualdades sociais, e suas consequências, além da privilegiação, a certos indivíduos, que favorece vários tipos de crimes hediondos no Brasil causa a insegurança pública.

Segurança Pública, para maioria dos brasileiros, comporta, tão somente, tiros e mais tiros contra os bandidos, cadeia, eternamente. Por séculos, o Estado [aristocrático ] sempre pensou em como manter os indivíduos "indesejáveis" sob rédea curta, ou seja, qualquer movimento social em defesa dos direitos sociais não era permitido pelas classes dominantes. A classe média, próxima da classe baixa, era persuadida pelas classes altas de que quem se situava na base da pirâmide era, por natureza, "criminoso". Construiu-se, assim, a ideia de que os párias, na base da pirâmide social, eram pessoas potencialmente letais para a paz social. Não é difícil atestar o que digo, principalmente conversando com cidadãos brasileiros com mais de 60, 70, 80 anos. Alguns quilombolas podem atestar como era a vida dos párias [afrodescendentes], assim considerados pela elite.

Leio muito os comentários em sites e blogs sobre assuntos relacionados aos enfrentamentos entre policiais e bandidos. Há várias contradições [bipolaridades] nas mensagens dos internautas. Alguns dizem que os policiais são truculentos e corruptos, outros dizem que os policiais estão defendo o país contra a escória. Quando policial morre, também há bipolaridades: morreu porque era corrupto; morreu em nome da paz e da ordem pública. Já aos criminosos, quando morrem: menos um "inseto" na Terra; foi vítima de extermínio policial.

A começar da década de 1980, no caso do RJ, quando Leonel Brizola impediu incursões policiais, sem mandados, nas favelas cariocas, ele foi intitulado, pelas más línguas, de "amigo da bandidagem". Na época, assim como contemporaneamente, policial deve agir, e não esperar que juiz mande citar algum suspeito, ou prender, em caso de mandado de prisão. Polícia, para a mentalidade "atire sem exitar", não deve obedecer à burocracia administrativa, mas agir, pois tudo é "flagrante". A mesma sociedade "justiceira", que regojiza quando policiais invadem comunidades tomadas pelo narcotráfico, e saem atirando sem parar, mesmo que de helicóptero, jamais aceita ser revistada em blitz policial, ou Lei Seca, pois não é criminoso. Logo, dizem que os policiais agiram arbitrariamente [abuso de autoridade]. Ora, revista policial só pode ser feita nos morros, nas periferias, jamais nos bairros elitizados. É uma afronta ao Estado Democrático de Direito!

Os que adoram ver narcotraficantes sendo mortos, principalmente quando se mostram, concomitantemente, corpos e apreensões de droga ilícitas, não aceitam que policiais prendam o cidadão que porta algumas gramas de maconha — estou me referindo antes das mudanças sobre o porte de maconha. Uma afronta ao Estado à liberdade dos usuários, que não são traficantes. O que mais aterroriza é saber que os mesmos que adoram ver os traficantes mortos por ações policiais são os mesmos que mantêm o lucro do tráfico, pois consomem, juntos, toneladas de drogas [ilícitas] anualmente. O Brasil é um dos maiores consumidores de cocaína, e não para de crescer este consumo.

Em síntese, na bipolaridade brasileira:

  • Bandido bom, é bandido morto;

  • "Não!" às ações dos policiais quando revistam cidadãos brancos, moradores de bairros nobre;

  • "Sim!" às ações policiais "atire sem exitar" nas comunidades carentes, como ou sem tráfico, pois tais locais são antros de marginais;

  • Matem, mas liberem às drogas para consumo recreativo;

  • Policial bom é o que age nas comunidades carentes, não no "asfalto", cujos moradores são "honestos" e "jamais" cometeram crimes.

Há exceções, claro, por parte de alguns usuários. Morreu o traficante, mas as drogas não foram apreendidas pelos policiais? Está tudo certo! É fumar e cheirar até cair no chão.

Segurança Pública não é ação policial para determinados indivíduos, mas a todos os indivíduos, indiferentemente de classe social, de etnia. A violência urbana, insuportável, é o resultado de séculos de violações de direitos humanos, de privilégios, e doutrinas [criminologia], para consagrar pequena parcela social como sendo "perfeita", em tudo. Por debaixo dos panos [etiquetas sociais], a podridão de uma sociedade elitizada que também cometia crimes, mas encobertos pelo manto do Estado aristocrático.

Se há um esquema organizado [tráfico em geral] que enfrenta o Estado Democrático, não tem nada a ver com a, suposta, criminalidade latente aos afrodescendentes. Por que me refiro aos afrodescendentes como sendo "vilões" de tudo que acontece nas comunidades carentes e nas violências nas vias públicas? Porque, os elitizados, que se sentem como "deuses", pensam pelo ângulo do darwinismo social. Desde a década de 1990, quando o Estado Social passou a socorrer os desamparados, e dar condições de ascensão socioeconômica, os "deuses" começaram a bradar contra o "assistencialismo" do Estado ["marxista"]. Muitos condenaram o consumismo desenfreado dos cidadãos da Nova Classe Média, pois a sustentabilidade estava indo para o bueiro. Enquanto isso, os "deuses", que reclamavam do consumismo, não se importavam com a redução do IPI, em comprar carros e mais carros para transitarem nas vias públicas, já saturadas de partículas poluidoras lançadas dos canos de descargas dos automotores; e muito menos reclamaram de suas compras de eletroeletrônicos e eletrodomésticos.

As criminalidades dos narcotraficantes é resultado de descaso e intenção do Estado aristocrático em não permitir que os "párias" conseguissem ascensionar socioeconomicamente. A saída para conseguirem indumentárias e algum eletrônico, e até comida, foi o tráfico. Ora, incompreensível pensar que o "mínimo existencial" do pão e água é capaz de manter pessoas saudáveis e caladas. As riquezas produzidas no Brasil sempre foram direcionadas para as classes de "sangue azul". O desenvolvimento urbanístico, seguido pela especulação imobiliária, foi, e ainda é, Apartheid tupiniquim. O "Bota Abaixo" serve como instrumento político segregador, que empurra os "malcheirosos" [povão, destituídos de qualidades intelectuais e de sociabilidade] para longe dos "perfumados" [povo, escolhido e puro] — os termos se referem ao preconceito gerado pelos cidadãos que se consideram melhores do que os demais.

Até aqui falei sobre drogas ilícitas, mas Segurança Pública não se limita ao “bang bang”. Segurança Pública é um universo bem maior, por exemplo, na prevenção de crimes, a começar pela violência doméstica, pela violência aos LGBTs, pela violência, em suma, aos direitos humanos. Incia-se pela educação universalista, na participação dos professores, dos policiais, da sociedade em si para a construção de uma sociedade que entenda o porquê do contrato social, porém, principalmente, na participação ativa na condução política do bairro, da região, do próprio país.

Crime de colarinho branco, que está sendo desmantelado pela Lava Jato, não difere, quanto aos danos aos direitos humanos, do tráfico em geral. A diferença é que, no tráfico, nas comunidades carentes, até meados da década de 1980, este ocupava o lugar do Estado [Social]. O crime de colarinho, por sua vez, agia pelo puro sadismo de se apoderar do erário. Com o tempo, o poder corrompe os homens [Montesquieu]. O narcotráfico passou a ser mais do que uma ajuda para a comunidade, porém, um grande negócio que daria condições de usufruir do que o Capitalismo poderia oferecer. Sem Estado Social, mas sob ação de Estado Discriminador, o tráfico passou a ser o caminho, mais rápido, de ascensão. Ora, mais uma vez faço comparação com o crime de colarinho branco, também não procuram ascensão rápida? A diferença, repito, é que estes possuem os meios necessários para ascensionarem, enquanto os traficantes — lê-se "populações excluídas" —, antes do Estado Social, aplicado desde a década de 1990, não possuíam um meio efetivo de ascensionarem. Vejamos, em relação aos excluídos, social e politicamente, as dificuldades para conseguirem qualidade de vida:

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  • Extrema dificuldade de conseguirem crédito na praça;

  • Extrema dificuldade de conseguirem morar em edificações com infraestruturas, como água potável, esgoto canalizado, fornecimento de luz, de gás encanado;

  • Extrema dificuldade de frequentarem estabelecimentos de ensino — mobilidade urbana deficitária, ou ausente;

  • Extrema dificuldade de acesso à saúde.


O que explanei nos itens, é situação muito antes dos problemas contemporâneos, isto é, são situações vivenciadas pelos excluídos, social e política, antes da aplicação do Estado Social, a partir da década de 1990. Quando o Estado favorece pequena parcela da sociedade, e quando desfavorece a maioria da sociedade, no caso do Brasil, o caos se acentua. Quem tem muito poder em mãos comete crimes "perdoáveis", pelo sistema protetivo aos que estão na condução, ou dentro, do sistema político. Quem não tem poder em mãos comete crimes "imperdoáveis", aos olhos do sistema protetivo criado pelos que conduzem o sistema político. Estes, então, tendem a se defender como podem das arbitrariedades dos "donos do poder". Através da ilegalidade, como o tráfico de drogas, conseguiram, e conseguem, poder para sobreviver diante do poder discriminador.

Com o Estado Social, aplicado na década de 1990, e se for eficiente, no decorrer do desenvolvimento brasileiro, não haverá mais "desculpas" para a existência do tráfico de drogas nas comunidades carentes, pois o Estado Social proverá as classes menos favorecidas com oportunidades de ascenderem socioeconomicamente. A meritocracia, então, não será exclusiva a uma parcela da sociedade [aristocracia], mas oportunidade extensível e possível aos brasileiros de quaisquer camadas sociais.

A criminalidade não pode ser explicada tão somente pelo prisma "miséria e sobrevivência", no entanto, como seres biológicos, os instintos de sobrevivência agem para a existência biológica. A criminalidade da ganância, e esta está além do instinto de sobrevivência, é, em alguns casos, uma necessidade de compensar algum sentimento de inferioridade, de outro modo, o puro desejo de ter pessoas sob controle, como na sociopatia.

Se o Direito Penal é a atuação coatora do Estado, a educação humanitária é a forma pela que o Estado, quando democrático, procura, preventivamente, evitar crimes provocados, pela diluição do verniz civilizatório. A banalidade da vida, no Brasil, atinge até localidades cujas estruturas "do interior", solidariedade e paz, já se encontram desmanteladas. De certo, as boas influências, assim como as más, criam comportamentos tanto na sociedade quanto no âmbito político. Impensável a ideologia cultural de "tudo posso fazer", para alguns, e "nada você pode fazer", para outros, pois privilégios e impunidades a certos indivíduos já degrada o verniz civilizatório. Do outro lado, os indivíduos segregados desse sistema déspota, que, como seres humanos, não tenderão consentir e acatar o sistema.

Não é mais possível o modelo de Segurança Pública que privilegia certos indivíduos enquanto destrói vidas humanas, consideradas, pelo sistema déspota, de criminosos natos. A normose de certos crimes, diante do que seja crime, a cada classe social, é um estorvo ao desenvolvimento da personalidade humanística. Alguns crimes são cometidos por todas as classes sociais, como fraude no processo para obtenção da Carteira Nacional de Trânsito [CNH], furto de energia elétrica, violência doméstica. Todavia, mesmo sendo crimes "universais" na cultura brasileira, as punições são diferenciadas. Aos brasileiros com renda per capta elevada, a disponibilidade de defesa é muito maior do que ao cidadão desprovido de recursos econômicos, principalmente se este cidadão é afrodescendente.

Subindo na hierarquia dos privilégios monárquicos, o topo da normose é a política. Tudo se faz, tudo é perdoado. Inalcançáveis e intocáveis, os ímprobos políticos conseguem justificar seus crimes pelas pressões de outros políticos, como se o ser humano não tivesse personalidade própria. Assim, a Segurança Pública tem sistemas diferenciadores para cada tipo de cidadão, conforme suas posições sociais, econômicas e políticas. Diante disso, os "peões" humanos são sacrificados para proteger o Rei e a Rainha. São os "peões" policiais que devem manter ordem social para tão somente privilegiar certos cidadãos. Quando esses "peões" ficam fora do sistema qualificador, eles mesmos passam a sentir os malefícios do sistema que antes protegiam. Alguns, na ativa, revoltam-se, já que Rei e Rainha vivem a cometer crimes, mas não são presos, e não há motivo de defender um sistema perverso, desumano. Surgem as milícias formadas por policiais.

Concluo, neste parágrafo, que a Segurança Pública brasileira discrimina pessoas pelas suas características étnicas, pela condição socioeconômica, se o cidadão é "peão", "rei" ou "rainha". Enquanto o cidadão estiver dentro do sistema déspota, ele está "protegido"; quando fora, sente a mesma carga de penalização como qualquer excluso do sistema. Na tentativa de não ficar fora desse sistema, cada qual tenta sobreviver, como podem.

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Sobre o autor
Sérgio Henrique da Silva Pereira

Articulista/colunista nos sites: Academia Brasileira de Direito (ABDIR), Âmbito Jurídico, Conteúdo Jurídico, Editora JC, Governet Editora [Revista Governet – A Revista do Administrador Público], JusBrasil, JusNavigandi, JurisWay, Portal Educação, Revista do Portal Jurídico Investidura. Participação na Rádio Justiça. Podcast SHSPJORNAL

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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