José Murilo de Carvalho nasceu em Andrelândia, no Estado de Minas Gerais, em 8 de setembro de 1939. Sociólogo e historiador, é professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e da Escola de Guerra Naval. Suas pesquisas concentram-se no Brasil Império e na Primeira República, com ênfase nos temas da cidadania, do republicanismo e da história intelectual. Foi eleito para a Academia Brasileira de Ciências em 2003 e para a Academia Brasileira de Letras em 2004.
Carvalho analisa as elites políticas brasileiras do século XIX e o Império em geral. Utiliza a metáfora teatral para caracterizar o Império Brasileiro, considerando tanto o texto propriamente dito (o proscênio), quanto sua produção como autor e os debates que configuram a historiografia brasileira.
O autor estuda essa elite, sua composição e sua relação com os partidos políticos imperiais. Por meio de cenários, as ações se desenrolam na província, na corte, no espaço da política formal, nas instituições, no trabalho escravo e na política de terras. Por intermédio desses símbolos, Carvalho analisa, delineia e interpreta as ações dos diversos atores sociais, além de abordar a construção da ordem escravista e a unidade do Império.
Essas interpretações permitem ao autor compreender as complexas relações entre o Estado e a sociedade civil no Brasil. No Brasil do século XIX, a antiga colônia portuguesa evoluiu de maneira distinta das colônias espanholas, influenciando tanto o desenvolvimento futuro dos dois países quanto o de suas respectivas ex-colônias. Para Carvalho, compreender tal aspecto é essencial para desvendar a natureza do processo político brasileiro.
A obra reúne os textos que constituíram sua tese de doutorado, defendida na Universidade de Stanford, em 1974.
Em seu livro A Construção da Ordem, José Murilo de Carvalho apresenta um panorama das elites políticas no Brasil Imperial, utilizando também comparações com outros países para evidenciar as particularidades de nossa elite. O autor analisa como a elite ascendeu ao controle do poder desde a formação do Estado e sua permanência nesse espaço. Em outras palavras, investiga como se constituiu a elite brasileira a partir do fim do período colonial.
O Estado imperial, sob influência de sua elite, tornava-se simultaneamente um instrumento de manutenção e de transformação das estruturas sociais. Exigia-se a liberalização do Estado por meio da redução do controle sobre a economia, da descentralização e da abolição do Poder Moderador. Contudo, recorria-se ao mesmo Estado para lidar com questões como escravidão, imigração, contratos de trabalho, crédito agrícola e proteção à indústria. Essa intervenção inevitavelmente resultava no fortalecimento do poder estatal, o que, por sua vez, gerava novas e mais incisivas críticas à sua natureza não liberal. Essa dubiedade foi uma constante durante o período imperial.
Ao analisar o surgimento das elites, percebe-se que elas se comportavam em um ciclo de coerção e persuasão, em que uma parte optava pela coerção enquanto outra adotava a persuasão. Na Europa, as elites cresceram a partir da tensão entre a expansão do poder dos funcionários reais e os grupos sociais que demandavam representação política. O Estado moderno, então, desenvolveu-se junto às elites a partir da implosão da política. A maior burocratização, a jurisdição compulsória e a monopolização do uso legítimo da força foram alguns dos fatores que permitiram o surgimento do Estado moderno.
Esses fatores, já observados por Max Weber, são referenciados por José Murilo de Carvalho em sua obra.
O poder concentrado nas mãos dos monarcas, diminuindo o da Igreja e o da nobreza, foi substancial para a ascensão dos barões feudais. A criação de uma burocracia central, tanto civil quanto militar, e a formação de parlamentos, que possibilitaram a representatividade dos estamentos e, posteriormente, das classes, foram características marcantes na formação dos Estados, especialmente os parlamentares representativos, como os Estados Unidos e a Inglaterra. Em Portugal, por outro lado, o fortalecimento da burocracia central garantiu a permanência do absolutismo.
Nesses países, as transformações capitalistas no campo permitiram o grande enriquecimento e a participação política dos proprietários de terras. Na Inglaterra, por exemplo, esses aristocratas dominavam o parlamento e os postos ministeriais.
Com a queda da renda proveniente da terra, esses aristocratas passaram a investir em outros setores, como o industrial, formando uma aristocracia capitalista. Essa nova elite dedicou mais atenção ao governo, promovendo facilidades aos grupos industriais do país.
Um aspecto que favoreceu o desenvolvimento dessa elite foi a emergência das profissões liberais, especialmente a advocacia. Esses profissionais, em particular os advogados, contribuíram para dinamizar as atividades burocráticas. Em Portugal, a Universidade de Coimbra desempenhou um papel central na formação de juristas e magistrados que tiveram grande relevância na política portuguesa e, posteriormente, na brasileira.
Carvalho distingue que, nos países onde ocorreu uma revolução burguesa precoce, as elites políticas incluíam elementos da representação parlamentar. Em contraste, nos países com uma revolução burguesa retardada, como Portugal, as elites apresentavam um caráter mais burocrático.
A partir dos eventos históricos, como as revoluções que marcaram o século XX, observa-se que as elites predominantes em contextos de revoluções burguesas retardadas surgiram principalmente da burocracia civil e militar.
Para Carvalho, “a homogeneidade ideológica e o treinamento foram características marcantes da elite portuguesa, criatura e criadora do Estado absolutista” (p. 37).
Um contraste relevante é que, nas colônias espanholas, permitiu-se desde cedo a implementação de universidades em seu território, enquanto, em Portugal, havia o receio de que isso reduzisse sua influência política no Brasil.
Assim, a formação da elite brasileira foi, em grande medida, uma reprodução do modelo português. No entanto, Portugal passou a limitar os poderes dos barões, o que não foi possível no Brasil devido ao valor e à extensão das terras brasileiras, o que fomentou um forte patriarcalismo. No Brasil, uma “modernização conservadora” revelou-se particularmente difícil, pois, como demonstra o autor, a elite, para implantar sua economia industrial, precisou aliar-se a elementos mais retrógrados da sociedade, de forma a viabilizar suas reformas.
A sociedade auxiliadora da indústria nacional, que produzia basicamente alimentos agrícolas e não bens industriais propriamente ditos, não teve força suficiente para influenciar as decisões do país. Outro grupo que também não se enquadrava como elite era composto pelos industriais, cujos membros, apesar de alguns ocuparem cargos políticos, não possuíam poder significativo para pressionar o governo em defesa de seus interesses.
O coronelismo surgiu, então, como uma solução política. Trata-se de um sistema baseado em trocas entre o governo e os coronéis: o governo estadual garantia o poder dos coronéis sobre seus dependentes e rivais, concedendo-lhes também o controle de cargos públicos. Em contrapartida, os coronéis ofereciam apoio político aos governadores, principalmente por meio de votos. Os governadores, por sua vez, apoiavam o presidente da República, que retribuía reconhecendo o domínio de cada governador em seu respectivo Estado. Esse sistema, ao menos teoricamente, foi encerrado com a implementação do Estado Novo, mas ressurgiu durante o regime militar, quando a relação entre o governo federal e os municípios passou a sobrepor-se à autoridade dos governadores.
O coronelismo resultou de uma alteração na dinâmica de forças entre os proprietários rurais e o governo.
As Capitanias Hereditárias eram instituições legitimamente feudais. O feudalismo dominou os três primeiros séculos da história nacional, durante os quais o Estado desempenhava um papel limitado, funcionando apenas como coletor de impostos. O Estado era, de certa forma, privatizado, agindo em função dos interesses da classe proprietária.
No que se refere ao sistema político implementado, nos países oriundos das ex-colônias espanholas, predominava a anarquia e a ausência de organização do poder. Essas nações eram organizadas principalmente por lideranças de caráter caudilhesco, cujas bases de legitimidade eram incertas e instáveis. Já nos países oriundos da ex-colônia portuguesa, como o Brasil, procurou-se evitar instabilidades e rebeliões. Havia uma maior ênfase na preservação da ordem, sem mudanças frequentes no governo, irregularidades ou violência, o que contribuiu para a manutenção da supremacia do governo civil.
A relação entre o poder local e o poder nacional, segundo Carvalho, vai além de discussões meramente conceituais. Para ele, essa questão se transforma em um problema de análise, pesquisa e conceituação.
Quanto à educação brasileira, ela começou a desempenhar um papel na formação de uma ideologia nacionalista. Iniciava-se o processo que Portugal tanto temia: o isolamento de seus interesses em relação ao Brasil. Como descreve Carvalho:
“A turma de 1866 da escola de São Paulo incluía Castro Alves, o poeta abolicionista e de tendências republicanas; Joaquim Nabuco, futuro deputado, líder Abolicionista e monarquista convicto; Afonso Pena, futuro ministro no império e futuro presidente da república; Rui Barbosa, futuro deputado no império, líder liberal e ministro republicano; Rodrigues Alves, futuro deputado no império e depois presidente da república e Bias Fortes, um dos principais políticos de minas gerais na república”. (p.83).
Muitos dos formados no Brasil participaram de movimentos ou ações, como a Inconfidência Mineira e outros eventos semelhantes. No entanto, a elite brasileira começou a enfrentar outro problema: muitos desses formados não encontravam emprego, uma vez que a maioria das vagas disponíveis estava vinculada a cargos públicos. Esse cenário começou a abalar a coesão e a homogeneidade da elite.
Além da educação já mencionada, era necessária uma ocupação que trouxesse bens materiais e melhores direcionamentos para os negócios da elite. Essa ocupação, frequentemente ligada ao governo, funcionava como uma forma de "representar" a sociedade. Carvalho observa que a economia agrário-exportadora-escravista não favorecia uma maior divisão do trabalho, o que limitava a diversidade de empregos disponíveis.
O setor urbano, por sua vez, era dominado pelas atividades terciárias, especialmente devido ao crescimento das profissões liberais, cada vez mais presentes no país. As pessoas com ensino superior no Brasil representavam apenas 0,3% da população economicamente ativa e 0,1% da população total. Esses números explicam, em parte, a dominação exercida pela elite sobre uma sociedade majoritariamente analfabeta. Como afirma Carvalho, “o Estado era o maior empregador dos letrados que ele mesmo formava”, o que resultou em uma estreita ligação entre a elite política e a burocracia estatal.
Carvalho divide os principais grupos profissionais do país em três categorias:
O grupo do governo, que incluía políticos e magistrados;
O grupo das profissões, formado por profissionais liberais, como médicos, jornalistas e engenheiros;
O grupo dos economistas, composto por proprietários de terras, banqueiros e comerciantes.
Entre os bacharéis, os advogados foram os que mais ganharam destaque na esfera política, ao contrário dos militares, cuja participação diminuiu significativamente, especialmente após a Guerra do Paraguai.
A elite brasileira, inicialmente marcada por seu caráter burocrático, foi gradualmente se tornando mais liberal, em grande parte devido à disseminação do ensino superior. Essa elite passou, então, a apresentar uma maior coesão e homogeneidade em sua composição.
No Império, a Guarda Nacional foi a principal instituição patrimonial que conectou os proprietários rurais ao governo. Criada durante o período da Regência, as autoridades patrimoniais serviam gratuitamente, atuando como delegados de polícia e membros da Guarda Nacional. Além disso, arcavam com os custos de suas fardas. Nesse contexto, a justiça estava concentrada nas mãos de poucos. As eleições eram realizadas dentro das igrejas, que também davam seu aval ao sistema.
Com o declínio do patrimonialismo, ocorreu a transição para a burocracia estatal, processo já iniciado no período imperial. Na República, a manutenção da ordem passou a ser de natureza burocrática, exemplificada pela criação de delegados e pelo fortalecimento do funcionalismo público. Nesse cenário, as polícias militares substituíram a Guarda Nacional, a separação entre Igreja e Estado foi efetivada, e o registro civil foi implementado. O coronelismo emergiu como uma resposta ao recuo do patrimonialismo e ao avanço da burocracia. Até hoje, há uma relação perceptível entre patrimonialismo, corporativismo e autoritarismo, marcada por alianças entre clientelismo e corporativismo, bem como entre clientelismo e populismo.
A elite política que assumiu o poder no Brasil após a Independência apresentava características marcantes de unidade ideológica e treinamento que, segundo informações disponíveis, não eram observadas nas elites de outros países. Isso se deve, principalmente, à política de formação de elites promovida pelo Estado português. O núcleo da elite brasileira, pelo menos até meados do século XIX, era composto majoritariamente por burocratas, especialmente magistrados, formados sob as tradições do mercantilismo e do absolutismo portugueses. A educação em Coimbra, a influência do direito romano, as ocupações burocráticas e os mecanismos de treinamento contribuíram para moldar essa elite, que consolidou o Estado imperial com um consenso básico em torno de opções políticas fundamentais. Por sua formação, ocupação e treinamento, a elite brasileira era completamente não representativa da população do país. Ela também não refletia as divergências ou a falta de articulação dos diferentes setores da classe dominante, embora não representasse interesses que fossem radicalmente opostos aos desses setores.
O ponto crucial dessa questão era a relação entre o Estado imperial e a agricultura de exportação baseada no trabalho escravo. Independentemente da composição da elite política, o Estado não poderia se sustentar sem a agricultura de exportação, responsável por 70% das receitas do governo-geral. Não se pode falar de um Estado separado e dominando a nação, pois a manutenção da ordem no interior dependia diretamente da colaboração dos grandes proprietários de terra. A elite política, especialmente os magistrados, precisava negociar com os proprietários para alcançar um arranjo que, embora longe de ser justo, permitisse ao menos uma aparência de ordem. A criação da Guarda Nacional e de serviços de natureza litúrgica teve esse caráter de barganha.
Os proprietários brasileiros eram, ao mesmo tempo, produtores e homens de negócio, o que os impedia de se dedicar integralmente às tarefas de governo. A ausência de estamentalização dificultava a coesão dessa classe, que também não era favorecida pela dependência do mercado externo. Apenas em raros momentos, quando estavam em jogo interesses básicos, como a propriedade da terra e dos escravos, esses proprietários conseguiam se unir em uma frente única.
Da conjunção desses fatores resultava que o Estado e a elite que o dirigia não podiam, por um lado, prescindir do apoio político e das rendas geradas pela grande agricultura de exportação. Por outro lado, encontravam-se relativamente livres para contrariar os interesses dessa mesma agricultura quando era possível formar alianças com outros setores agrários.
Após a proclamação da República, a elite política brasileira continuou representando pouco a sua população, que, em grande parte, permanecia com acesso extremamente limitado à educação. Essa desigualdade educacional impedia a população de ter uma formação equivalente à dos filhos da elite, o que perpetuava a hegemonia dessa classe dominante. Embora Murray Rothbard, em Educação: Livre e Obrigatória, argumente que a educação compulsória determinada pela elite no poder nunca é libertadora, a estrutura educacional brasileira consolidou-se como um instrumento de manutenção do status quo.
Carvalho, dessa forma, permite uma compreensão profunda da formação de nossa elite. A partir dessa análise, torna-se possível entender como essa elite ainda se manifesta na atualidade e em diferentes aspectos de nossa sociedade.
REFERÊNCIA
CARVALHO, José Murilo de, A Construção da Ordem: a elite política. Teatro das Sombras: a política imperial. 5ª edição – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.
ROTHBARD, Murray. Educação: Livre e Obrigatória. 1ª edição – São Paulo: Instituto Mises do Brasil, 2014.