O surgimento da Lei 9.299/96, que veio retirar do julgamento da Justiça Militar o crime doloso contra a vida de civil, trouxe muita controvérsia e discussão no meio jurídico sobre sua inconstitucionalidade. Acontece que, com o surgimento da Emenda Constitucional nº 45, muitos se ergueram afirmando que, em relação à Justiça Militar dos Estados, estaria sanada a inconstitucionalidade; não sendo essa a melhor visão, a alteração do texto constitucional veio confirmar a inconstitucionalidade da Lei 9.299/96.
A Lei 9.299/96 surgiu como a receita perfeita para o desastre, já que a mesma foi elaborada após surgirem casos envolvendo policiais militares em situações que ficaram conhecidas como chacinas. Diante disso, nossa mídia, com informações inconsequentes e manipuladoras, incute no imaginário popular que a Justiça Militar é corporativista e que os militares são contemplados com absolvições pelos seus pares. Frente a isso, cresce a pressão popular. Tomados por esse ímpeto, nossos legisladores, que cada dia mais se apresentam desastrosos em sua missão legislativa, criam uma lei incongruente, transferindo competência constitucional por meio de lei ordinária e fazendo isso muito mal feito; e, diga-se de passagem, os dados apontam que a Justiça Militar era mais dura nos julgamentos dos militares do que o Tribunal do Júri.
Muitos desavisados e desconhecedores da Justiça Militar dizem ser a mesma um tribunal de exceção, seja por desconhecer a matéria, ou até mesmo por desconhecer sua própria constituição. Já que a Justiça Militar é legalmente constituída no texto constitucional, em seu art. 124 e 125, §§ 4º e 5º, possui como julgadores, não só militares, mas também um juiz de direito que foi aprovado mediante concurso público como qualquer outro magistrado de outra Justiça. Na Justiça Militar do estado, por ordem constitucional, o civil não pode ser julgado, e quando a vítima do crime é civil, o juiz de direito julga de forma monocrática, sem a presença dos juízes militares.
Antes de saber por que a Emenda Constitucional nº 45 veio confirmar a inconstitucionalidade da Lei 9.299/96, é preciso saber se o crime doloso contra a vida de civil continua a ser crime militar ou crime comum. Quem entende que o crime continua a ser militar inevitavelmente vai ter que entender que o parágrafo único do artigo 9º é inconstitucional.
Então vejamos por que o crime é militar, e aqui veremos por que nosso legislador vai muito mal em sua missão legiferante. A mesma Lei que mudou o parágrafo único do artigo 9º do CPM trouxe a seguinte redação no Código de Processo Penal Militar.
Art. 82. O foro militar é especial, e, exceto nos crimes dolosos contra a vida praticados contra civil, a ele estão sujeitos, em tempo de paz:
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§ 2° Nos crimes dolosos contra a vida, praticados contra civil, a Justiça Militar encaminhará os autos do inquérito policial militar à justiça comum.
Fica claro que a lei que alterou o artigo 9º do CPM não teve a intenção de tirar a natureza de militar do crime doloso contra a vida de civil, já que a mesma lei alterou o CPPM e diz que a investigação vai se dar por meio de inquérito policial militar, investigação que seria impossível de acontecer por meio de IPM se o crime tivesse natureza comum, por proibição até mesmo constitucional.
Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos:
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§ 4º Às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares.
A própria Constituição deixa claro que compete à polícia civil apurar infrações penais, exceto as militares; portanto, se o crime doloso contra a vida de civil deixa de ser militar, não poderia ser feito por IPM.
O Código de Processo Penal Militar também delimita que a polícia judiciária militar é para apurar crime militar e não comum.
Art. 8º Compete à Polícia judiciária militar:
a) apurar os crimes militares, bem como os que, por lei especial, estão sujeitos à jurisdição militar, e sua autoria;
Por uma análise mais apurada da própria legislação pátria e da mesma Lei que mudou o Código Penal Militar e o de processo penal militar, a natureza do crime militar não foi retirada.
“Em que pese ser considerado crime militar (previsto no CPM), a Lei nº 9.299/96 deslocou a competência para o Tribunal do Júri, com a assumida intenção de subtrair do julgamento da Justiça Militar do Estado.” (Lopes Jr., 2016, pág. 270) Grifos Nossos.
“Pelo que até aqui se aduziu, conclui-se que, na esfera estadual, o crime doloso contra a vida de civil continua ser crime militar, havendo, porém, a competência de julgamento pelo Tribunal do Júri.” (Neves; Streifinger, 2012, pag. 345) Grifos Nossos.
Não resta dúvida de que o crime doloso contra a vida de civil é crime militar e, no que pese a Justiça Militar possuir competência constitucional, tentou uma lei ordinária suprimi-la. Já que a Constituição diz que compete à Justiça Militar processar e julgar os crimes militares definidos em lei, sendo que a lei que define os crimes militares é o artigo 9º, para o legislador suprimir o julgamento da Justiça Militar teria ele que definir que o crime doloso contra a vida de civil deixou de ser crime militar e não transferir competência, como fez.
Art. 9º Consideram-se crimes militares, em tempo de paz:
.......................
Parágrafo único. Os crimes de que trata este artigo, quando dolosos contra a vida e cometidos contra civil, serão da competência da justiça comum." Grifos Nossos.
A inconstitucionalidade do texto era tamanha que, apenas 14 dias após a aprovação da Lei 9.299/96, surgiu o Projeto de Lei 2.314/96, em que o então Ministro da Justiça, Nelson Jobim, trouxe, em sua exposição de motivo, pontos relevantes na flagrante inconstitucionalidade; alguns deles vale a pena reproduzir.
“7. Assim, o projeto de lei que ora encaminho a Vossa Excelência objetiva, em suma, corrigir defeitos evidentes da Lei nº 9.299, de 1996, os quais passarei, de maneira breve, a apontar.”
“9. Ora, a Constituição Federal é de clareza cristalina: compete à Justiça Militar processar e julgar os crimes militares definidos em lei, nos termos de seu art. 124”
“10. Como admitir-se, então, a nova lei, se a inconstitucionalidade é um vicío insanável?”
Eis que surge a Emenda Constitucional 45, alterando o § 4º do artigo 125 da CF/88. Ao contrário do que muitos afirmaram, que a inconstitucionalidade do parágrafo único do artigo 9 foi sanada, tal alteração restou clara: o referido parágrafo é inconstitucional e o crime doloso contra a vida de civil nunca deixou de ser militar e não tem por que ser julgado pela justiça comum.
Assim diz o artigo constitucional em relação à Justiça Militar do Estado:
Art. 125 ......
..................
§ 4º Compete à Justiça Militar estadual processar e julgar os militares dos Estados, nos crimes militares definidos em lei e as ações judiciais contra atos disciplinares militares, ressalvada a competência do júri quando a vítima for civil, cabendo ao tribunal competente decidir sobre a perda do posto e da patente dos oficiais e da graduação das praças. Grifos Nossos
Ora, o texto constitucional fala em Tribunal do Júri, e esse não se confunde com juiz sumariante, até mesmo porque o Juiz de Direito da vara comum não detém competência para decidir e julgar sobre crime militar, e, como não resta dúvida, o crime doloso contra a vida de civil ainda é crime militar.
A própria Constituição traz a ideia norteadora de Tribunal do Júri, e o mesmo vem elencado no título dos direitos e garantias fundamentais, trazendo com isso inclusive algumas vozes que se ergueram para sustentar que o júri não fazia parte do Poder Judiciário, sendo entendimento minoritário; mais o que importa é que o júri não pode ser confundido com o juiz de direito que faz a primeira fase e, ao final, dá a sentença, seja ela de pronúncia, impronúncia, desclassificação ou absolvição.
A Constituição tratando sobre a matéria do Tribunal do Júri traz a seguinte ideia:
Art. 5º................
XXXVIII - é reconhecida a instituição do júri, com a organização que lhe der a lei, assegurados:
a) a plenitude de defesa;
b) o sigilo das votações;
c) a soberania dos veredictos;
d) a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida;
Em momento algum a Constituição proibiu ou suprimiu o Tribunal do Júri da Justiça Militar, trazendo apenas os princípios norteadores que a lei que for regular a matéria sobre o Tribunal do Júri precisa respeitar e seguir.
O Tribunal do Júri é a instituição mais democrática que existe hoje no Brasil, onde sete do povo analisam o caso e julgam um dos seus, independente de aprovação em concurso público, indicação política, etc.
Ficou claro que o crime doloso contra a vida de civil continua a ser crime militar e, como tal, não pode ser julgado pela justiça comum. A EC 45, muito longe de afirmar a constitucionalidade do parágrafo único do artigo 9 do CPM, de fato afirma que apenas quer que, no caso específico, o fato seja julgado por um Tribunal do Júri, tribunal esse que não existe óbice de ser criado na Justiça Militar do estado.
Além do mais, na Justiça Militar do estado, o crime doloso contra a vida de civil é julgado de forma monocrática por um juiz de direito por determinação constitucional, não existindo margem para qualquer argumento de corporativismo. E, ao final, caso entenda-se o juiz de direito pelo dolo no crime, colocaria o feito a julgamento perante o tribunal popular, trazendo com isso celeridade processual e solução a controvérsias sobre qual juiz decide sobre pedidos feitos no IPM, qual juiz deve fazer a pronúncia e tantos outros.
Art. 125.
§ 5º Compete aos juízes de direito do juízo militar processar e julgar, singularmente, os crimes militares cometidos contra civis e as ações judiciais contra atos disciplinares militares, cabendo ao Conselho de Justiça, sob a presidência de juiz de direito, processar e julgar os demais crimes militares. Grifos Nossos.
Sem sombra de dúvidas, o julgamento pelos crimes dolosos contra a vida de civil, da forma que vem sendo feita hoje, fere o princípio do juiz natural, fazendo com que um juiz de vara crime comum aprecie e decida um crime militar, o que é vedado pela própria Constituição e não poderia ser alterado por lei ordinária.
Além do mais, existe um grande problema, já que, se o crime continua a ser crime militar, o acusado precisa ser processado e julgado pelo artigo 205 do Código Penal Militar e não pelo artigo 121 do Código Penal. Tal fato vai trazer reflexo na fase de execução, já que o artigo 205 do Decreto-Lei 1.001/1969 não está listado no rol dos crimes hediondos, além do crime de homicídio do CPM ter sua qualificadora própria, como a constante no inciso VI, prevalecendo-se o agente da situação de serviço.
A solução mais adequada para solucionar o problema na Justiça Militar do estado seria o Congresso Nacional incluir no Código de Processo Penal Militar o capítulo sobre o Tribunal do Júri, ou então todo o procedimento ser feito perante a vara da Justiça Militar do estado e o juiz aplicar o artigo 3º, alínea “a”, do Código de Processo Penal Militar, frente à omissão do código quanto ao rito do júri e se utilizar da legislação processual penal comum, fazendo com que exista celeridade processual, não seja lesado o princípio do juiz natural, e também não se sustentaria a falaciosa argumentação de corporativismo.
Bibliografia
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del1001Compilado.htm
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del1002.htm
https://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=17941
Manual de direito penal militar/ Cícero Robson Coimbra Neves, Marcello Streifinger.-2. Ed.- São Paulo: Saraiva, 2012
Direito Processual Penal/ Aury Lopes Jr.- 13ª Ed. Saraiva, 2016