IV - AS RELAÇÕES JURÍDICAS: ASSOCIADO, EMISSOR,
ESTABELECIMENTO, OPERADORA.
No magistério do mestre Waldirio Bulgarelli, "entre o
banco e o titular do cartão entende-se, entre nós, que há um contrato
inominado, misto, de abertura de crédito e de prestação de serviços", e
complementa que "no Brasil, intervém no contrato-tipo não o banco
diretamente, mas a chamada empresa emissora. Trata-se em regra de uma sociedade
jurídica autônoma, embora ligada e dependente, em termos de grupo, direta ou
indiretamente, dos bancos que patrocinam o cartão" (Contratos Mercantis,
pág. 678). Da utilização do cartão de crédito extraem-se quatro
relações jurídicas distintas, cada qual interligada entre si. A primeira, que
pode ser classificada como direta, estabelece-se entre o associado e a empresa
emissora do cartão de crédito. Nela, considerando o estipulado no contrato de
adesão, permanece o emissor responsável pelo pagamento das transações
procedidas com o cartão pelo associado, até o quantum do limite de
crédito contratado, pagando, para tanto, uma taxa anual para manutenção do
sistema creditício. A segunda relação é firmada entre o emissor e o
estabelecimento comercial (fornecedor de bem ou serviço). O Banco ou empresa
administradora do cartão de crédito, diretamente ou por meio de empresa
terceirizada, se responsabiliza pelo pagamento das despesas realizadas pelos
associados nas lojas credenciadas. Tal procedimento acaba por dificultar
sobremaneira a as eventuais reclamações feitas por associados relativas aos
produtos adquiridos, pois, como bem observa Nelson Abrão, "o portador não
pode se opor a que o emissor pague o fornecedor", não podendo ele também
"se recusar a reembolsar o emissor alegando as exceções que teria contra
o fornecedor" (curso de Direito Bancário, 1988, pg. 114). A outra relação jurídica decorrente do uso do cartão de
crédito é aquela entre o associado e o estabelecimento comercial, sendo que
esta não perde a sua característica essencial de compra e venda de bens ou
serviços apenas pelo fato do meio utilizado para pagamento ter sido o cartão
de crédito. Permanece, pois, como um contrato escrito ou verbal. Há, ainda, a relação eventualmente instituída entre o
emissor e uma empresa operadora ou, em se tratando de empresa não bancária,
financiadora. A operadora é responsável pela organização do sistema como
intermediária, devendo zelar pela captura, transmissão, processamento e
liquidação das transações procedidas com cartões de crédito, e a ela está
incumbida a função de filiar estabelecimentos comercias que comprometer-se-ão
a aceitar os cartões sem efetuar acréscimos nos preços. Em contraprestação,
receberá uma comissão dos estabelecimentos que pode variar entre 5 e 10% sobre
o valor da transação. Por sua vez, casos há em que o emissor não é uma
instituição financeira, restando impedido de concretizar financiamentos com
recursos próprios. Como decorrência, insere-se no sistema contratual do
cartão uma empresa financiadora, que fornecerá o crédito necessário para
manutenção da atividade econômica. Atualmente, apenas algumas poucas empresas
socorrem-se desse artifício para obter crédito, já que a maioria dos cartões
de crédito em circulação é do tipo bancários. Apesar do cartão de crédito ser, no entendimento de
Waldirio Bulgarelli, um negócio jurídico integrado por vários contratos,
estes se unificam "pela finalidade proposta: permitir que o consumidor
adquira de imediato, em determinados estabelecimentos comerciais ou de
serviços, os bens e serviços de que necessita (…), fazendo-se necessária
uma regulamentação abrangendo as ligações entre esses contratos, e
conferindo, assim, legislativamente, a unidade que vem sendo imperfeitamente
configurada pelos ajustes obrigacionais" (Contratos Mercantis, pág.
679/680). A Lei n. º 8.078, de 11 de setembro de 1990, mais conhecida
como Código de Defesa do Consumidor, é uma conquista recente, e não obstante
seus dez anos de vigência, já serviu de modelo para proteção do mercado
capitalista até mesmo em outros países, como a Holanda. Nasceu como projeto de lei a ser elaborado pelo Conselho de
Defesa do Consumidor, constituído antes da promulgação da Constituição de
1988, para amparar integralmente o consumidor dos malefícios advindos da
sociedade de consumo moderna, principalmente na relação estabelecida junto ao
fornecedor de produtos e serviços, já que este adquiriu, ao longo dos anos, o
posicionamento de parte mais forte. Tinha em vista o legislador, pois, ao elaborar o projeto de
lei que se tornaria a codificação das normas de consumo, contrabalançar a
relação estabelecida entre consumidor e fornecedor, cumprindo desta maneira o
previsto no art. 5º, XXXII, da Carta Magna: "o Estado promoverá, na forma
da lei, a defesa do consumidor". Até por isso, cuidou de definir o que é
consumidor (art. 2º), fornecedor (art. 3º), produto (art. 3º, § 1º) e
serviços (art. 3º, § 2º). Todavia, como tudo o que é novo, demorou algum tempo para
que os juristas apreendessem claramente o objetivo e o conteúdo do Código de
Defesa do Consumidor, e até hoje a maior dificuldade vem sendo quanto à sua
aplicabilidade ou não nos processos interpostos ante o Judiciário. Aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor As relações entre usuários de cartão de crédito com as
empresas administradoras e instituições financeiras passaram a chamar a
atenção dos juristas brasileiros há pouco tempo, haja vista a rapidez com que
foi implementado na sociedade de consumo, bem como a maciça divulgação e
propaganda do produto e, conseqüentemente, a falta de regulamentação legal
ante os novos problemas que lhes estavam sendo apresentada. Isto porque a novidade trouxe consigo, como bem ilustrou o
mestre Waldirio Bulgarelli em sua obra Contratos Mercantis, "uma operação
que se efetiva através de assinatura pelo beneficiário de um impresso
contendo, em letras minúsculas, as condições do negócio, e que, portanto, é
um segmento importante do chamado direito do consumidor" (pág. 666). Fato é que o próprio Código de Defesa do Consumidor não
tratou de modo específico acerca do sistema de cartão de crédito e dos
eventuais problemas que poderiam sobrevir, existindo, por conseguinte, a
necessidade de uma regulamentação específica da matéria, já que a própria
jurisprudência não tem se mostrado em uníssono. Neste sentido, há se
ressaltar com louvor a iniciativa do Instituto dos Advogados do Brasil, que
elaborou um projeto de regulamentação acerca da matéria, visando proteger
principalmente o interesse do consumidor. Nos dias de hoje, a jurisprudência dominante é no sentido
de que o Código de Defesa do Consumidor é aplicável a todas as operações
bancárias, como comprova o entendimento unânime da Quarta Turma do Superior
Tribunal de Justiça ao julgar o recurso especial de um banco contra devedores
de financiamento de imóvel, em ação de revisão contratual fundada em
correções abusivas após a alteração da moeda para o Real. Logo em primeira instância foi decidida a aplicabilidade do
Código de Defesa do Consumidor no contrato sub examine, acarretando em
nulidade da cláusula que versava sobre a autorização irrevogável para o
débito das prestações mensais em conta corrente, redução da taxa de juros
para 12% ao ano e a multa, que era de 10% para 2%, manutenção da atualização
mensal pela caderneta de poupança, e aplicação de juros moratórios de 1% ao
ano. Em recurso dirigido ao Superior Tribunal de Justiça, que foi
acolhido em parte, o relator do processo, ministro Barros Monteiro, asseverou
que em se tratando "de mutuário que se dirigiu ao estabelecimento
bancário a fim de obter financiamento para aquisição de bem imóvel, na
qualidade, pois, de consumidor final, os bancos ficam submetidos ao Código de
Defesa do Consumidor, como prestadores de serviços". Apesar desse
posicionamento, o relator não se olvidou da jurisprudência consolidada pelo
Superior Tribunal de Justiça e pelo Supremo Tribunal Federal, de que a taxa de
juros de 12% ao ano limitada pela Lei de Usura não seria aplicável às
operações provenientes de instituições financeiras. Compartilhando do mesmo entendimento do eminente relator, o
ministro César Rocha salientou: "O CDC incide sobre todas as relações e
contratos pactuados pelas instituições financeiras e seus clientes, e não
apenas na parte relativa à expedição de talonários, fornecimento de extratos,
cobrança de contas, guarda de bens e outros serviços afins. As relações
existentes entre os clientes e o banco apresentam nítidos contornos de uma
relação de consumo". Depreende-se, portanto, que, em sendo o cartão de crédito
um produto quase em sua integridade bancário, salvo aqueles emitidos por
administradoras autônomas, as normas contidas no Código de Defesa do
Consumidor são aplicáveis em suas operações e regulamentações. Antes de analisar propriamente o Termo de Ajustamento e
Conduta firmado entre o Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor da
Secretaria de Direito Econômico do Ministério da Justiça e as Associadas da
ABECS – Associação Brasileira das Empresas de Cartões de Crédito e
Serviços, necessário se faz um breve relato de alguns de seus antecedentes. Em 13 de março de 1998, a Secretaria de Direito Econômico,
na atribuição de suas funções legais, editou a Portaria SDE n. º 004, em
aditamento ao elenco do art. 51 da Lei n. º 8.078/90, e do art. 22 do Decreto
n. º 2.181/97, com o fim de orientar o Sistema Nacional de Defesa do Consumidor
quanto à determinação de cláusulas abusivas relativas ao fornecimento de
produtos e serviços. Restaram nulas de pleno direito, dentre outras, as
cláusulas contratuais que estabeleciam cumulativamente a cobrança de comissão
de permanência e correção monetária e as que permitiam ao fornecedor emitir
títulos de crédito em branco ou livremente circuláveis por meio de endosso na
representação de toda e qualquer obrigação assumida pelo consumidor. No mês de junho do mesmo ano de 1998, a Secretaria de
Direito Econômico instaurou o Processo Administrativo n. º 08000.022668/96-44
contra várias empresas emissoras de cartões de crédito. Muitas foram as
alegações feitas pelo Órgão, dentre elas, remessa de cartões aos
consumidores sem prévia solicitação, existência nos contratos de cláusulas
mandatos, constatação de desvantagem excessiva, etc. Outro Processo Administrativo, desta vez de n. º
08012.006629/98-69, foi instaurado em 13 de outubro de 1998 pela Secretaria de
Direito Econômico contra algumas empresas emissoras de cartão de crédito.
Neste, fora declarada nula de pleno direito, com fulcro na Lei n. º 8.078/90
regulamentada pelo Decreto n. º 2.181/97, suspendendo seus efeitos, a cláusula
mandato, bem como as demais cláusulas que: Nesse contexto foi firmado o Termo de Compromisso de
Ajustamento de Conduta em 02 de Dezembro de 1998 entre o Departamento de
Proteção e Defesa do Consumidor da Secretaria de Direito Econômico do
Ministério da Justiça e as Associadas da ABECS – Associação Brasileira das
Empresas de Cartões de Crédito e Serviços, em decorrência da grande
quantidade de procedimentos administrativos oriundos de reclamações feitas
pelos associados no tocante ao comportamento na comercialização do cartão de
crédito e seus serviços, bem como à regulamentação prevista nos
Instrumentos de Contratos utilizados pelas Instituições Financeiras e
Administradoras. Teve por objeto manter, preservar, estabelecer e proteger as
relações de consumo relativas à emissão e uso de cartões de crédito,
porém, para melhor entendimento, preliminarmente faz-se indispensável tecer
algumas considerações. Independente da maneira com o qual o cartão de crédito é
adquirido, o associado, ao aderir ao respectivo contrato, não tem prévia
ciência das cláusulas que irão reger a relação junto ao emissor, uma vez
que o Contrato somente é encaminhado por ocasião da emissão do plástico. Por certo, muitas dessas reclamações seriam evitadas se o
emissor remetesse a cópia do contrato ao futuro associado no momento em que
houvesse a autorização expressa para emissão de cartão de crédito, o que
não é feito. Ainda, há vezes em que o cartão de crédito é emitido ao
associado sem que este tenha autorizado expressamente ou solicitado o produto em
decorrência de seu interesse. Esse comportamento, como também algumas cláusulas inseridas
nos Contratos de cartão de crédito, foi apontado pelo Departamento de
Proteção e Defesa do Consumidor, após análise dos procedimentos
administrativos, como abusivas, considerando disposições da Lei n. º 8.078,
de 11 de setembro de 1990, regulamentada pela Lei n. º 2.181, de 20 de março
de 1997. Diante disso, e permitindo a Secretaria de Direito Econômico
o ajustamento de conduta, haja vista a fase em que se encontravam os aludidos
procedimentos administrativos, restou firmado o Termo de Compromisso de
Ajustamento de Conduta. Nele, comprometeram-se as Associadas da ABECS a: Quanto a este último ponto, claro está que os emissores
deverão informar ao menos uma vez, que poderá ser na remessa do Contrato ou
nos extratos e faturas mensais, as denominações dos itens que compõem o custo
do financiamento, pois só assim o consumidor terá plena ciência do que
eventualmente lhe será cobrado, não podendo escusar-se posteriormente de falta
de conhecimento dos índices aplicados.
V - O CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR
VI - O TERMO DE COMPROMISSO DE AJUSTAMENTO DE CONDUTA
O contrato de cartão de crédito à luz do Código de Defesa do Consumidor
Exibindo página 2 de 4Advogada/São Paulo
BRUNNER, Thais. O contrato de cartão de crédito à luz do Código de Defesa do Consumidor. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 287, 20 abr. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5079. Acesso em: 28 dez. 2024.
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