Reflexões jurídicas sobre a constitucionalidade da vaquejada no Brasil

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O debate sobre a constitucionalidade ou não de lei cearense que visa regulamentar o esporte naquele Estado está pendente de julgamento no STF. Até a presente data (19/07/2016) quatro ministros são favoráveis à procedência da ADI e quatro são contra.

Introdução

A vaquejada é um esporte tradicionalmente nordestino que tem dois principais elementos: o boi e o vaqueiro. A ideia é o vaqueiro, montado em um cavalo, derrubar o boi entre duas faixas, no final de um corredor de areia, de modo que se fizer isso, o vaqueiro acumulará pontos e pode se tornar o vencedor do "bolão" de apostas ou do prêmio que é reservado ao vencedor.

A vaquejada traz nas origens o trabalho de vaqueiros ao resgatar o gado que se desgarrava do rebanho e adentrava as caatingas da região. O intuito era trazer de volta o gado desgarrado ao rebanho e/ou às fazendas. Para entrar nos campos de caatinga - vegetação típica do nordeste semiárido, composta por plantas com galhos secos e pontiagudos, muitos deles com espinhos - os vaqueiros costumavam vestir uma indumentária que acabou por se tornar um dos símbolos do sertanejo nordestino (vaqueiro) e um dos símbolos da vaquejada: o gibão de couro. Trata-se de um conjunto composto por casaco, calça, chapéu e sandálias confeccionados com puro couro, que veste o vaqueiro dos pés a cabeça e que o protege dos espinhos e galhos secos das matas fechadas nas caatingas da região.

É, sem dúvida, um dos principais esportes do nordeste semiárido, responsável por movimentar a economia de muitas cidades da região, ao atrair pessoas para seus eventos, por dois principais motivos: um motivo maior e outro menor. O motivo maior é a festa que geralmente acompanha a competição esportiva. As maiores bandas da região, principalmente as de forró estão presentes no evento, atraindo multidões para os seus shows. Os shows são geralmente a noite, após a competição esportiva. Muitas pessoas (a grande maioria) só aparecem no evento, neste momento. O outro motivo, menor, é o próprio evento esportivo. Há pessoas que se dirigem ao local para acompanhar o esporte, por si só, e a competição a ele inerente.

Recentemente o Supremo Tribunal Federal (STF) tem discutido a constitucionalidade de uma lei do Estado do Ceará que visa regulamentar o esporte e no âmbito destes debates voltou à tona a discussão sobre a constitucionalidade do próprio esporte (que atinge, por sua vez a proposta de regulamentação do mesmo por meio da referida lei), uma vez que haveria violação ao artigo 225, §1º, inciso VII da Constituição Federal de 1988.

É sobre esta questão, da constitucionalidade ou não, do esporte em questão que nos debruçaremos nas próximas linhas.

1. Origens da vaquejada

A vaquejada é um esporte muito comum na região Nordeste do Brasil. Sobre sua história, segundo o Portal Vaquejada (2016), em meados da década de 1940, mas sem registros precisos de data, a corrida de mourão começou a se tornar um esporte popular na região Nordeste, na medida em que os vaqueiros das fazendas do sul da Bahia ao norte do Ceará, começaram a tornar público suas habilidades e de seus cavalos na lida com o gado. O rebanho, criado solto na caatinga e no cerrado, era manejado pelo sertanejo com muita dificuldade, devido a quantidade de espinhos e pontas de galhos secos que entrelaçavam seu caminho; os laços quase sempre ficavam atados às selas enquanto os vaqueiros faziam verdadeiros malabarismos, com o animal em movimento, para escapar dos arranhões e derrubar, pelo rabo, o animal que estivesse precisando de alguma assistência. Com o passar do tempo as montarias, que eram basicamente formadas por cavalos nativos daquela região, foram sendo substituídas por animais de melhor linhagem. O chão de terra batida e cascalho, companheiro dos peões aboiadores "de sol a sol", deu seu lugar a uma superfície de areia, com limites definidos e um regulamento. Com o passar do tempo, o esporte se popularizou de tal forma que existem clubes e associações de vaqueiros em todos os estados do Nordeste, calendários com datas marcadas e até patrocinadores de peso, dando apoio aos eventos, que envolvem um espírito de competição e um clima de festa capaz de arrastar multidões.

Ainda segundo o Portal Vaquejada (2016) a vaquejada é a festa mais popular e tradicional do ciclo do gado nordestino. De início a vaquejada, marcava apenas o encerramento festivo de uma etapa de trabalho. Reunir o gado, ferrá-lo, castrá-lo e depois conduzi-lo para a "invernada" onde ainda existissem pastos verdes - esse era o trabalho essencial dos vaqueiros. Os coronéis e senhores de engenho, após perceberem que a vaquejada poderia ser um passatempo para as suas mulheres, e seus filhos, tornaram a festa um novo esporte. Quando perceberam que a vaquejada poderia ser um esporte os coronéis e senhores de engenho começaram a organizar algumas disputas, onde os participantes eram os seus vaqueiros. Atualmente, a vaquejada é uma festa que se comemora sobre um cenário em que dois personagens essenciais são os bois e o vaqueiro.

Ainda sobre a história da vaquejada, vale lembrar as considerações escritas por Oliveira (2016): "antigamente, quando não havia cercas no sertão nordestino, os bois eram marcados e soltos na mata. Após alguns meses, os peões, contratados pelos coronéis, entravam na mata cerrada em busca dos animais, fazendo malabarismos com seus cavalos para escaparem dos arranhões de espinhos e pontas de galhos secos. Mesmo assim, os bravos vaqueiros perseguiam, laçavam e traziam os bois aos pés do coronel. Essa valentia e habilidade dos peões fez com que surgisse, décadas depois, a vaquejada. Alguns pesquisadores descobriram que, muito antes de 1870, já se praticava a vaquejada no Seridó Potiguar. Uma indicação para isso era a existência dos currais de apartação de bois, que deram origem ao nome da cidade de Currais Novos, também no Rio Grande do Norte. Esses currais foram feitos em 1760. E era entre 1760 e 1790 que acontecia, nessa cidade, a apartação e feira de gado. Foram dessas apartações que surgiram as vaquejadas.

Oliveira (2016) recorda ainda que em meados de 1940, alguns vaqueiros nordestinos começaram a tornar públicas suas habilidades, na Corrida do Mourão, que começou a ser uma prática popular na região. A partir daí, coronéis e senhores de engenho passaram a organizar torneios de vaquejadas, onde os participantes eram os vaqueiros. Estes recebiam apenas um agrado dos coronéis, pois ainda não havia premiações. Os anos foram passando e alguns fazendeiros nordestinos passaram a promover um tipo de vaquejada onde os vaqueiros tinham de pagar uma taxa para participar da disputa. O montante era revertido para a premiação dos vencedores, bem como para a organização do evento. Assim a vaquejada se popularizou. Atualmente, existem clubes e associações de vaqueiros em todos os estados do Nordeste, calendários de eventos e patrocinadores famosos. Todos relacionados a essa competição. Os torneios foram sendo aprimorados. As montarias, formadas por cavalos nativos da região, foram sendo substituídas por animais de melhor linhagem. Da mesma forma, o chão batido deu lugar a uma superfície de areia, com limites definidos e regulamento. Agora cada dupla tinha direito a correr três bois. No final da vaquejada, era feita a contagem de pontos, a dupla que somasse mais pontos era campeã, recebendo um valor em dinheiro. Esse tipo de vaquejada é denominado até hoje de “bolão”.

2. Vaquejada à Luz do STF

Encontra-se, atualmente, em trâmite a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4983, proposta pelo Procurador Geral da República em face da Lei nº 15.299, de 8 de janeiro de 2013, do Estado do Ceará, que regulamenta a “vaquejada” como prática desportiva e cultural. Segundo noticia o próprio STF (2016), o Procurador-Geral da República ajuizou ação direta de inconstitucionalidade, com pedido de medida cautelar, buscando fosse declarada a desconformidade da Lei nº 15.299, de 8 de janeiro de 2013, do Estado do Ceará, que regulamenta a vaquejada como prática desportiva e cultural, com a Carta da República.

Eis o conteúdo da lei impugnada:

Lei n° 15.299, de 08 de janeiro de 2013. (Estado do Ceará)

Regulamenta a vaquejada como prática desportiva e cultural no Estado do Ceará.

Art. 1°. Fica regulamentada a vaquejada como atividade desportiva e cultural no Estado do Ceará.

Art. 2°. Para efeitos desta Lei, considera-se vaquejada todo evento de natureza competitiva, no qual uma dupla de vaqueiro a cavalo persegue animal bovino, objetivando dominá-lo.

§ 1º. Os competidores são julgados na competição pela destreza e perícia, denominados vaqueiros ou peões de vaquejada, no dominar animal.

§ 2°. A competição dever ser realizada em espaço físico apropriado, com dimensões e formato que propiciem segurança aos vaqueiros, animais e ao público em geral.

§ 3º. A pista onde ocorre a competição deve, obrigatoriamente, permanecer isolada por alambrado, não farpado, contendo placas de aviso e sinalização informando os locais apropriados para acomodação do público.

Art. 3°. A vaquejada poderá ser organizada nas modalidades amadora e profissional, mediante inscrição dos vaqueiros em torneio patrocinado por entidade pública ou privada.

Art. 4°. Fica obrigado aos organizadores da vaquejada adotar medidas de proteção à saúde e à integridade física do público, dos vaqueiros e dos animais.

§ 1°. O transporte, o trato, o manejo e a montaria do animal utilizado na vaquejada devem ser feitos de forma adequada para não prejudicar a saúde do mesmo.

§ 2°. Na vaquejada profissional, fica obrigatória a presença de uma equipe de paramédicos de plantão no local durante a realização das provas.

§ 3°. O vaqueiro que, por motivo injustificado, se exceder no trato com o animal, ferindo-o ou maltratando-o de forma intencional, deverá ser excluído da prova.

Art. 5º. Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.

Art. 6°. Revogam-se as disposições em contrário.

Como está expresso na petição inicial da ADI em comento:

"(...) a questão ora em debate envolve conflito entre a preservação do meio ambiente e a proteção conferida às manifestações culturais enquanto expressões da pluralidade. A sua solução requer o exame: (i) da efetiva prática da vaquejada; (ii) da perspectiva atual sobre o meio ambiente; (iii) dos limites jurídicos às manifestações culturais"

Convém destacar que entre a origem histórica da vaquejada e sua prática nos dias de hoje muita coisa mudou. Antes, esta prática (de derrubar o boi, de cercá-lo e de conduzi-lo de volta à fazenda) era algo necessário em virtude das especificidades do pastoreio no Nordeste brasileiro. Na época, não era comum às fazendas terem cercas, como explica Bezerra (2016):

"Na verdade, tudo começou aqui pelo Nordeste com o Ciclo dos Currais. É onde entram as apartações. Os campos de criar não eram cercados. O gado, criado em vastos campos abertos, distanciava-se em busca de alimentação mais abundante nos fundos dos pastos. Para juntar gado disperso pelas serras, caatingas e tabuleiros, foi que surgiu a apartação.

Escolhia-se antecipadamente uma determinada fazenda e, no dia marcado para o início da apartação, numerosos fazendeiros e vaqueiros devidamente encourados partiam para o campo, guiados pelo fazendeiro anfitrião, divididos em grupos espalhados em todas as direções à procura da gadaria solta pelos "campos 
        tão bonitos", no dizer do poeta dos vaqueiros, que em vida se chamou Fabião das Queimadas.

Naquele tempo, o fazendeiro também fazia o "serviço de campo" e se arriscava aos mesmos perigos enfrentados pelos vaqueiros profissionais. O gado encontrado era cercado em uma malhada ou rodeador, lugar mais ou menos aberto, comumente sombreado por algumas árvores, onde as reses costumavam proteger-se do sol, e neste caso o grupo de vaqueiros se dividia. Habitualmente ficava um vaqueiro aboiador para dar sinal do local aos companheiros ausentes. Um certo número de vaqueiros ficava dando o cerco, enquanto os outros continuavam a campear. Ao fim da tarde, cada grupo encaminhava o gado através de um vaquejador, estrada ou caminho aberto por onde conduzir o gado para os currais da fazenda.

O gado era tangido na base do traquejo, como era chamada a prática ou jeito de conduzi-lo para os currais. Quando era encontrado um barbatão da conta do vaqueiro da fazenda-sede, ou da conta de vaqueiro de outra fazenda, era necessário pegá-lo de carreira. Barbatão era o touro ou novilho que, por ter sido criado nos matos, se tornara bravio. Depois de derrubado, o animal era peado e enchocalhado. Quando a rês não era peada, era algemada com uma algema de madeira, pequena forquilha colocada em uma de suas patas dianteiras para não deixá-la correr.

Se o vaqueiro que corria mais próximo do boi não conseguia pegá-lo pela bassoura, o mesmo que rabo ou cauda do animal, e derrubá-lo, os companheiros lhe gritavam:

- Você botou o boi no mato!"

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Hoje a vaquejada é um verdadeiro negócio, que movimenta alguns milhões de reais por ano. Leia-se o que consta na peça inaugural da ADI em comento:

"(...) Essa prática, inicialmente associada a atividades necessárias à produção agrícola, passou a ser explorada como esporte e vendida como espetáculo, movimentando hoje cerca de R$ 14 milhões por ano." (STF, 2016).

A discussão sobre a vaquejada ainda não foi vencida no âmbito do STF. Neste sentido, o tribunal constitucional brasileiro ainda não julgou a referida ação, estando atualmente (19 de julho de 2016) suspensa, com o pedido de vistas do Ministro Dias Toffoli. Já se pronunciaram pela procedência da ação os ministros Marco Aurélio, Luís Roberto Barroso, Rosa Weber e Celso de Mello e pela improcedência da mesma os ministros Edson Fachin, Gilmar Mendes, Teori Zavaski e Luiz Fux. Portanto, no 'placar' atual, a votação está empatada.

3. (In) Constitucionalidade da vaquejada.

Como se observa nas linhas anteriores, o Supremo Tribunal Federal ainda está a discutir a questão da constitucionalidade ou não da lei cearense que visa regulamentar a vaquejada naquele Estado.

No entanto, no nosso entender, não obstante a prática seja tida como um esporte e como um dos elementos da cultura nordestina, há, nitidamente, violação ao texto da Constituição Federal de 1988, especificamente em seu artigo 225, §1º, inciso VII, abaixo transcrito:

Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.

§ 1º Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público:

(...)

VII - proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade.

Goste-se ou não da atividade esportiva/cultural da vaquejada, o fato é que a mesma é incompatível com o preceito insculpido no artigo 225, §1º, inciso VII da Constituição Federal de 1988.

Não há dúvidas que a prática da vaquejada causa sofrimento ao animal (gado), que sofre maus tratos antes de entrar na pista (os animais são açoitados e batidos com varas para ficarem ariscos e correrem assim que abrirem a porteira) e no momento em que é derrubado na pista (dentro das linhas).

Claro que na apreciação deste caso, o STF deve levar em consideração o aspecto cultural que a atividade representa. Sem dúvida, desenvolveu-se, ao longo dos anos uma verdadeira cultura da vaquejada, cultura esta que se manifesta em músicas, poesias, cordéis e na própria atividade/prática em si.

Neste momento, convém destacar que na realidade do Nordeste semiárido há várias culturas que se entrelaçam e têm pontos em comum, como a cultura da vaquejada, a cultura do vaqueiro e a cultura do povo do semiárido, que tem variações de Estado para Estado. Neste sentido, o fim da cultura da vaquejada não representa o fim da cultura nordestina. O fato de ser a vaquejada uma manifestação cultural (com respaldo constitucional) não tem força suficiente para, automaticamente, afastar o texto constitucional, na parte que proíbe a crueldade contra animais.

Há choque de direitos no caso em questão? Há quem entenda que sim, inclusive este autor. De um lado tem-se o direito a tutela do bem-estar animal (espécie do gênero meio ambiente ecologicamente equilibrado - art. 225 da CF/88) e do outro o direito à manifestação cultural, expresso no art. 215 da CF/88 abaixo transcrito:

"Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais."

No entanto, ao sopesar a coexistência destes dois direitos percebe-se que um não subsiste com a existência do outro. Neste caso, deve-se optar por um destes direitos-valores. E ao fazer esta escolha, segundo nosso juízo de valores e permitindo-nos fazer uma interpretação conforme o espírito da Constituição, entende-se que deve prevalecer o direito dos animais, ou seja, o direito de não lhes ser impelido sofrimento desproporcional e sem causa, o que ocorre, unicamente, para gerar entretenimento aos homens (diversão para o homem, causada pelo sofrimento do animal). 

O término da vaquejada (como já afirmamos) ao contrário do que alega seus defensores não representa o término da cultura do vaqueiro ou da cultura nordestina (que por sinal é muito rica e diversificada). O término da vaquejada pode representar perdas econômicas para a região, mas não acaba com as festividades regionais que podem (ou que tem o potencial de) movimentar as cidades do semiárido nordestino. O que sobra então? Só a competição esportiva.

Há estudos que comprovam os danos à integridade física dos bois que estão sujeitos à prática da vaquejada. Um destes estudos, feito pela Dra. Irvênia Luiza de Santis Prada, dispõe que:

"Ao perseguirem o bovino, os peões acabam por segurá-lo fortemente pela cauda (rabo), fazendo com que ele estanque e seja contido. A cauda dos animais é composta, em sua estrutura óssea, por uma seqüência de vértebras, chamadas coccígeas ou caudais, que se articulam umas com as outras. Nesse gesto brusco de tracionar violentamente o animal pelo rabo, é muito provável que disto resulte luxação das vértebras, ou seja, perda da condição anatômica de contato de uma com a outra. Com essa ocorrência, existe a ruptura de ligamentos e de vasos sangüíneos, portanto, estabelecendo-se lesões traumáticas. Não deve ser rara a desinserção (arrancamento) da cauda, de sua conexão com o tronco. Como a porção caudal da coluna vertebral representa continuação dos outros segmentos da coluna vertebral, particularmente na região sacral, afecções que ocorrem primeiramente nas vértebras caudais podem repercutir mais para frente, comprometendo inclusive a medula espinhal que se acha contida dentro do canal vertebral. Esses processos patológicos são muito dolorosos, dada a conexão da medula espinhal com as raízes dos nervos espinhais, por onde trafegam inclusive os estímulos nociceptivos (causadores de dor). Volto a repetir que além de dor física, os animais submetidos a esses procedimentos vivenciam sofrimento mental." (STF, 2016).

A violência causada pelo vaqueiro ao se puxar a cauda do boi é tão grande que não raras vezes a cauda (rabo) do animal se desprende do corpo, causando grandes sofrimentos ao animal.

A 'cultura' não pode funcionar como 'carta branca' para a prática de torturas e atos que gerem sofrimentos a pessoas ou animais. Vejam o que ocorreu na Espanha. O país, tradicionalmente conhecido por ser o país das touradas, já começa a proibir, em suas regiões, a prática do esporte, ou arte, como alguns chamam, pelos mesmos fundamentos e pela mesma compreensão que tiveram até então os ministros Marco Aurélio, Luís Roberto Barroso, Rosa Weber e Celso de Mello (até então, 19/07/2016): não se pode gerar sofrimento desproporcional e sem justo motivo aos animais.

Vejam o que foi noticiado por R7 NOTÍCIAS (2011):

"A lei que proíbe as touradas foi aprovada depois que a população da Catalunha fez um abaixo-assinado e coletou 180 mil assinaturas. A Catalunha, aliás, é a primeira região da Espanha a proibir o esporte, ou, a arte, como dizem os fãs."

4. Conclusões 

Diante das considerações e até mesmo das conclusões que fizemos ao longo deste breve artigo, percebe-se a vaquejada, enquanto esporte/cultura/arte não encontra espaço (recepção) no Texto Constitucional para a sua ocorrência, uma vez que fere frontalmente ao disposto no artigo 225, §1, inciso VII da Constituição Federal de 1988, isso sem falar na Lei de Crimes Ambientais, Lei nº 9.605/1998, que tipifica o crime de maus-tratos a animais em seu art. 32.

Temos a consciência que o Supremo Tribunal Federal terá pela frente debates hermenêuticos importantes até que venha a tomar a decisão que aos seus olhos seja a mais acertada. Para tanto seus ministros precisam realizar a ponderação, basicamente, de dois valores constitucionais fundamentais: o direito à tutela do bem-estar do animal (espécie do gênero meio ambiente ecologicamente equilibrado) e o direito à manifestação cultural.

A decisão irá pender mais para um ou para outro direito a depender da visão que se tem sobre a perspectiva da relação homem x meio ambiente: se será uma visão predominantemente antropocêntrica (que sugere que o meio ambiente tem um valor na medida em que é útil ao homem) ou se será uma visão predominantemente ecocêntrica ou biocêntrica, em que o meio ambiente tem um valor intrínseco (por si mesmo).

Tal decisão dependerá também da perspectiva bioética e filosófica que se têm sobre o direito dos animais. Estas discussões já estão bem adiantadas na Alemanha, mas aqui no Brasil ainda dá os seus primeiros passos.

Por fim, convém lembrar que a prevalência do direito do animal (de não ser molestado, submetido à crueldade) sobre à "manifestação cultural da vaquejada" não elimina por completo a manifestação da cultura do vaqueiro, que pode ser promovida de outras formas. 

5. Referências Bibliográficas

BEZERRA, José Eusébio Fernandes. Apartação. Disponível em: <http://www.barcelona.educ.ufrn.br/mundo.htm>. Acesso em 19 de julho de 2016.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm>. Acesso em 18 de julho de 2016.

BRASIL. Lei nº 9.605/1998. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9605.htm>. Acesso em 19 de julho de 2016.

CEARÁ. Lei nº 12.299/2013. Disponível em: <http://www.al.ce.gov.br/legislativo/legislacao5/leis2013/15299.htm>. Acesso em 19 de julho de 2016.

OLIVEIRA, Andréa. Como surgiu a vaquejada. Disponível em: <http://www.cpt.com.br/cursos-criacaodecavalos/artigos/como-surgiu-a-vaquejada>. Acesso em 19 de julho de 2016.

PORTAL VAQUEJADA. História da vaquejada. Disponível em: <http://tudosobrevaquejada.webnode.com.br/historia-da-vaquejada/>. Acesso em 19 de julho de 2016.

R7 NOTÍCIAS. Aprovada lei que proíbe touradas da Espanha. Disponível em: <http://noticias.r7.com/internacional/noticias/aprovada-lei-que-proibe-touradas-da-espanha-20110924.html>. Notícia de 2011. Acesso em 19 de julho de 2016.

STF. Suspenso julgamento de ADI sobre lei cearense que regulamenta vaquejada. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=317895>. Acesso em 19 de julho de 2016.

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Sobre o autor
Carlos Sérgio Gurgel da Silva

Doutor em Direito pela Universidade de Lisboa (Portugal), Mestre em Direito Constitucional pena Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Especialista em Direitos Fundamentais pela Fundação Escola Superior do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Norte (FESMP/RN), Professor Adjunto IV do Curso de Direito da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN), Advogado especializado em Direito Ambiental, Presidente da Comissão de Direito Ambiental da OAB/RN (2022-2024), Geógrafo, Conselheiro Seccional da OAB/RN (2022-2024), Conselheiro Titular no Conselho da Cidade de Natal (CONCIDADE).

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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