Resumo: O Sistema de Múltiplas Portas (Multidoor Courthouse System) pode ser definido como um mecanismo de aplicação de métodos alternativos de resolução de conflitos no qual, a partir do conflito apresentado pelas partes interessadas em negociar, é disponibilizada uma variedade de meios ou “portas”, a fim de que se possa identificar qual a mais adequada para a propositura de um acordo eficaz e que seja cumprido e satisfatório por ambos os indivíduos. Assim, por meio deste estudo, desenvolvido de forma transversal e descritiva, revisando a literatura especializada, analisa-se a relevância do sistema multiportas como meio de promoção do direito fundamental de acesso à justiça e sua importância para a prestação jurisdicional do sistema de justiça criminal.
Palavras-chave: Acesso à Justiça. Sistema Multiportas. Meios Extrajudiciais de Solução de Conflitos.
INTRODUÇÃO
A diversidade dos conflitos vivenciados pelas pessoas requer mecanismos diversos de resolução a fim de que os indivíduos (analisados de forma individual ou coletivamente) satisfaçam seus interesses da melhor forma possível, visualizando a sociedade de forma sistêmica, além de levar em conta os princípios basilares da igualdade e da solidariedade.
O Sistema de Múltiplas Portas objetiva prover opções às partes envolvidas em um problema comum, ou seja, esse sistema disponibiliza métodos alternativos ao Poder Judiciário de resolução de conflitos, de modo que as partes, com mais alternativas, têm mais facilidade em encontrar uma forma de solução mais adequada ao conflito cerne da demanda. Assim, nota-se que os indivíduos sujeitos de uma demanda vislumbram mais opções, daí o nome múltiplas portas.
Assim, visando analisar a relevância do sistema multiportas como meio de promoção do direito fundamental de acesso à justiça e sua importância para a prestação jurisdicional do sistema de justiça criminal, desenvolveu-se esta pesquisa, através de uma metodologia qualitativa, que se caracteriza pelo entendimento detalhado de situações e significados, em que há o interesse em buscar o lado subjetivo do fenômeno e valorizar as palavras, pois estas se transformarão em dados relevantes sobre o tema a ser estudado, quando se deseja avaliar a complexidade da realidade; possibilitando, conseguintemente, que o investigador confirme ou despreze (DESLANDES; GOMES; MNAYO, 2007).
Este trabalho expõe os resultados finais de um estudo transversal, descritivo e do tipo revisão de literatura, visto que se se utilizará, como base teórica, produções bibliográficas que tratam do objeto a ser estudado, além da jurisprudência dos tribunais.
1 CONSIDERAÇÕES SOBRE O DIREITO FUNDAMENTAL DE ACESSO À JUSTIÇA
A ideia de tornar a justiça acessível a todos surgiu no século XX, tornando-se uma forte tendência nos sistemas jurídicos mais modernos da época. Isto porque, com a segunda grande guerra mundial a problemática da inclusão ganhou maior evidência, de forma que as constituições passaram a prever uma série de direitos fundamentais, bem como a própria garantia desses direitos. (ALVES, 2015)
No Brasil, de acordo com Celso Ribeiro Bastos (1999), a constituição de 1946 foi a primeira a prever o amplo acesso à justiça. Na Constituição de 1988, atualmente em vigor, o princípio do amplo acesso à justiça encontra-se expressamente previsto que em seu artigo 5º, inciso XXXV, abrange tanto a apreciação de lesão a direito em via repressiva (quando já constatada a violação do direito), como também a chancela em via preventiva, diante de qualquer ameaça que possa por em cheque um direito subjetivo (ALVES, 2015). Reza o supracitado artigo que: “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. (CF, 1988).
Carlos Henrique Bezerra Leite (2011) afirma que é possível considerar o direito de acesso à justiça sob três perspectivas. Com relação a primeira observa que o acesso à justiça possui o mesmo sentido que justiça social. Quanto a segunda, entende que o acesso à justiça consiste no alcance à tutela jurisdicional e, no que diz respeito à terceira compreende os escopos jurídico, social e político do processo. Dessa forma, o sistema deve ser alcançado por todos e os seus efeitos devem ser baseados na ideia de justiça.
José Roberto dos Santos Bedaque (2003) ensina que:
Acesso à justiça, ou mais propriamente, acesso à ordem jurídica justa, significa proporcionar a todos, sem qualquer restrição, o direito de pleitear a tutela jurisdicional do Estado e de ter à disposição o meio constitucionalmente previsto para alcançar esse resultado. Ninguém pode ser privado do devido processo legal, ou, melhor, do devido processo constitucional. É o processo modelado em conformidade com garantias fundamentais, suficientes para torna-lo équo, correto, justo. (BEDAQUE, 2003, p.71)
Na mesma lógica, Mauro Cappelletti e Bryant Garth ( 1988):
A expressão “acesso à justiça” é reconhecidamente de difícil definição, mas serve para determinar duas finalidades básicas do sistema jurídico – o sistema pelo qual as pessoas podem reivindicar seus direitos e/ou resolver seus litígios sob os auspicios do Estado que, primeiro deve ser realmente acessível a todos; segundo, ele deve produzir resultados que seja individual e socialmente justos. (CAPPELLETTI; GARTH, 1998, p. 3).
Destaca-se que o acesso à justiça não se limita à possibilidade de se ingressar em juízo, uma vez que para sua efetivação é imprescindível que se estenda este acesso a todos que necessitarem, disponibilizando-se meio para demandarem e se defenderem satisfatoriamente, inclusive quando se tratar de processo criminal. (CINTRA; GRINOVER E DENAMARCO, 2007).
Desta feita, o princípio do amplo acesso à jurisdição consubstancia-se em uma verdadeira busca à realização da justiça, contrapondo-se a todos os obstáculos formais ou materiais que impeçam o cumprimento das garantias fundamentais previstas em um Estado Democrático de Direito.
O termo acesso à justiça deve ser percebido como a proteção de qualquer direito indistintamente, sem restrição econômica, social, política, cultural etc. Não basta que a Constituição Federal e demais legislação pátria dê ao cidadão somente a garantia formal da defesa dos direitos e o acesso ao Poder Judiciário, é preciso antes de tudo, dar a todas as pessoas a garantia material de proteção desses direitos (ALVES, 2015).
No mesmo viés, ao se falar em acesso à justiça deve-se falar também na busca da proteção de qualquer direito, sem nenhum tipo de restrição social, econômica, geográfica. Não se pode imaginar somente a garantia formal da defesa dos direitos e o acesso ao Poder Judiciário, mas deve-se assegurar a garantia de proteção material destes direitos, a fim de possibilitar a todos os indivíduos, igualmente, a segurança de que terão a adequada tutela jurisdicional.
De acordo com Pedro Lenza (2014), em decorrência do princípio em análise, não mais se admite no sistema constitucional pátrio a chamada jurisdição condicionada ou instância administrativa de curso forçado, tal como se verifica no art 153, p.4º, da EC n.1/69, na redação dada pela EC n. 7, de 13.04.1977. Para ingressar (“pater às portas”) no Poder Judiciário não é necessário, portanto, o prévio esgotamento das vias administrativas.
Corroborando com esse entendimento Alexandre de Moraes afirma que:
Inexiste a obrigatoriedade de esgotamento da instância administrativa para que a parte possa acessar o judiciário. A Constituição Federal de 1988, diferentemente da anterior, afastou a necessidade da chamada jurisdição condicionada ou instância administrativa de curso forçado, pois já se decidiu pela inexigibilidade de exaurimento das vias administrativas para obter-se o provimento judicial, uma vez que exclui a permissão que a Emenda Constitucional nº7 à Constituição anterior estabelecera, de que a lei condicionasse o ingresso em juízo à exaustão das vias administrativas, verdadeiro obstáculo ao princípio do livre acesso ao Poder Judiciário. (MORAES, 2012, p.87).
2. A SOBRECARGA DO PODER JUDICIÁRIO: AS DIFICULDADES QUE COMPROMETEM A AGILIDADE NA TRAMITAÇÃO DE PROCESSOS
Cabe salientar preliminarmente que as mais diversificadas espécies de sociedade evoluíram de modo a encontrar a melhor maneira de solucionar seus litígios. Partindo da premissa de que o Estado exerce seu poder, basicamente, em três vertentes distintas, conforme sua área de atuação, como por exemplo, as funções de administrar, legislar e julgar, pode- se perceber que o Estado-Juiz assume a responsabilidade de compor os conflitos de interesses que sobrevenham a ele.
A base de sustentabilidade do conceito de Mínimo Existencial, sendo o acesso à justiça, tem sido um dos grandes desafios do legislador nos múltiplos trabalhos projetados no sentido de Reformar o Poder Judiciário.
Vale mencionar o entendimento de Dinamarco (2004, p. 45), quando afirma com muita propriedade que:
Só tem acesso à ordem jurídica justa quem recebe justiça, e auferir justiça além de ter a demanda recebida em juízo é poder participar, contar com a participação adequada do juiz e, ao fim, receber um provimento jurisdicional consentâneo com os valores da sociedade.
A Constituição Federal de 1988 é incisiva ao declarar em seu Artigo 5º incisos LIV e XXXV, que:
LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal; XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.
Sabe-se que há muitos processos em que não possuem fundamento, qualidade na propositura e na instrução, mas diante desta garantia constitucional, mencionada acima, não se pode negar a prestação jurisdicional com a escusa de que está atribulada, por este fato é necessário analisar o caso concreto com a finalidade de se buscar outros meios para resolução de conflitos.
Atualmente a sobrecarga é um dos principais problemas do Poder Judiciário brasileiro que apresenta uma série de precariedades e deste modo torna a tramitação processual morosa, fato este que se dá também pelas dificuldades de solução de conflitos, como os custos, o excesso de formalidades e a crescente procura por seus serviços. A solução para a redução deste excesso de trabalho passa inevitavelmente pela utilização de meios alternativos de resolução de conflitos, sendo que este se pode dar por meios processuais ou até mesmo extraprocessuais, como nos traz o sistema multiportas.
Uma das consequências acarretadas pela morosidade do judiciário na esfera criminal é a prescrição do jus puniendi, ou seja, se a demora for exagerada pode advir a extinção do poder punitivo do Estado. Deste modo, deve-se notar como causas da demora nas decisões judiciais, a quantidade insuficiente de juízes em contrapartida com o elevado número de ações que se tem no judiciário e o extremo formalismo processual que, se deixar de ser observado, pode ensejar protelações, anulações ou nulidades.
Neste contexto, o problema a ser abordado consiste em avaliar qual a solução para combater a morosidade do Poder Judiciário e permitir maior acesso à Justiça.
2.1 - Meios alternativos para solução de litígios no Poder Judiciário
Os meio extraprocessuais nos quais o Poder Judiciário utiliza nas situações concretas levadas pela população em busca de soluções aos Juizados Especiais contribuem para com a desjudicialização, estes meios são a conciliação, a mediação, a arbitragem e a negociação.
Toma-se como partida a obra “Acesso à Justiça”, de Mauro Cappelletti, na qual mostra o objetivo principal dos juizados, onde visam além da celeridade, à melhoria na prestação jurisdicional e destacando a dimensão social do processo.
Conforme entendimento de Joel Dias Figueira Júnior (2002 p. 169-181):
Os meios ou formas alternativas de solução de conflito não visam o enfraquecimento do Poder Judiciário. A escolha entre a solução do conflito através da tutela estatal ou paraestatal não significa que uma é melhor ou pior, mas duas formas distintas colocadas à disposição dos jurisdicionados para a solução de seus conflitos.
É uma forma de resolução de conflitos em que as partes confiam a uma terceira pessoa, sendo ela neutra e imparcial, denominado conciliador, com autoridade ou indicado pelas partes.
O conciliador, juntamente com as partes, buscará a transação, submissão ou renúncia, sendo que este ajuda nas negociações, resolve, sugere e indica propostas ao mesmo tempo no qual aponta falhas, vantagens e desvantagens fazendo sempre jus à composição.
A conciliação judicial ocorre quando o conflito de interesses já está ajuizado, nestes casos, o juiz do processo, atuará como conciliador, ou um conciliador poderá se nomeado e treinado para o exercício da função, geralmente, nos Juizados Especiais Criminais, os conciliadores são bacharéis em Direito e são supervisionados pelo Juiz de Direito, que atue no Juizado Especial Criminal.
A principal vantagem deste instituto é a pacificação das partes após o término da lide, buscando uma efetiva harmonização social e a restauração, dentro dos limites possíveis, da relação social das partes. Deste modo, magistrados, advogados, membros do Ministério Público e da administração pública têm adquirido consciência sobre a importância da conciliação, sendo que atualmente este método tem sido utilizado em grande escala, obtendo sucesso e desafogando o poder judiciário.
A Mediação é uma forma de solução de conflitos na qual uma terceira pessoa, neutra e imparcial, facilita o diálogo entre as partes, para que elas construam, com autonomia e solidariedade, a melhor solução para o problema, visando o consenso e a realização do acordo.
O mediador deve proceder, preservando os princípios éticos. Nas declarações públicas e atividades promocionais o mediador deve restringir-se a assuntos que esclareçam e informem o público por meio de mensagens de fácil entendimento.
É utilizado, em regra, em conflitos multidimensionais, ou complexos, sendo este um procedimento estruturado, não possui prazo definido, e podendo terminar ou não em acordo, pois as partes têm autonomia para buscar soluções que compatibilizem seus interesses e necessidades.
Neste ano, em 03 de maio de 2016, o Conselho Nacional de Justiça criou o Sistema de Mediação Digital, no qual permite que as partes do processo que estejam distantes fisicamente celebrem acordos virtuais, assim com a possibilidade de troca de mensagens e informações trazidas pelo sistema as partes podem chegar a um solução da lide. Caso seja considerado necessário pelas partes, esses acordos podem ser homologados pela Justiça. Caso ocorra um acordo, será marcada uma mediação presencial que ocorrerá nos Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania (CEJUSCS), criado pela Resolução CNJ n. 125.
A mediação segundo SALES (2004, p. 23) é “um procedimento em que através do qual uma terceira pessoa age no sentido de encorajar e facilitar a resolução de uma disputa, evitando antagonismos, porém sem prescrever a solução”. Nas palavras de Braga Neto (2008, p.76), “a mediação é parte de uma premissa de devolução às partes do poder de gerir e resolver ou transformar o conflito, no sentido de que são elas as mais indicadas para solucionar suas questões”.
A arbitragem é uma alternativa extrajudicial e voluntária de solucionar conflitos, não cabendo à tutela do poder judiciário, por sua vez tem como característica um terceiro a elaborar a decisão final da solução de um conflito, que atuará de forma neutra e imparcial para solucionar controvérsias.
São as partes que definem o método a ser adotado durante o todo procedimento da arbitragem, escolhem do árbitro, chamado juiz arbitral, e também o prazo para finalizar essa forma alternativa de resolução de conflitos. A decisão final tem caráter definitivo, pois sua sentença terá força judicial, e nesse sistema não cabe recurso.
A lei 9307/96 preceitua em seu art. 1º que “as pessoas capazes de contratar poderão valer-se da arbitragem para dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis”.
O art. 852 do Código civil de 2002 trata de vedações ao compromisso arbitral, estabelecendo que “é vedado compromisso para solução de questões de estado, de direito pessoal de família e de outras que não tenham caráter estritamente patrimonial”.
Esses dispositivos estabelecem as restrições subjetiva e objetiva. É necessário que as partes sejam capazes e só será instaurado quando o conflito versar sobre direitos patrimoniais disponíveis.
O conceito de arbitragem segundo Carmona (2008, p.76):
Uma técnica para solução de controvérsias através da intervenção de uma ou mais pessoas que recebem seus poderes de uma convenção privada, decidindo com base nesta convenção, sem intervenção do Estado, sendo a decisão destinada a assumir eficácia de sentença judicial.
A negociação trata-se de uma via alternativa pura para dirimir controvérsias, destacando-se na solução de litígios de natureza comercial em razão de evitar incertezas e os custos de um processo judicial, bem como preservar o relacionamento das partes envolvidas de maneira discreta e sigilosa. Caracteriza-se pela presença da confiança e credibilidade entre os negociadores.
Com muita propriedade, Vezzula (2001, p. 15) considera a negociação como uma técnica salutar e autocompositiva de resolução de conflitos, que pela sua singeleza e por meio do diálogo, deve ser empregada como uma das primeiras formas de solução de um problema.
Vezzula (2001, p. 15), ao abordar esta técnica, chamada por ele de negociação cooperativa, ressalta que, ‘‘a negociação é sem dúvida, o mais rápido e econômico meio de resolver controvérsias, quando os negociadores conhecem as técnicas que os auxiliarão a obter satisfação para ambas as partes.”
Pode-se observar que a celeridade do Judiciário está ligada a sua eficiência, é necessário prezar pela qualidade das decisões, quando encontrar argumentos para recursos protelatórios se tornaria tão difícil que evitaria a sobrecarga das instâncias subsequentes.
O presente tema em comento tem estimulado o legislador constitucional, infraconstitucional, juízes, tribunais, estudiosos e juristas a se dedicarem a estudos e elaboração de leis e projetos que sejam focados no aperfeiçoamento dos meios processuais e alternativos. As mudanças operadas no Poder Judiciário buscando sua agilidade e desafogamento encontram-se em fase inicial.
Mister salientar que se tem verificado um crescente interesse pelo estudo dos métodos alternativos de solução de conflitos, de modo a concretizar o espírito das ondas renovatórias propostas pelo Mauro Cappelletti em sua obra Acesso à justiça (1988). O procedimento comum não mais corresponde aos anseios do jurisdicionado que reclama por formas descomplicadas e dinâmicas para solucionar os conflitos, nos quais são trazidas pelo sistema multiportas.
3 O SISTEMA MULTIPORTAS COMO DINAMIZADOR DA JUSTIÇA CRIMINAL
Frente às constantes mudanças e dificuldades que permeiam o nosso sistema jurídico, como a sobrecarga do poder judiciário, ora explanado de forma breve neste estudo, surgem mecanismos aptos a melhorar e atualizar o nosso cenário jurídico, para que este possa se moldar e adequar-se ás evoluções que nossa sociedade passa.
É necessário um aprimoramento da efetividade e racionalidade dos serviços judiciais prestados. Um dos notórios mecanismos que vem ganhando cada vez mais espaço, visando a emprestar maior celeridade à resolução dos conflitos, é inspirado em experiências que vêm sendo desenvolvidas nos países anglo-saxônicos referente à criação dos chamados tribunais multiportas (Multi-door Courthouse).
Trata-se de um novo conceito. O chamado Sistema Multiportas é um modelo alternativo de solução de litígios, conforme já dito, que prevê a integração, em um único espaço físico, de vários modos de processamento de conflitos, sendo judiciais ou extrajudiciais. Desta forma, em vez de se oferecer apenas um único caminho, uma única "porta" – o processo judicial – o tribunal "multiportas" considera vários tipos de procedimentos concentrados em uma verdadeira central de Justiça, em que o Estado conduz os litigantes para a melhor opção de resolução de litígio, a melhor “porta”.
Este sistema tem como principal característica o seu procedimento inicial. Ao procurar o tribunal, o litigante passa por uma triagem para verificar qual processo seria mais recomendável para o conflito que o levou ao Poder Judiciário. Sendo assim, é direcionada primeiramente para a porta da Administração Pública ou, então, para a porta dos conciliadores extrajudiciais, conforme cada caso, antes de ser encaminhada ao processo judicial propriamente dito. Marco Antônio Lorencini sintetiza da seguinte maneira o procedimento inicial realizado num Tribunal Multiportas:
A metáfora das portas remete a que todos os meios alternativos estejam disponíveis em um só lugar [juntamente com os meios oficiais]. Em geral, depois de apresentado um formulário pelo requerente, o requerido é também chamado e igualmente preenche um formulário igual. Esses formulários são encaminhados pelo funcionário ao julgador que, então, designa uma audiência para as partes para dar-lhes conhecimento acerca do meio indicado. [...] Dois pontos são centrais: quem exerce a triagem e o meio trilhado. [...] A escolha do meio pode, assim, dependendo do programa, ser feita pelo autor, pelo réu, ou por ambos, de forma consensual. Pode, ainda, ser mecanicamente feita por um funcionário do tribunal, por um perito externo ou, ainda, pelo próprio julgador. No caso de pluralidade de autores, prevalece o critério da maioria. Nas hipóteses em que a escolha cabe a uma pessoa que não as partes, elas respondem a um questionário detalhado que, entre outras coisas, discrimina (i) a quantidade de partes envolvidas, (ii) os 59 fatos e as possíveis questões daí advindas, (iii) pedidos (iv) relacionamento entre as partes, (v) a natureza das questões a resolver e sua natureza. Essa análise objetiva é seguida de um outro formulário no qual a parte expõe o seu objetivo, respondendo sua expectativa com relação à (i) celeridade, (ii) confidencialidade, (iii) o interesse em preservar o relacionamento com a parte contrária, (iv) disposição em negociar com a parte contrária.” (LORENCINI, 2006, p. 117)
No Brasil o sistema multiportas vem, aos poucos, ganhando espaço e notoriedade. Principalmente com o advento da Resolução nº 125 do Conselho Nacional de Justiça – CNJ. Este instrumento institui a Política Judiciária Nacional de tratamento adequado dos conflitos de interesses no âmbito do Poder Judiciário, abrangendo, assim, os meios alternativos de resolução de conflitos no ordenamento jurídico além de prestar atendimento e orientação ao cidadão através do Núcleo Permanente de Métodos Consensuais de Solução de Conflitos do Tribunal de Justiça e os CEJUSCs que é uma forma de centralizar a estrutura judiciária.
A Resolução, em seu Capitulo III, explana sobre as atribuições dos Tribunais, dentre elas a criação dos Núcleos Permanentes de Métodos Consensuais de Solução de Conflitos, criação dos Centros Judiciários de Solução de Conflitos, da responsabilidade pelos mediadores e conciliadores, da criação e manutenção de banco de dados com estatísticas das atividades de cada Centro. Neste caminho, esta técnica já foi experimentada com sucesso no trato do conflito juvenil (atos infracionais), em crimes de menor potencial ofensivo, nos Juizados Especiais, dentre outros.
Na área criminal, o sistema multiportas se concretiza, de modo mais contundente, na chamada Justiça Restaurativa. Esta, por sua vez, baseia-se num procedimento de consenso, em que a vítima e o infrator, e, quando apropriado, outras pessoas ou membros da comunidade afetados pelo crime, como sujeitos centrais, participam coletiva e ativamente na construção de soluções dos traumas e perdas causados pelo crime.
Esta denominação de Justiça Restaurativa é atribuída a Albert Eglash, que, em 1977, escreveu um artigo intitulado Beyond Restitution: Creative Restitution, publicado numa obra por Joe Hudson e Burt Gallaway, denominada “Restitution in Criminal Justice”. Eglash sustentou, no artigo, que havia três respostas ao crime – a retributiva, baseada na punição; a distributiva, focada na reeducação; e a restaurativa, cujo fundamento seria a reparação.
A Justiça Restaurativa tem como principal objetivo reparar o mal causado pela prática do ilícito, que não é tido, de começo, como um fato jurídico contrário á norma positiva imposta pelo Estado, mas sim como um fato ofensivo à pessoa da vítima e que quebra o bem-estar social. Com isso, o crime, para a justiça restaurativa, não é apenas uma conduta típica e antijurídica que atenta contra bens e interesses penalmente tutelados, mas, antes disso, é uma transgressão nas relações entre infrator, o paciente e a comunidade, cabendo, então, à Justiça Restaurativa encontrar as precisões e obrigações advindas dessa relação e do trauma ocasionado e que deve ser restaurado.
Com o objetivo de reparar o dano causado com o exercício da infração, a Justiça Restaurativa se vale do diálogo entre as pessoas envolvidas no conflito, quais sejam, autor e vítima.
Apesar de se buscar a reparação do dano causado pelo ilícito, não há que se enfocar somente a reparação material do dano. Esta poderá se materializar de qualquer outra forma, como por exemplo, o simples reestabelecimento do convívio social saudável dos envolvidos.
Consubstancia-se em um processo estritamente voluntário, relativamente informal e caracterizado pelo encontro e inclusão. Os envolvidos no conflito em questão, por voluntariedade absoluta, optam por este método alternativo de solução de conflito, o que faz desta característica, a escolha voluntária, um elemento imprescindível.
Em meio às diversas modalidades de Justiça Restaurativa podemos destacar a mediação (mediation), reuniões coletivas abertas à participação de pessoas da família e da comunidade (conferencing) e círculos decisórios (sentencing circles).
Neste caminho, o Governo Federal aprovou o 3° Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3), por meio do Decreto nº 7.037, de 21/12/2009, posteriormente atualizado pelo Decreto nº 7.177, de 12/0510. Este instrumento estabeleceu como um dos objetivos estratégicos “incentivar projetos pilotos de Justiça Restaurativa, como forma de analisar seu impacto e sua aplicabilidade no sistema jurídico brasileiro”, bem como “desenvolver ações nacionais de elaboração de estratégias de mediação de conflitos e de Justiça Restaurativa nas escolas” (BRASIL, 2009).
Começam a surgir, também, algumas iniciativas na execução criminal. Um relevante exemplo é o da Comarca de Santa Rita do Sapucaí-MG, em que é titular o juiz José Henrique Mallmann. Presos que cumprem pena no presídio da cidade trabalharam na reforma do Fórum da comarca, em projeto que contou com o auxílio de empresários locais, e o salário que receberam pelo trabalho foi dividido em duas partes: metade para a própria família e a outra metade para as vítimas de seus delitos, dinheiro este pago nas chamadas audiências de pagamento.
A sobrecarga de processos que vem gerando a crise de desempenho e perda de credibilidade no Poder Judiciário, tornou imprescindível a concepção de novos sistemas capazes de atender a população, retirando de cena, a necessidade de uma jurisdição essencialmente litigiosa e formal.
O Tribunal Multiportas é, ao que parece, a solução viável para o percalço do Sistema Jurisdicional Criminal do Brasil, como o tem sido em outros Estados.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Inicialmente, é preciso considerar que considerar que os métodos alternativos de resolução de conflitos são um aprimoramento do sistema judicial e, partindo dessa premissa, é possível concluir que a melhor estratégia para a implantação do Tribunal de Múltiplas Portas no Brasil seria a incorporação definitiva dos meios alternativos de resolução de conflitos ao nosso sistema judicial, além da ampla divulgação desses meios, em todas as camadas da sociedade, acompanhada de algumas alterações legislativas e da capacitação dos terceiros facilitadores.
Entende-se que, nesse sistema, a escolha da opção final deve ser feita pelas próprias partes e que o seu acesso deve ser voluntário. Acredita-se que é preciso haver uma pessoa que esclareça e aconselhe sobre as modalidades existentes, suas vantagens e desvantagens, e que ajude a encontrar o meio alternativo mais apropriado para o caso concreto. Caso a escolha da porta venha a ser feita por um sistema de triagem (juiz, funcionário ou técnico designado para tal), deverá ser meramente indicativa, mantendo- -se a decisão final com as partes.
Ante ao exposto, ainda que de forma breve, nota-se o quão fundamental é dinamizar o sistema judicial, em especial o penal, para que este possa em suas diversas vertentes, alcançar o seu motivo existencial primordial que é o de conceder a justiça aos cidadãos.
REFERÊNCIAS
ALVES, Gabriela Pellegrina. A conciliação como meio de efetivação do princípio ao acesso à justiça. Disponível em: <http://www.conteudojuridico.com.br/artigo,a-conciliacao-como-meio-de-efetivacao-do-principio-do-acesso-a-justica,51986.html >. Acesso em 20 jul. 2016.
BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. 20. Ed. São Paulo: Saraiva, 1999.
BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Tutela cautelar e tutela antecipada: tutelas sumárias e de urgência. São Paulo: Malheiros, 2003.
BRAGA NETO, Adolfo. O que é mediação de conflitos. São Paulo: Brasiliense 2008.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 05 de outubro de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituição/co
nstituição.htm>. Acesso em: 30 jul. 2016.
________ Decreto n.º 7.037/2009 (c). Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
_Ato2007-2010/2009/Decreto/D7037.htm>. Acesso em 02 jul. 2016.
________ Resolução 125. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/atos-administrativos/atos-da-presidencia/resolucoespresidencia/12243-resolucao-no-125-de-29-de-novembro-de-2010 >. Acesso em 29 jul. 2016.
CAPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1988.
CELSO NETO, João. A Sobrecarga do Poder Judiciário. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 6, n. 51, 1 out. 2001. Disponível em:<https://jus.com.br/artigos/2096>. Acesso em: 2 jul. 2016.
CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; DINAMARCO, Cândido Rangel; GRINOVER, Ada Pellegrini. Teoria Geral do Processo. São Paulo: Malheiros Editores, 2007.
FIGUEIRA, Júnior; DIAS, Joel. Arbitragem legislação Nacional e estrangeira e o Monopólio Jurisdicional. São Paulo: LTr, 1999.
GRINOVER, Ada Pellegrini; CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria geral do processo. São Paulo: Malheiros, 2010.
LEITE, Carlos Henrique Bezerra. Acesso coletivo á justiça como instrumento para efetivação dos direitos humanos: Por uma nova realidade. Disponível em: <http://portal.trt15.jus.br/documents/124965/125449/Rev35_art3.pdf/bebf9540-1889-47fc-ba47-7e625b78b467>. Acesso em: 25 jul. 2016.
LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado.18. Ed. São Paulo: Saraiva, 2014.
LORENCINI, Marco Antonio Garcia Lopes. Prestação jurisdicional pelo Estado e meios alternativos de solução de controvérsias: convivência e formas de pacificação social. Tese (Doutorado) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2006.
MINAYO, Maria Cecília de Souza (Org.); DESLANDES, Suely Ferreira; GOMES, Romeu. Pesquisa social: teoria, método e criatividade. 25. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007.
MONTESQUIEU. O espírito das leis. Introdução, tradução e notas Pedro Vieira Mota. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2008.
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 28. Ed. São Paulo: Editora Atlas, 2012.
SALES, Lília Maia de Morais. Justiça e mediação de conflitos. Belo Horizonte: Del Rey 2009.
SIFUENTES, Mônica. Tribunal multiportas. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 972, 28 fev. 2006. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/8047>. Acesso em: 4 jul. 2016.