Considerações sobre interessse público e a atuação do Ministério Público

20/08/2016 às 09:05
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Sempre que haja interesse público primário é inderrogável a participação do Ministério Público na lide.

 Sabemos que o Ministério Público tem como principais funções institucionais a defesa da ordem jurídica, dos interesses indisponíveis, difusos e coletivos, a promoção de ação pública civil ou penal, o zelo do respeito aos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública e dos direitos Constitucionais (arts. 127 a 129 da C.F.).

 Como instituição permanente, objetiva o Ministério Público a defesa, o zelo do interesse público. Sendo certo que, no passar dos anos, por força de ideias ditatoriais, confundiu-se bem geral com interesse da Administração. Na esteira de RENATO ALESSI, que estabelece dicotomia entre interesse público primário e secundário, entendemos que o Ministério Público deve zelar pelo interesse público primário, ou seja, o interesse do bem geral. Ali está a indisponibilidade que obriga a participação do Ministério Público nos processos, assentados em normas de ordem pública. Assim, a não participação do Ministério Público em processos, em que norma imperativa que visa ao interesse público, na fiel lição traçada por GALENO LACERDA ("Despacho Saneador" - pág. 160 - 3ª edição), faz nascer nulidade absoluta que, diversamente da nulidade relativa, diz respeito à infração de norma imperativa, protetora do interesse da parte.

 A expressão "interesse público" entra na categoria de conceitos indeterminados, que são aqueles que, como explicita WAISSMANN ("Verifiability - Logic and Language", apud Genaro Carrió, pág. 33) cuja linguagem se caracteriza por sua "vaguedad" potencial. Eduardo Garcia de Enterría y Tomás Ramón Fernandez ("Curso de Derecho Administrativo, vol. I, Madrid, Civitas, 1977, p. 271) explicam que a intelecção de tais conceitos indeterminados se esgota em um processo intelectivo, por ser interpretação da lei, que leva, obrigatoriamente, a uma única solução justa para o caso concreto, diverso, portanto, da discricionariedade, em que a lei outorga ao Agente liberdade para eleger entre alternativas igualmente justas, visto que sua decisão se baseia em critérios extrajurídicos. O campo da discricionariedade é próprio das decisões administrativas. Entretanto, se esta decisão discricionária extrapola os limites do objeto e dos motivos do ato administrativo, ou se vicia por ilegalidade, por incompetência ou desvio de finalidade, em havendo interesse público, mister se faz a participação do Ministério Público para discussão da nulidade do ato, em juízo, observando-se se a conduta do Administrador foi desarrazoada ou visou interesses pessoais, com o fito de tirar proveito para si ou para amigos, quando então será imoral, ofendendo o artigo 37 da CF.

Vivemos sob o princípio da supremacia da Constituição e, para tanto, temos que nos nortear por este enfoque. Lembremos, como leciona CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELO ("Elementos de Direito Administrativo", Ed. Rt, São Paulo, 1986, p. 230), que princípio é, por definição, mandamento nuclear de um sistema. A nossa Constituição além de rígida é normativa, na classificação ontológica de Karl Loewenstein. Constituição normativa é aquela que não é apenas juridicamente válida, estando vivamente integrada na sociedade. Sob o ponto de vista constitucional, o interesse público primário, que exige a intervenção do Ministério Público, delineia-se nos princípios fundamentais, que são aqueles que contêm as decisões político-estruturais do Estado, como expressa Schmidt:

- Princípio Republicano (art. 1º, caput);

- Princípio Federativo (art. 1º, caput);

- Princípio do Estado Democrático de Direito (art. 1º, caput);

- Princípio da Separação de Poderes (art. 2º);

- Princípio Presidencialista (art. 76);

- Princípio da Livre Iniciativa (art. 1º, IV).

Ainda nos princípios gerais:

- Princípios da legalidade (art. 5º, II); 

- Princípios da isonomia (art. 5º, caput e inciso I);

- Princípios da autonomia estadual e municipal (art. 18);

- Princípio do acesso ao Judiciário (art. 5º, XXXVI);

- Princípio do juiz natural (art. 5º, XXXVII e LIII);

- Princípio do devido processo legal (art. 5º, LIV).

A estes aditamos: os princípios da administração pública, Organização de Poderes, Tributação e Orçamento, Ordem Econômica e Ordem Social (art. 37 e, 34, VII, e 35, III).

O interesse público estará identificado com o interesse coletivo, com o interesse difuso da sociedade, os individuais homogêneos e, ainda, de uma certa classe de relações, que, pela sua indisponibilidade, a lei faz obrigar a participação do MP na lide.

Necessário estabelecer que a doutrina italiana fez diferenciação entre interesses coletivos e interesses difusos. Os interesses coletivos atingem categoria determinada ou determinável de pessoas, como os consumidores ou membros de determinada associação, os contribuintes de tributos etc. Já os interesses difusos, como sabemos, são os mais amplos, onde se situam, v.g., os que envolvem meio ambiente, sistema de saúde.

Em certas classes de relações, envolvendo pessoas determinadas, há necessidade de participação do Ministério Público: incapazes, ausentes, nas causas de alimento (lei nº 5.478/68), acidente do trabalho, estado (82, II, CPC), nulidade de casamento, divórcio e separações judiciais, guarda de menores, direito de visitas  e falência. Nestas relações de direito privado, revela-se, além do papel do M.P. como custos legis, a defesa de direitos indisponíveis, onde não há que se pensar em transação. Divide-se a doutrina sobre a posição do PARQUET em assuntos como questões envolvendo acidente do trabalho e incapazes. PAULO CÉSAR PINHEIRO, em obra conhecida sobre o princípio do PROMOTOR NATURAL, entende, que se a decisão é favorável ao acidentado, não pode o M.P. recorrer, exceto em matéria de error in procedendo, porque, assim, estaria como fiscal predominante do interesse da parte. Em matéria de nulidade do casamento, entende-se que o PARQUET funciona como curador do vínculo. De tal sorte, mister que se mencione que o papel do Ministério Público é sempre, e primordialmente, na defesa da correta aplicação da LEI, como revela JOSÉ FERNANDO DA SILVA LOPES, in "O Ministério Público e o Proc. Civil 48/49", sempre no interesse público, como custos legis. No mesmo sentido, temos interesse público nas matérias de usucapião, defesa judicial de populações indígenas (art. 129, V da C.F.). No mandado se segurança e na ação popular, o M.P. é parte pública autônoma. Na ação civil pública, lei nº 7.347/85, tem legitimidade concorrente disjuntiva para ajuizá-la, sendo sine qua non, seu acompanhamento, quando se trata de ação civil ajuizada por outros entes legitimados, em face do princípio da indisponibilidade.

Questiona-se a participação do M.P. em ações envolvendo desapropriações. JOSÉ CARLOS MORAES SALES, em conhecida monografia sobre o tema, insiste na não necessidade de acompanhamento pelo PARQUET.

A questão exige reflexão: se, em matéria de necessidade pública ou de utilidade, a doutrina concorda, o mesmo não ocorre nas desapropriações por interesse social. Veja-se, para o caso, a redação da Lei Complementar nº 76/93. Doutrina recente, tem incentivado a participação do M.P. na fiscalização do justo preço e da celeridade do processo.

Em matéria de execução fiscal, nos termos da Lei nº 6.830/80, entende HUMBERTO THEODORO JÚNIOR que ("Comentários à Lei de Execuções Fiscais") não há interesse público que faça necessária a presença do M.P., isto em face da presença de órgão público na lide. Entretanto, o interesse público, visando ao bem comum, faz necessário que o M.P. seja ouvido, principalmente quando se trate de remissão de dívida, acordos, cobrança de tributos inconstitucionais, legitimidade de pessoa jurídica de Direito Público etc.

Na órbita federal, a questão tem amplo leque. Se a CEF e a EBCT, como entidades dotadas de personalidade jurídica de direito privado, envolvem-se em lides onde são discutidas cláusulas contratuais, como cobrança cumulativa de correção monetária e comissão de permanência, exata interpretação de equivalência salarial, para financiamento de compras de casa própria, por ações ordinárias ou consignatórias, a questão tem interesse primordialmente privado. Entretanto, se a lide envolve mau uso de verba pública, infração à norma de licitações, contrações irregulares, mau uso de bem de empresa pública etc., é primordial a participação do Ministério Público, pois que existente interesse público, por haver a tutela do patrimônio público.

Em matéria de registro público, nos termos da Lei nº 6.015/73 e suas alterações, é, outrossim, primordial a intervenção do PARQUET. Sobreleva o papel em matéria de registro fundiário, onde sabemos, adotamos o regime da inscrição em fólium próprio, para aquisição de direitos reais, mantendo a tradição do Código Civil - art. 530, I. Nas questões de dúvida, há interesse público, por haver discussão sobre princípios basilares do direito imobiliário, como fé pública, presunção, legalidade, injunção.

Já quanto ao instituto da FUNDAÇÃO, cuja origem está no direito romano, e que se trata de patrimônio destinado a um fim, há raiz histórica, como leciona CELSO NEVES, in "Estudos em Homenagem ao Prof. Silvio Rodrigues", da fiscalização do Estado sobre estes entes que surgiram à margem do Poder Público. O Código Civil, no art. 26, preceitua esta intervenção. Entretanto, já com a edição da Lei nº 6.435, passou-se a entender-se que tal fiscalização dar-se-ia dentro dos controles instituídos naquela Lei de Previdência Privada. Com a edição da Constituição de 1988 fica entendido que o controle primordial deverá ser feito sobre as Fundações de direito público e os de direito privado instituídas pelo Poder Público.

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 Em matéria penal, não há espaço para ações penais populares, extirpadas de nosso ordenamento jurídico. O M.P., como sabemos, é titular da ação penal pública incondicionada, mantidas as ações penas privadas, pública condicionada e privada subsidiária da pública. O M.P. tem acesso obrigatório, a bem da sociedade, em todas as lides, onde estiver em discussão matéria penal.

Discussão existe sobre a possibilidade de participação, ainda que a nível de litisconsórcio, de Ministério Público Estadual e Federal. Data vênia, de criteriosas opiniões contrárias, sobreleva o princípio federativo. É este princípio federativo que justifica a competência da Justiça Federal e a atribuição do MPF de nela funcionar, na primeira e segunda instâncias.

Ressai, outrossim, dúvida quanto a ilícitos envolvendo comunidades indígenas. Em recente estudo, o culto Subprocurador Geral da República, Dr. CLÁUDIO LEMOS FONTELES (in "Revista da Procuradoria Geral da República", nº 3, pág. 59 a 61) concluiu que a justiça estadual não está mais legitimada a conhecer de infrações penais cometidas por, ou contra, índios, por força dos artigos 231, caput, e 109, IX, da Constituição. Data máxima vênia, não podemos  deixar de concordar com as conclusões de HUGO NIGRO MAZZILLI ("O Ministério Público na Constituição de 1988" - pág. 113). A competência da Justiça Federal se dirige a atos de interesse global dos indígenas. Nos casos de interesses individuais dos indígenas, a competência seria da Justiça Estadual.

Ainda no campo do interesse público primário, detém o Procurador Geral da República legitimidade para ajuizar ação direta de inconstitucionalidade contra lei ou ato normativo federal e estadual e, ainda, na chamada ação de inconstitucionalidade interventiva, com raízes da Constituição de 1934. Nesta ação de inconstitucionalidade (art. 102, I, e 103, da C.F.) o Supremo funciona como legislador negativo. Nas chamadas representações interventivas, o fulcro são as lesões a princípio constitucionais sensíveis, como disciplinas taxativa da Constituição. A Constituição, no art. 102, pár. único, na linha da Lei Fundamental alemã, outrossim, manda receber arguição de preceito fundamental, ajuizado pelo Procurador-Geral.

A matéria de intervenção do Ministério Público em processos onde esteja em discussão o interesse público tem sido objeto de sérias falhas de Regimentos Internos de Tribunais, que vêm decisivamente limitando a atuação do PARQUET, restringindo-o apenas a algumas matérias de caráter civil e a penais. Data vênia, tais dispositivos regimentais não só afrontam a Lei Complementar nº 75/93, como também a própria Constituição. Examinando os chamados regulamentos delegados, sob o império da E. Constitucional nº 01/69, o douto SÉRGIO FERRAZ, exemplificou que encontrava-se na normatividade que o Supremo tinha quanto ao processo e julgamento dos feitos que lhe são encaminhados. Isto mudou com a Constituição de 05.10.88. O artigo 96, I, diz que compete privativamente aos Tribunais elaborar seus regimentos internos, com observância das normas de processo e das garantias processuais das partes. O papel desses regimentos é de organizar seus serviços, não criar normas processuais. A Constituição, no artigo 22, I, afirma ter a União competência privativa para legislar sobre processo, atribuindo-lhe, de modo exclusivo, a fixação de normas quanto ao direito processual. Claro que Lei Complementar a ser editada poderá autorizar aos Estados legislar sobre matéria específica de processo, sem que fira a privatividade da União, ficando os Estados Membros com Competência Supletiva. Se isto ocorre na esfera dos entes públicos federais, incompreensível como possam os Tribunais, por seus Regimentos Internos, legislar sobre processo, limitando, contra a Constituição, a atividade do Ministério Público. Corretas são as representações encaminhadas ao Exmº Sr. Procurador Geral, objetivando cassar tais dispositivos. Não há lugar, como explicitou CLÈMERSON M. CLÈVE (in "Atividade Legislativa do Poder Executivo no Estado Contemporâneo e na Constituição de 1988") para adoção de regulamento delegado.

Sempre que haja interesse público primário é inderrogável a participação do Ministério Público na lide.

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Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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