Capa da publicação Interesse público primário e atuação do Ministério Público
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Considerações sobre interesse público e a atuação do Ministério Público

20/08/2016 às 09:05

Resumo:


  • O Ministério Público tem como principais funções institucionais a defesa da ordem jurídica, dos interesses indisponíveis, difusos e coletivos, e a promoção de ação pública civil ou penal.

  • O Ministério Público deve zelar pelo interesse público primário, que é o interesse do bem geral, e sua participação em processos fundamentados em normas de ordem pública é essencial para garantir a proteção dos direitos constitucionais.

  • O interesse público primário se relaciona com princípios fundamentais da Constituição, como o princípio republicano, federativo, do Estado Democrático de Direito, da separação de poderes, entre outros, e o Ministério Público tem um papel crucial na defesa desses princípios em diversas áreas do direito.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Quando o Ministério Público deve intervir em processos? A defesa do interesse público primário exige sua atuação para evitar nulidades e garantir direitos coletivos.

Sabemos que o Ministério Público tem como principais funções institucionais a defesa da ordem jurídica, dos interesses indisponíveis, difusos e coletivos, a promoção da ação pública civil ou penal, o zelo pelo respeito aos Poderes Públicos e aos serviços de relevância pública, bem como a defesa dos direitos constitucionais (arts. 127 a 129 da CF).

Como instituição permanente, o Ministério Público objetiva a tutela do interesse público. Ocorre que, ao longo dos anos, sob a influência de ideias ditatoriais, confundiu-se o bem geral com o interesse da Administração. Na esteira de Renato Alessi, que estabelece a dicotomia entre interesse público primário e secundário, entendemos que o Ministério Público deve zelar pelo interesse público primário, isto é, o interesse do bem geral. É nesse campo que se encontra a indisponibilidade que impõe a participação obrigatória do Ministério Público nos processos assentados em normas de ordem pública. A ausência de intervenção do Ministério Público em feitos submetidos a normas imperativas voltadas à proteção do interesse público, conforme a lição de Galeno Lacerda (Despacho Saneador, p. 160, 3ª ed.), acarreta nulidade absoluta, diversa da nulidade relativa, porquanto ligada à infração de norma cogente que protege o interesse da coletividade.

A expressão “interesse público” insere-se na categoria dos conceitos jurídicos indeterminados, aqueles cuja linguagem, como observa Waissmann (Verifiability – Logic and Language, apud Genaro Carrió, p. 33), caracteriza-se por sua “vaguedad” potencial. Eduardo García de Enterría e Tomás Ramón Fernández (Curso de Derecho Administrativo, vol. I, Madrid, Civitas, 1977, p. 271) explicam que a compreensão desses conceitos indeterminados se exaure em um processo intelectivo de interpretação da lei, conduzindo, necessariamente, a uma única solução justa para o caso concreto. Diferenciam-se, portanto, da discricionariedade, que confere ao agente a liberdade de escolha entre alternativas igualmente justas, fundadas em critérios extrajurídicos. O campo da discricionariedade é próprio das decisões administrativas. Todavia, se tais decisões extrapolam os limites do objeto ou dos motivos do ato, ou se são viciadas por ilegalidade, incompetência ou desvio de finalidade, é indispensável a atuação do Ministério Público para questionar a nulidade em juízo, sobretudo quando a conduta do administrador revela desvio de finalidade, favorecimento pessoal ou afronta ao princípio da moralidade (art. 37 da CF).

Vivemos sob o princípio da supremacia da Constituição, que deve nortear toda interpretação. Celso Antônio Bandeira de Mello (Elementos de Direito Administrativo, RT, São Paulo, 1986, p. 230) ensina que princípio é mandamento nuclear do sistema. A Constituição brasileira, além de rígida, é normativa, na classificação de Karl Loewenstein, porquanto integrada à realidade social. Assim, o interesse público primário, cuja defesa exige a intervenção do Ministério Público, delineia-se nos princípios fundamentais, que traduzem as decisões político-estruturais do Estado, como expõe Schmidt:

  • Princípio Republicano (art. 1º, caput);

  • Princípio Federativo (art. 1º, caput);

  • Princípio do Estado Democrático de Direito (art. 1º, caput);

  • Princípio da Separação de Poderes (art. 2º);

  • Princípio Presidencialista (art. 76);

  • Princípio da Livre Iniciativa (art. 1º, IV).

E, ainda, nos princípios gerais:

  • legalidade (art. 5º, II);

  • isonomia (art. 5º, caput e inciso I);

  • autonomia estadual e municipal (art. 18);

  • acesso ao Judiciário (art. 5º, XXXV);

  • juiz natural (art. 5º, XXXVII e LIII);

  • devido processo legal (art. 5º, LIV).

Acrescem-se os princípios que regem a administração pública, a organização dos Poderes, a tributação e o orçamento, a ordem econômica e a ordem social (arts. 34, VII, 35, III e 37 da CF).

O interesse público identifica-se, pois, com o interesse coletivo, com os interesses difusos da sociedade, com os interesses individuais homogêneos e, ainda, com certas classes de relações que, pela indisponibilidade, impõem a participação obrigatória do Ministério Público na lide.

Necessário destacar que a doutrina italiana estabeleceu a diferenciação entre interesses coletivos e interesses difusos. Os interesses coletivos dizem respeito a uma categoria determinada ou determinável de pessoas, como os consumidores, os membros de determinada associação ou os contribuintes de tributos. Já os interesses difusos, como se sabe, são mais amplos e abrangem, por exemplo, matérias relacionadas ao meio ambiente e ao sistema de saúde.

Em determinadas classes de relações jurídicas, envolvendo pessoas identificáveis, é obrigatória a participação do Ministério Público: incapazes, ausentes, causas de alimentos (Lei nº 5.478/68), acidentes do trabalho, estado da pessoa (art. 82, II, do CPC), nulidade de casamento, divórcio, separações judiciais, guarda de menores, direito de visitas e falência. Nessas hipóteses de direito privado, evidencia-se, além do papel do Ministério Público como custos legis, a defesa de direitos indisponíveis, insuscetíveis de transação.

A doutrina divide-se quanto à atuação do Parquet em temas como acidentes do trabalho e incapacidade. Paulo César Pinheiro, em conhecida obra sobre o princípio do promotor natural, entende que, se a decisão for favorável ao acidentado, não pode o Ministério Público recorrer, salvo em caso de error in procedendo, pois atuaria, nesse caso, como fiscal preponderante do interesse da parte. Já nas nulidades matrimoniais, o Parquet exerce a função de curador do vínculo.

Assim, é necessário enfatizar que o papel do Ministério Público é sempre, primordialmente, a defesa da correta aplicação da lei, como leciona José Fernando da Silva Lopes (O Ministério Público e o Processo Civil, p. 48-49), sempre no interesse público, na qualidade de custos legis. No mesmo sentido, reconhece-se interesse público em matérias como usucapião e na defesa judicial das populações indígenas (art. 129, V, da CF).

No mandado de segurança e na ação popular, o Ministério Público atua como parte pública autônoma. Já na ação civil pública (Lei nº 7.347/85), possui legitimidade concorrente e disjuntiva para ajuizá-la, sendo indispensável seu acompanhamento quando proposta por outros entes legitimados, em virtude do princípio da indisponibilidade.

Discute-se a necessidade de intervenção do Ministério Público em ações de desapropriação. José Carlos Moraes Sales, em conhecida monografia sobre o tema, defende a desnecessidade de acompanhamento pelo Parquet.

Todavia, a questão merece reflexão. Enquanto há consenso doutrinário quanto à intervenção em desapropriações por necessidade ou utilidade pública, não ocorre o mesmo nas hipóteses de desapropriação por interesse social. A propósito, destaca-se a disciplina da Lei Complementar nº 76/93. Doutrina mais recente tem defendido a participação do Ministério Público na fiscalização do justo preço e na garantia da celeridade processual.

No âmbito da execução fiscal, regida pela Lei nº 6.830/80, Humberto Theodoro Júnior (Comentários à Lei de Execuções Fiscais) entende que não há interesse público a justificar a intervenção obrigatória do Ministério Público, já que a lide envolve a atuação de órgão público.

Contudo, o interesse público, voltado ao bem comum, exige que o Ministério Público seja ouvido, sobretudo em casos de remissão de dívida, celebração de acordos, cobrança de tributos inconstitucionais ou questionamento da legitimidade de pessoa jurídica de direito público.

Na esfera federal, o tema apresenta maior amplitude. Quando a Caixa Econômica Federal (CEF) e a Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (EBCT), ambas dotadas de personalidade jurídica de direito privado, figuram em lides envolvendo cláusulas contratuais — como cobrança cumulativa de correção monetária e comissão de permanência, interpretação de equivalência salarial ou contratos de financiamento habitacional —, a controvérsia assume caráter predominantemente privado.

Todavia, quando a demanda versa sobre mau uso de verba pública, infração a normas de licitação, contratações irregulares ou utilização indevida de bens de empresa pública, é imprescindível a participação do Ministério Público, em razão da tutela do patrimônio público.

No campo do registro público, disciplinado pela Lei nº 6.015/73 e suas alterações, a intervenção do Ministério Público é igualmente indispensável. Destaca-se, em especial, sua atuação no registro fundiário, em que se adota o regime da inscrição em fólio real para aquisição de direitos reais, preservando-se a tradição do Código Civil (art. 530, I).

Nas hipóteses de dúvida registrária, há inegável interesse público, uma vez que se discutem princípios fundamentais do direito imobiliário, como a fé pública, a presunção de legitimidade, a legalidade e a injunção.

No que concerne ao instituto da fundação — patrimônio destinado a um fim, de origem no direito romano —, registra-se uma tradição histórica de fiscalização estatal sobre tais entes, conforme leciona Celso Neves (Estudos em Homenagem ao Prof. Silvio Rodrigues). O Código Civil, em seu art. 26, prevê expressamente essa intervenção.

Com a edição da Lei nº 6.435, entendeu-se que a fiscalização das fundações passaria a ocorrer no âmbito dos controles instituídos pela legislação de previdência privada. Todavia, com a Constituição de 1988, firmou-se que o controle primordial recai sobre as fundações de direito público e sobre as de direito privado instituídas pelo Poder Público.

No âmbito penal, inexiste espaço para ações penais populares, extintas de nosso ordenamento jurídico. O Ministério Público é o titular da ação penal pública incondicionada, preservadas as ações penais privadas, a pública condicionada e a privada subsidiária da pública.

Assim, o Ministério Público tem acesso obrigatório, em benefício da sociedade, a todos os processos em que se discuta matéria penal.

Discute-se, ainda, a possibilidade de atuação conjunta, em regime de litisconsórcio, do Ministério Público Estadual e do Ministério Público Federal. Data vênia das respeitáveis opiniões contrárias, deve prevalecer o princípio federativo.

É justamente esse princípio que fundamenta a competência da Justiça Federal e a atribuição do Ministério Público Federal para nela atuar, tanto em primeira quanto em segunda instância.

Surge, ainda, controvérsia quanto à competência para processar ilícitos envolvendo comunidades indígenas. Em estudo recente, o Subprocurador-Geral da República, Dr. Cláudio Lemos Fonteles (Revista da Procuradoria Geral da República, nº 3, p. 59-61), concluiu que a Justiça Estadual não mais detém legitimidade para apreciar infrações penais cometidas por ou contra indígenas, em razão do disposto nos arts. 231, caput, e 109, IX, da Constituição.

Data maxima venia, acompanham-se as conclusões de Hugo Nigro Mazzilli (O Ministério Público na Constituição de 1988, p. 113), segundo as quais a competência da Justiça Federal restringe-se a atos de interesse global dos povos indígenas, cabendo à Justiça Estadual os casos que envolvam interesses meramente individuais.

Ainda no campo do interesse público primário, compete ao Procurador-Geral da República ajuizar ação direta de inconstitucionalidade contra lei ou ato normativo federal ou estadual, bem como a denominada ação de inconstitucionalidade interventiva, com raízes históricas na Constituição de 1934.

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Na ação de inconstitucionalidade (arts. 102, I, e 103 da CF), o Supremo Tribunal Federal atua como legislador negativo. Já nas representações interventivas, o objeto central é a lesão a princípios constitucionais sensíveis, disciplinados de forma taxativa pela Constituição.

Por sua vez, o art. 102, parágrafo único, da Constituição, em linha com a Lei Fundamental alemã, prevê a arguição de descumprimento de preceito fundamental, a ser ajuizada pelo Procurador-Geral da República.

A intervenção do Ministério Público em processos que envolvem interesse público tem sido restringida, de forma indevida, por regimentos internos de Tribunais, que limitam sua atuação a determinadas matérias de caráter civil e penal. Data venia, tais dispositivos regimentais afrontam não apenas a Lei Complementar nº 75/93, mas também a própria Constituição.

No passado, sob a égide da Emenda Constitucional nº 1/69, discutiam-se os chamados regulamentos delegados. Sérgio Ferraz exemplificava que neles se encontrava a normatividade atribuída ao Supremo Tribunal Federal quanto ao processo e julgamento dos feitos que lhe eram encaminhados. Essa realidade se alterou com a Constituição de 1988.

O art. 96, I, da CF dispõe que compete privativamente aos Tribunais elaborar seus regimentos internos, devendo observar as normas de processo e as garantias processuais das partes. O papel desses regimentos é organizar os serviços internos, e não criar normas processuais. Já o art. 22, I, da Constituição estabelece ser competência privativa da União legislar sobre processo, atribuindo-lhe, de modo exclusivo, a fixação das normas de direito processual. É certo que lei complementar poderá autorizar os Estados a legislar sobre matéria processual específica, sem ofensa à competência privativa da União, hipótese em que terão competência supletiva.

Se assim é na esfera dos entes públicos federais, mostra-se incompreensível que os Tribunais, por meio de seus regimentos internos, criem normas processuais limitando, em afronta à Constituição, a atuação do Ministério Público. Corretas, portanto, as representações encaminhadas ao Procurador-Geral da República com o objetivo de cassar tais dispositivos. Como bem explicitou Clèmerson M. Clève (Atividade Legislativa do Poder Executivo no Estado Contemporâneo e na Constituição de 1988), não há espaço, no regime constitucional vigente, para regulamentos delegados.

Sempre que esteja em jogo o interesse público primário, é inderrogável a participação do Ministério Público na lide.

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Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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