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Decisões tangenciais

29/10/2016 às 08:23
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O novo código não irá impedir as chamadas decisões processualísticas que na realidade acabam por duplicar o número de demandas em função das quais elas foram engendradas.

Hoje decisões tangenciais ou meramente processuais que não examinam o mérito da demanda proposta tornaram-se uma regra.

Por isso, o novo Código de Processo Civil inseriu a regra do art. 317 segundo a qual “antes de proferir decisão sem solução de mérito, o juiz deverá conceder à parte oportunidade para, se possível, corrigir o vício”.

Essa regra foi introduzida, sem sobra de dúvida, para tentar minimizar a terrível prática, pelos tribunais, da chamada jurisprudência defensiva com o claro objetivo de livrar-se da carga exorbitante de processos que crescem a cada dia. Dessa forma, a função jurisdicional está sendo substituída pela função de elaborar estatísticas de processos decididos anualmente.

Só que essa jurisprudência defensiva, além de implicar desvio de finalidade, partiu de uma premissa errada.

A grande maioria dos litigantes vão a juízo não porque têm dúvida acerca do direito a ser aplicado ao caso concreto, mas  porque querem protelar ao máximo o cumprimento de suas obrigações, contando com a morosidade da justiça brasileira. Se o tribunal local decidisse uma demanda versando sobre a matéria em que já existe uma jurisprudência pacífica, em uma semana, por exemplo, o sucumbente em primeira instância não iria pagar 2% de custas sobre o valor de causa para interpor o recurso de apelação. Ele o faz  porque a simples  interposição do recurso já é o suficiente para ganhar, no mínimo, dois anos para decisão de mérito ou de natureza meramente processual. Isso estimula as demandas. Por isso, afirmamos que a grande causa da morosidade do Judiciário reside na nossa própria morosidade.

À medida que o Judiciário estiver em condições de oferecer decisões de mérito, com celeridade, as demandas com objetivos protelatórios, que representam a maioria dos processos, deixarão de existir.

Dentro desse quadro não temos razões para crer que a nova regra processual irá abolir a jurisprudência defensiva, mesmo porque o conjunto das novas normas processuais não estão voltadas para os interesses dos jurisdicionados. Muitas das normas novas complicam o processo, criam um potencial de discussões novas de natureza processual, acentuam a morosidade da justiça, pouco tempo restando para a realização do fim último da atuação judiciária que é a de fazer justiça. Receber uma decisão de extinção do processo sem exame do mérito ou de não conhecimento do recurso após anos de tramitação, certamente, não é o objetivo perseguido pelo autor da ação e nem isso corresponde a efetiva prestação jurisdicional, transformando os órgãos judiciários em órgãos de elaboração e divulgação de estatísticas quanto ao número de processos julgados, decididos, eu diria. E, certamente, não é para isso que a sociedade paga um tributo dos mais caros do mundo  para manutenção da parafernália de órgãos judiciários nos âmbitos federal e estadual. Além de a sociedade  remunerar duplamente o serviço judiciário por meio de impostos, os litigantes pagam, ainda, tributos específicos representados por taxas judiciárias, taxas de remessa dos processos,  taxas de retorno dos processos, taxa de exames de processos, taxas e cópias de processos e, agora, multas por embargos declaratórios considerados protelatórios.

Não examinar o mérito da demanda  parece ser uma cultura já arraigada nos tribunais superiores.

Hoje verifiquei com espanto a decisão  proferida pela 2ª Turma do STJ (REsp nº 1.502.347) de que foi relator vencido o eminente Ministro Humberto Martins negando provimento ao recurso e mantendo o valor irrisório de R$ 2 mil reais de verba honorária sucumbencial em uma ação envolvendo o valor de R$ 31 milhões contra União.

Tudo bem que o § 4º, do art. 20 do CPC de 1973, quando for vencida a Fazenda mandava fixar a verba honorária consoante apreciação equitativa do Juiz, observados os requisitos das letras a, b, e c do parágrafo anterior.

Mas, eu pergunto: como fica  o princípio da razoabilidade? É razoável a verba de R$ 2 mil reais para uma causa de R$ 31 milhões que tramitou durante anos até chegar ao STJ? A aferição da razoabilidade, no caso, prescindia de prévia demonstração documental ou aritmética?

Diante disso fico a imaginar se o resultado não teria sido igual, caso o tribunal local tivesse motivado a fixação dos honorários em valor ridículo, para dizer o menos. Se era imprescindível a motivação, como determina o § 3º do art. 20 do CPC/73, aplicado ao caso sob exame, pergunta-se, por que não pronunciou de ofício a nulidade do julgado, devolvendo os autos ao tribunal de origem?

Na verdade, tivemos um caso semelhante em que o tribunal local havia convolado a verba de 10% sobre o valor da condenação para o valor fixo de R$ 5 mil reais, sob o fundamento de que “esse valor remunera condignamente o advogado”, sem dizer o porquê. Tratava-se que uma mera questão pessoal de antipatia do eminente Relator com a minha pessoa, por razões que até hoje desconheço. O STJ manteve o acórdão recorrido passando por cima da jurisprudência em contrário levada à colação. Em outras palavras, encampou a afirmativa de que aquele ridículo valor de R$5.000 remunerava condignamente o meu trabalho profissional árduo desenvolvido ao longo de 15 anos desde o início da milionária  autuação fiscal. Um dos Ministros que assim decidiu era e é um de meus  melhores amigos. Só contei-lhe  esse  episódio depois que ele se aposentou do STJ e ele ficou perplexo. O certo é que, na realidade, aquela motivação validada pelo tribunal ad quem era uma motivação desmotivada.

Por tudo isso, acredito que o novo Código não irá impedir as chamadas decisões processualísticas que na realidade acabam por duplicar o número de demandas em função das quais elas foram engendradas. Realmente, decisões que não enfrentaram o mérito não fazem coisa julgada, possibilitando a propositura de nova ação. A impressão que eu tenho é que o legislador “deu uma na ferradura e duas no casco”,  a pretexto de agilizar os processos, como se isso dependesse apenas de instrumentos normativos sofisticados. A grande verdade é que grande parte dos processos envolvem questões simples de direito que deveriam ser julgadas à luz da experiência e dos conhecimentos técnicos básicos, sem necessidade de invocar doutrinas nacionais e estrangeiras. Processo não é o local adequado para demonstrar erudição do prolator da decisão e nem deve servir de base  para a  elaboração de sua biografia.

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Sobre o autor
Kiyoshi Harada

Jurista, com 26 obras publicadas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 20 (Ruy Barbosa Nogueira) da Academia Paulista de Letras Jurídicas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 7 (Bernardo Ribeiro de Moraes) da Academia Brasileira de Direito Tributário. Acadêmico, Titular da cadeira nº 59 (Antonio de Sampaio Dória) da Academia Paulista de Direito. Sócio fundador do escritório Harada Advogados Associados. Ex-Procurador Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

HARADA, Kiyoshi. Decisões tangenciais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4868, 29 out. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/51917. Acesso em: 23 nov. 2024.

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