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A prisão civil na alienação fiduciária em garantia

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III. Subsistência da possibilidade da prisão civil do devedor fiduciante frente ao Pacto de São José da Costa Rica.

Que o devedor fiduciante é depositário (e não – lembremos – equiparado a um), que enquanto tal pode sofrer a prisão civil, nos moldes da Constituição Federal de 05 de outubro de 1.988 e que as considerações de ordem política subjacentes ao regramento aplicável são completamente impertinentes, já está fora de qualquer dúvida. Por isso, é-nos lícito afirmar ser plenamente válida, no plano interno, a pretensão coercitiva em debate; nosso ordenamento a comporta perfeitamente, sem as restrições pretendidas por alguns.

Questionamentos surgem, entretanto, se contemplarmos o aparecimento, no plano internacional, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, o chamado Pacto de São José da Costa Rica. A avença, fruto de entendimentos entre plenipotenciários de alguns Estados americanos – o brasileiro inclusive –, foi firmada no dia 22 de novembro de 1.969, na cidade de São José, capital da Costa Rica. Traz em seu âmago um rol deveras significante de direitos humanos (direito ao reconhecimento da personalidade jurídica, direito à vida, direito à integridade pessoal, proibição da escravidão e da servidão etc), a serem imperativamente observados e respeitados pelos poderes dirigentes das altas partes contratantes, em benefício de todos aqueles que venham a encontrar-se sob os seus respectivos domínios.

Como já havíamos mencionado na introdução de nosso labor, o Pacto, ao tratar em seu artigo 7º do direito à "liberdade pessoal", estatuiu como um de seus corolários, na dicção do §7º daquele dispositivo, que "ninguém deve ser detido por dívidas" e que "este princípio não limita os mandados de autoridade judiciária competente expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar".

Por ter a autoridade brasileira subscrito o acordo, teria ele passado a vincular na esfera internacional nosso Estado. Mas não apenas isso: o Congresso Nacional aprovou sem quaisquer reservas o texto da Convenção, por intermédio do Decreto Legislativo n.º 27, de 25 de setembro de 1.992, tendo depositado a respectiva carta de adesão ainda naquela data; ademais, no dia 06 de novembro daquele mesmo ano o Sr. Presidente da República ratificou seu texto por meio do Decreto n.º 678, ato pelo qual foi concluído todo o processo de que carecia para obter vigência na esfera nacional.

No dia 06 de novembro de 1.992 – data da publicação do Decreto n.º 678 no Diário Oficial da União –, portanto, o Pacto de São José da Costa Rica entrava em vigor no ordenamento jurídico pátrio. Ele, com todas as suas disposições ("artigo 1º. A Convenção Americana sobre Direitos Humanos [Pacto de São José da Costa Rica], celebrada em São José da Costa Rica, em 22 de novembro de 1.969, apensa por cópia ao presente Decreto, deverá ser cumprida tão inteiramente como nela se contém").

Entre as normas que entraram em vigor com o acordo multilateral de que ora cuidamos está aquela do citado artigo 7º, §7º, obstativa da prisão por dívidas, exceto quando derive de obrigações alimentares.

Pois bem: para alguns, o início da vigência de tal regra em solo nacional teria ab-rogado a exeqüibilidade da prisão civil do depositário infiel (aqui inserido, como vimos, o devedor fiduciante), seja por ter promovido uma derrogação do texto constitucional pátrio, quando alude em seu artigo 5º, inciso LXVII que "não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel", seja por ter efetivado a revogação dos dispositivos da legislação ordinária referentes ao presente meio de execução indireta, é dizer, o artigo 4º do Decreto-lei n.º 911/69 e o artigo 1.287 do Código Civil.

A primeira tese, que tem a Convenção como derrogadora do permissivo constitucional, é encampada por Valério de Oliveira Mazzuoli. Considera o bacharel que o artigo 5º, § 2º da Carta Magna, quando preceitua que "os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte", consigna no vigente Estatuto Político um "efeito aditivo", que permite a adição ao texto constitucional dos tratados internacionais. Não, contudo, de simples tratados internacionais, mas somente daqueles – é o que infere da regra – que tratam de "direitos humanos".

Concebe, assim, serem as convenções interestatais que versam sobre direitos humanos subscritas pela República inseridas no ordenamento como normas constitucionais, ao contrário daquelas que tratam de temas outros, as quais entram na ordem pátria como leis ordinárias. Aduz, de fato, que "a cláusula do § 2º do artigo 5º da Carta da República, (sic) está a admitir que tratados internacionais de direitos humanos ingressem no ordenamento jurídico interno brasileiro a nível (sic) constitucional, e não no âmbito da legislação ordinária" [33].

Também nesse sentido é a proposição de Antônio Augusto Cançado Trindade, que, ao comentar o artigo 8º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada e proclamada pela Assembléia Geral das Nações Unidas por intermédio de sua Resolução n.º 217, A, III, de 10 de dezembro de 1.948 ("Toda pessoa tem direito a receber dos tribunais nacionais competentes remédio efetivo para os atos que violem os direitos fundamentais que lhe sejam reconhecidos pela Constituição ou pela lei"), defendeu:

"As normas nacionais e internacionais de proteção (aos direitos humanos) formam efetivamente um todo harmônico, não mais se justificando abordá-las, como no passado, de forma estanque ou compartimentalizada. Convergem em seu propósito comum e último de proteção do ser humano. No tocante ao Brasil, não deixa assim de ser estranho que, inexplicavelmente, não se esteja dando aplicação cabal ao artigo 5 (2) (sic) da Constituição Federal brasileira vigente, de 1.988, o que acarreta responsabilidade por omissão. Por força daquela disposição constitucional, os direitos consagrados nos tratados de direitos humanos em que o Brasil é parte se incorporam, ipso jure, ao rol dos direitos constitucionalmente consagrados; há que tratá-los dessa forma, como o preceitua nossa Constituição, para buscar assegurar um maior grau de proteção aos direitos humanos de todos quanto vivam no Brasil." (In Direitos humanos: conquistas e desafios. Coordenação Reginaldo Oscar de Castro. 2ª edição. Brasília: Editora Letraviva, 1.999 – página 117).

A mesma idéia é perfilhada pelo autor, ainda que não explicitamente, em obra diversa (Bardonnet, Daniel y/et Cançado Trindade, Antônio Augusto [editores/editeurs]. Derecho internacional y derechos humanos/ Droit international et droits de l’homme: libro conmemorativo de la XXIV sesión del programa exterior de la Academia de Derecho Internacional de La Haya – San José [Costa Rica], 24 de abril – 06 de mayo de 1.995. San José/La Haye: Instituto Interamericano de Derechos Humanos, Academia de Derecho Internacional de La Haya, 1.996 – páginas 87/88).

Dalmo de Abreu Dallari é igualmente partidário dessa exegese do artigo 5º, § 2º da Constituição Federal:

"Um dado de grande importância do ponto de vista jurídico é a obrigação de obedecer ao disposto no parágrafo 2º desse artigo 5º, que assim dispõe: ‘os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte’. Como fica bem claro, as normas sobre direitos e garantias constantes em tratados em que o Brasil seja parte completam as disposições do artigo 5º e neste se integram, incorporando-se, portanto, ao sistema constitucional brasileiro de direitos e garantias individuais." (In Castro, Reginaldo Oscar de. Opus citatum, página 128).

A doutrina é seguida também por Dyrceu Aguiar Dias Cintra Júnior, que escreve:

"02. Os pactos de direitos humanos na legislação brasileira. Saliente-se, primeiro, que os pactos que o Brasil ratifica passam a vigorar como lei interna.

Mais que isto, por força do art. 5º, § 2º, da Constituição Federal, o rol de direitos e garantias fundamentais daquela é completado pelos previstos nos tratados e convenções internacionais. Conseqüentemente, entre nós, por vontade constitucional, os direitos e garantias fundamentais previstos nas convenções ratificadas pelo Brasil têm status de norma constitucional." (In O Judiciário brasileiro em face dos direitos humanos. Justiça e Democracia: revista semestral de informação e debates. São Paulo: volume 02, páginas 10/33, janeiro-junho de 1.996 – página 13).

Estabelecidos esses pressupostos, conclui que o Pacto de São José da Costa Rica, por versar sobre direitos humanos (o próprio acordo, aliás, o indica: Convenção Americana sobre Direitos Humanos), perfez, ao ser ratificado pelo Brasil, uma revogação parcial do artigo 5º, inciso LXVII da Carta de Outubro, o qual passou a facultar tão somente a prisão civil do devedor inadimplente e contumaz de dívida alimentar.

A segunda tese, que tem o Pacto como revogador das normas ordinárias que facultam a constrição, possui, a seu turno, duas distintas vertentes.

Uma é seguida pelo Excelentíssimo Senhor Ministro Marco Aurélio Mendes de Farias Mello, que proclama que o Decreto n.º 678/94, ao incluir no ordenamento brasileiro as disposições do Pacto de São José da Costa Rica, fê-lo na qualidade de norma ordinária; ordinários, pois – e não constitucionais –, tornaram-se os seus preceitos. Portanto, as regras do Decreto executivo, sendo posteriores, contrárias e dotadas da mesma hierarquia normativa das regras do Decreto-lei n.º 911/69, derrogaram-no, no que permitia, em seu artigo 4º, a prisão civil em baila ("artigo 4º. Se o bem alienado fiduciariamente não for encontrado ou não se achar na posse do devedor, o credor poderá requerer a conversão do pedido de busca e apreensão, nos mesmos autos, em ação de depósito, na forma prevista no Capítulo II do Título I do Livro IV do Código de Processo Civil").

São as suas palavras: "Ainda que se pudessem colocar em plano secundário os limites constitucionais, a afastarem, a não mais poder, a possibilidade de subsistir a garantia da satisfação do débito como meio coercitivo no caso de alienação fiduciária, que é a prisão, tem-se que essa, no que decorre não da Carta Política da República, que para mim não a prevê, mas do Decreto-lei n.º 911/69, já não subsiste na ordem jurídica em vigor, porquanto o Brasil, mediante o Decreto n.º 678, de 06 de novembro de 1.992, aderiu à Convenção Americana sobre Direitos Humanos, ao chamado Pacto de São José da Costa Rica, de 22 de novembro de 1.969. É certo que somente o fez cerca de vinte e dois anos após a formalização. Entrementes, a adoção mostrou-se linear, consignando o artigo primeiro do Decreto mediante o qual promulgou a citada Convenção que a mesma há de ser cumprida tão inteiramente como nela se contém. Ora, o inciso VII (sic) do artigo 7º revela que: ‘ninguém deve ser detido por dívida’. Este princípio não limita, (sic) os mandados de autoridade judiciária competente, expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar’. Constata-se assim que a única exceção contemplada corre à conta de obrigação alimentar. (...) De qualquer forma, (...), uma vez promulgada, a convenção passa a integrar a ordem jurídica em patamar equivalente ao da legislação ordinária. Assim, a nova disciplina da matéria, ocorrida a partir de 06 de novembro de 1.992, implicou na derrogação do Decreto-lei n.º 911/69, no que se tinha como abrangente da prisão civil na hipótese da alienação fiduciária. O preceito da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, limitador de (sic) prisão por dívida passou a viger com estatura de legislação ordinária, suplantando, assim, enfoques em contrário relativamente a essa última, até então em vigor." [34]

A outra vertente é perfilhada por Paulo Restiffe Neto e Paulo Sérgio Restiffe [35]. Admitem, como igualmente o faz o Ministro Marco Aurélio, ser válida a teoria da paridade adotada pelo Supremo Tribunal Federal, a qual preceitua serem os tratados internacionais (como o de que ora cuidamos) incorporados ao ordenamento pátrio não como normas constitucionais, mas como leis ordinárias.

Entendem também que o Pacto de São José da Costa Rica, embora seja, em relação ao Decreto-lei n.º 911/69, uma norma de mesmo status (ambos são infraconstitucionais) e posterior (este entrou em vigor no dia 03 de outubro de 1.969; aquele no dia 06 de novembro de 1.992), não teve aptidão para revogá-lo, por ter o primeiro um caráter de abstração geral, não podendo contrapor-se, por esse motivo, a uma norma como a do citado Decreto-lei, dotada de um caráter específico.

Nada obstante, concluem que mesmo assim o Pacto haveria impossibilitado a constrição civil do depositário infiel em nosso direito posto, pois teria patrocinado a revogação não de uma norma constitucional nem de uma norma específica, mas de uma outra regra geral, como é aquela consignada no artigo 1.287 do Código Civil, a qual dispõe que no contrato de depósito o devedor infiel poderá ser sujeito à prisão ("seja voluntário ou necessário o depósito, o depositário, que o não restituir, quando exigido, será compelido a fazê-lo, mediante prisão não excedente a 01 [um] ano, e a ressarcir os prejuízos [artigo 1.273]").

Rogando vênia a alguns dos insignes nomes que defendem um e outro ponto de vista, devemos – novamente – mencionar estarem todos eles laborando em equívoco. É o que pretendemos demonstrar em seguida.

As regras do Pacto de São José da Costa Rica como normas de índole constitucional.

Sejam feitas, inicialmente, algumas considerações em torno da primeira conjectura exposta. Tomando por certo que os tratados cujo tema é os direitos humanos são incorporados ao ordenamento nacional como normas constitucionais, postula-se, como já o mencionamos, ter a ratificação incondicionada da Convenção Americana sobre Direitos Humanos pelo Brasil alçado ao patamar magno as disposições (todas elas) daquele acordo ultramarino; assim sendo, no planalto constitucional haveriam passado a coexistir tanto o artigo 5º, inciso LXVII da Carta Magna – que permite a prisão civil para as dívidas de alimentos e para a infidelidade do depositário – quanto o artigo 7º, §7º do Pacto de São José da Costa Rica – que permite a prisão civil apenas para os débitos alimentares. Teria sido gerada, portanto, uma antinomia, a qual deveria ser resolvida mediante a compreensão de que o segundo preceito (pactual) ab-rogou o primeiro (constitucional), pela simples aplicação do critério lex posterior derogat priori, incidente em antíteses entre normas de mesmo nível hierárquico.

A primeira objeção que pode ser levantada contra a tese está no fato de ser absolutamente arbitrária a proposição segundo a qual especialmente os tratados que versam sobre direitos humanos (ao contrário dos demais) devem penetrar na ordem jurídica brasileira com o status de normas constitucionais. Parece-nos um tanto evidente não ter a assertiva como ser legitimamente defendida, eis que pressupõe como válida a proposição política – e não jurídica – de que aqueles direitos que se convencionou cognominar de "humanos" merecem, no aspecto em debate, proteção legal diferenciada daqueles pertencentes a outras categorias jurídicas. É exatamente nessa pressuposição que está a falha da asserção em análise: falta-lhe validade, é dizer, ela não decorre logicamente de nosso sistema de direito. Com efeito, não há como se extrair do ordenamento pátrio a norma segundo a qual os tratados de direitos humanos devem integrar o corpo normativo constitucional, senão tomando-se a priori como correta a concepção subjetiva de que uma tal regra é devida, ou seja: justa. Podemos afirmá-lo pela simples razão de que a citada norma não deriva de nenhum preceito jurídico positivo, senão do ideal político de justiça daqueles que erguem – algumas vezes imbuídos de intentos louváveis, outras nem tanto – o estandarte dos direitos humanos. E, como evidente, o sentimento pessoal de justiça de um ou outro operador não é e nem pode ser erigido arbitrariamente à classe de uma norma de direito (muito embora os bacharéis, como cidadãos, possam, de lege ferenda, lançar suas sugestões ao aperfeiçoamento da ordem).

De fato, poder-se-ia perfeitamente ter como civil a afirmação de que os direitos humanos deveriam merecer um tratamento especial do sistema de direito pátrio (como realmente ocorre, em algumas ocasiões); poder-se-ia licitamente, destarte, postular que os tratados que versam sobre os mesmos direitos deveriam ser incorporados à ordem nacional como regras constitucionais. Isso é algo válido, em tese. Mas daí a dizer que eles devem, segundo uma específica regra do ordenamento vigente, receber um tal tratamento, há uma longa distância.

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Argumenta-se em contrário, postulando – como já relatamos supra – haver de fato uma norma positiva que estatui que assim deve ser: o artigo 5º, §2º da Carta Magna, o qual impera não excluírem os direitos e garantias expressos na Constituição "outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte". Inferem alguns que a partícula mediante a qual a Lei Maior aduz que os direitos e garantias do Capítulo I do Título II "não excluem" outros advindos de pactos interestatais determina a inclusão desses direitos provenientes de convenções transnacionais ao Estatuto Político, i.e., a adição desses direitos ao texto constitucional.

Trata-se de uma exegese sobremaneira equivocada de nossa Constituição, a qual, ao adverso do pretendido, não permite de forma alguma o acréscimo à sua estrutura de elementos normativos não harmônicos com a decisão política fundamental.

Há, nesse tocante, dois fatores a considerar.

Primus, é de ser notado que "não excluir" não é o mesmo que "adicionar". Verdadeiramente, quando a Carta Federal menciona que seus direitos e garantias fundamentais "não excluem" outros decorrentes de seu regime e de tratados internacionais, quer dizer simplesmente que a enumeração das prerrogativas essenciais inserta em seu texto não é exaustiva, ou seja: é conciliável com a previsão futura de outros direitos, por intermédio de expedientes normativos diversos. Disso, contudo, não se pode inferir serem esses mesmos direitos e garantias adicionados à Constituição; ela simplesmente não os afasta. [36]

Secundum que, ainda concebendo-se possível uma tal adição pela via dos tratados, há a cláusula da compatibilidade, expressa na partícula segundo a qual os direitos fundamentais do estatuto político não excluem outros "decorrentes" de seu sistema etc. Pela mesma, os direitos por assim dizer suplementares ao corpo constitucional só podem ser por ele tolerados (ou adicionados, como seja) em havendo compatibilidade normativa, em havendo a possibilidade de conciliação entre o teor da regra suplementar com a regra magna. Tal, entretanto, não se verifica no caso em apreço, no qual se tem presente uma flagrante antinomia entre os preceitos do artigo 5º, inciso LXVII da Lei Magna e do artigo 7º, §7º do Pacto de São José da Costa Rica.

Nesse segundo ponto, há um aspecto que tem sido inexplicavelmente olvidado: estamos tratando de direitos e garantias fundamentais, os quais, como se sabe, integram secções imutáveis do Estatuto Constitucional. Isso se dá em virtude de uma decisão política do legislador constituinte, que os concebeu como expressões de valores superiormente importantes, devendo, nessa qualidade, ser preservados da forma como foram originariamente concebidos, até quando subsistir a Constituição. Nesses moldes, compõem tais direitos o rol daquilo que se acordou chamar de cláusulas pétreas, as quais são insusceptíveis de emenda no sistema nacional de direito, ex vi do disposto no artigo 60, § 4º da Carta de Outubro ("não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: I – a forma federativa de Estado; II – o voto direto, secreto, universal e periódico; III – a separação dos Poderes; IV – os direitos e garantias individuais").

Por força do citado preceito, observamos que nenhuma das normas consignadas sob o Capítulo I do Título II – entre as quais está o artigo 5º, inciso LXVII – pode ser modificada por emenda constitucional. Aliás, nem mesmo a proposta de emenda sequer tendente a uma providência nesse sentido pode chegar a ser debatida nas casas congressuais. O que pode ocorrer, em relação às normas nas quais se encontram os direitos e garantias individuais, é simplesmente a adição, por ducto de emenda [37], de regras outras – jamais a supressão das já existentes.

Bem, perguntamos: se a norma do artigo 5º, inciso LXVII da Constituição Federal não pode ser derrogada ou modificada nem por força de uma emenda constitucional, como sustentar que ela o pode por força de um tratado internacional, ainda que regularmente subscrito, aprovado e ratificado? Se nem a maior autoridade legislativa vigente – o poder constituinte derivado – pode alterar o texto da norma constitucional em apreço, como defender a possibilidade de uma tal alteração pela ação do legislador ordinário, em seu poder de aprovar convenções interestatais?

Para ambas as questões a resposta seria: não há como. Parece-nos estarmos diante de um argumento definitivo em detração da tese segundo a qual os tratados que versam sobre direitos humanos são incorporados à ordem como regras constitucionais – teoria essa que, de resto, é terminantemente inconciliável com o caráter semi-rígido de nosso Estatuto Político.

Essa vergastada conjectura – seja mencionado, por oportuno – corresponde à doutrina internacionalista da primazia do direito das gentes sobre o direito interno, quando da ocorrência de conflitos normativos entre preceitos integradores das duas ordens de direitos. Em que pese a reconhecida seriedade de alguns de seus corifeus, contudo, tal doutrina não tem como ser licitamente proclamada, pois afronta violentamente a noção de soberania estatal em que estão lastrados quase todos os Estados de nosso mundo pós-colonial – em especial o brasileiro, cujo primeiro fundamento é o princípio da soberania, ex vi do disposto no artigo 1º, inciso I da Constituição Federal.

Não é o outro o sentido da preleção do Excelentíssimo Senhor Ministro José Francisco Rezek, quando aduz que "o primado do Direito das Gentes sobre o direito nacional do Estado soberano é, ainda hoje, uma proposição doutrinária. Não há, em direito internacional positivo, norma assecuratória de tal primado. Descentralizada, a sociedade internacional contemporânea vê cada um de seus integrantes ditar, no que lhe concerne, as regras de composição entre o direito internacional e o de produção doméstica." (In Direito dos tratados. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1.984 – página 461). Cita ainda que, por conseguinte, "para o Estado soberano, a constituição nacional, vértice do ordenamento jurídico, é a sede de determinação da estatura da norma jurídica convencional. Dificilmente uma dessas leis fundamentais desprezaria, neste momento histórico, o ideal de segurança e estabilidade da ordem jurídica a ponto de subpor-se, a si mesma, ao produto normativo dos compromissos exteriores do Estado. Assim, posto o primado da constituição em confronto com a norma pacta sunt servanda, é corrente que se preserve a autoridade da lei fundamental do Estado, ainda que isto signifique a prática de um ilícito pelo qual, no plano externo, deve aquele responder". (Opus citatum, páginas 461/462). [38]

Pois bem: se é certo que, nesse tema da idéia de soberania estatal em confronto com o pacta sunt servanda, cada sistema de direito pode adotar a sua particular solução, ora pendendo para o respeito irrestrito aos compromissos externos, ora favorecendo a vontade originária da nação, ora inclusive prestigiando simultaneamente ambos os valores com a mesma força, é igualmente certo, contudo, que, entre as alternativas possíveis, a opção do Estado brasileiro foi a de resguardar a integridade do núcleo de nossa autárquica decisão fundamental, mesmo em eventual prejuízo dos deveres pactuais que nos oneram.

Daí resulta lícito afirmar que, no Brasil, as normas decorrentes da incorporação de pactos internacionais são, a par de suas congêneres do direito interno – e sem embargo de sua validade extraterritorial –, inteiramente submissas à Constituição Federal. Isso se dá porque, em nosso direito, as prerrogativas legiferantes do legislador ordinário em seu exercício de aprovar tratados são tidas como completamente submissas à vontade soberana do poder constituinte originário, que, à época em que se manifestou, afastou a possibilidade de os ocasionais detentores dos poderes derrogarem os seus preceitos cogentes mediante a subscrição, aprovação e ratificação de convenções externas.

Bem, poder-se-ia cogitar que a aceitação de uma concepção como essa redundaria em negar aos tratados toda a solidez de que carecem para a satisfação de seu mister de segurança no comércio jurídico interestatal. Uma última nota, portanto, se faz necessária.

Sim, é veraz não ser o tratado para o direito brasileiro uma mera entente cordiale; não representa uma simples compreensão amigável entre nações, sem poder vinculativo. Força vinculante ele a tem de forma inconteste. Tanto assim que, no plano externo, manifestando livremente a sua vontade, o Estado pode obrigar-se em face de outras pessoas internacionais, e pelo inadimplemento de obrigações regularmente contraídas nesses termos ele pode igualmente vir a ser responsabilizado. Ratificada uma convenção regularmente subscrita, nem mesmo o confronto das regras convencionais com as disposições do direito interno – constitucional que seja – pode servir de escusa para a não observância das obrigações pactuais, como preceitua o artigo 27, primeira parte da Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados, de 23 de maio de 1.969 ("uma parte não pode invocar as disposições de seu direito interno para justificar o descumprimento de um tratado"). [39]

Alfred Verdross, ao tratar das relações e diferenças entre o direito interno e o direito internacional, postula incidentalmente a impossibilidade de invocar-se o direito pátrio em detrimento de obrigações internacionais licitamente assumidas. Suas palavras são as seguintes:

"La diferencia que separa el derecho internacional del derecho interno dentro del sistema jurídico unitario se pone claramente de manifiesto si consideramos la relación entre ambos sucesivamente desde el punto de vista de un tribunal estatal y de un tribunal internacional de arbitraje o de justicia. Si, en efecto, los tribunales estatales, en cuanto órganos del derecho estatal, han de aplicar incluso leyes contrarias al derecho internacional, los tribunales internacionales de arbitraje y de justicia, como órganos del derecho internacional, tienen que aplicar las normas de este. Para ellos las leyes estatales, como las decisiones judiciales y actos administrativos de un Estado, son meros hechos, susceptibiles de ser medidos a la luz del derecho internacional, y por consiguiente, de verse calificados según su concordancia u oposición al derecho internacional. Esto vale incluso para las leyes constitucionales de un Estado opuestas al derecho internacional. Ningún Estado puede sustraerse a una obligación jurídico-internacional invocando su derecho interno. (...) Así, por exemplo, el Tribunal Permanente de Justicia Internacional en el asunto de las Zonas francas, A/B, 46 (1.932), 167: ‘France cannot rely on her own legislation to limit the scope of her international obligations.’ Lo mismo en el asunto de los Súbditos polacos en Danzig, A/B, 44 (1.932), 24: ‘A State cannot adduce as against another state its own constitution with a view to evading obligations incumbent upon it under international law.’ También la Comisión de conciliación italo-estadounidense de 24 de septiembre de 1.956 en el asunto Treves c. República italiana, A.J., 51 (1.957), 439." (Derecho internacional publico. 3ª edición alemana, refundida y aumentada con la colaboración de Stephan Verosta, catedrático de la Universidad, embajador exed. asociado del Institut de Droit International, miembro del Tribunal de Arbitraje de La Haya y Karl Zemanek, catedrático de la Universidad de Viena. Traducción directa, con adiciones y bibliografías complementarias, por Antonio Truyol y Serra, catedrático da la Universidad Complutense de Madrid. Nueva edición puesta al día con la colaboración de Manuel Medina Ortega, catedrático de la Universidad de La Laguna. Sexta edición. Madrid, Aguilar S.A. de Ediciones, 1.978 – página 97). [40]

Mas isso se efetiva tão somente no plano externo [41], no qual tem vigência o direito das gentes em seu estado puro. No plano interno, onde vigora de forma soberana o direito homônimo, a convenção é como uma outra qualquer norma: não pode subsistir se está em desacordo com a Constituição, a qual subjuga absolutamente todas as regras que estão sob o seu âmbito de validade espaço-temporal (inclusive – lembremos – as próprias normas constitucionais [decorrentes de emenda]), bem assim como toda a ação dos poderes constituídos (inclusive dos poderes que subscrevem, aprovam e ratificam os tratados). Desta sorte, pode-se concluir que as convenções, mesmo regularmente assumidas – e assim existentes no plano externo – não obrigam internamente se não estão conforme os termos da Lei Fundamental pátria. Funciona desta maneira no direito pátrio.

Como também alhures. Salvo algumas exceções [42], representadas por Estados em que os tratados são admitidos no direito interno como regras de índole magna, o valor da soberania tem encontrado inteira guarida na imensa maioria dos estatutos nacionais, os quais resguardam os seus preceitos contra normas que lhes são materialmente contrárias, advindas de pactos de direito ultramarino.

Tanto assim é que, mesmo tratando em tese da questão, Juan Zorrilla de San Martin entende por fiel aludir que: "Pero de que sea el Poder Ejecutivo de una nación quien se entienda directamente con el Poder Ejecutivo de la otra para demandar o acordar (...), no debe deducirse que pueda hacerlo con violación de la Carta Fundamental de Estado, que no puede ser derogada por un tratado internacional, como no puede serlo por una ley" (Discursos, artículos y notas de derecho internacional publico. Montevideo: Facultad de Derecho y Ciencias Sociales, 1.955 – página 105). Evidencia, portanto, que as regras provenientes de tratados, em não integrando a Constituição, não podem obviamente contrariá-la.

São outras palavras – e é outro o vernáculo –, mas é a mesma mensagem legada por Lassa Francis Lawrence Oppenheim, quando menciona que "although the Heads of States are regularly, according to International Law, the organs that exercise the treaty-making power of the States, such treaties concluded by Heads of States, or other organs purporting to act on behalf of the State, as violate constitutional restrictions do not bind the State concerned. This is so for the reason that the representatives have exceeded their powers in concluding the treaties" (In International law: a treatise. Volume I – peace. Eighth edition. Edited by H. Lauterpacht. London: Longmans, Green and Company, 1.955 – página 887).

Por todas as considerações expendidas, temos por inválida a doutrina segundo a qual as normas advindas de tratados internacionais podem ser incorporadas ao ordenamento jurídico brasileiro como normas constitucionais; é igualmente inválida, por conseguinte, a asserção mediante a qual se postula que o artigo 7º, §7º do Pacto de São José da Costa Rica derrogou o artigo 5º, inciso LXVII da Carta Magna.

As regras do Pacto de São José da Costa Rica como normas de índole ordinária.

Em boa verdade, as normas derivadas da incorporação de convenções transnacionais ao direito interno brasileiro possuem status infraconstitucional [43], sejam ou não referentes a direitos humanos.

Tal é constatado por regra expressa de nosso direito constitucional positivo, a dizer, o artigo 102, inciso III, alínea "b" da Carta Magna, o qual preceitua ter o Supremo Tribunal Federal competência para "julgar, mediante recurso extraordinário, as causas decididas em única ou última instância, quando a decisão recorrida (...) declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal". A norma mater, ao reconhecer no citado preceito poderem ser os tratados declarados formal ou materialmente inconstitucionais, reconhece ipso facto que os mesmos lhes são inferiores sob o espectro hierárquico, encontrando-se no concerto normativo em par de igualdade com as leis ordinárias.

Trata-se da doutrina da paridade, aceita de há muito pelo Supremo Tribunal Federal, como podemos atestar pela leitura do seguinte aresto, relatado pelo Excelentíssimo Senhor Ministro José Celso de Mello Filho: "É inquestionável, dentro do sistema jurídico brasileiro, que a normatividade emergente dos tratados internacionais permite situar tais atos de direito internacional público, no que concerne à hierarquia das fontes, no mesmo plano e grau de eficácia em que se posicionam as leis internas de caráter meramente ordinário, como reconhece a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (RTJ 58/70, RTJ 83/809, ADI n.º 1.480/DF, rel. Min. Celso de Mello) e acentua o magistério da doutrina (José Alfredo Borges, in Revista de Direito Tributário, vol. 27/28, págs. 170/173; Francisco Campos, in RDA 47/452; Antônio Roberto Sampaio Dória, ‘Da Lei Tributária no Tempo’, pág. 41, 1.968; Geraldo Ataliba, ‘Apontamentos de Ciência das Finanças, Direito Financeiro e Tributário’, pág. 110, 1.969, RT; Irineu Strenger, ‘Curso de Direito Internacional Privado’, págs. 108/112, 1.978, Forense; José Francisco Rezek, ‘Direito dos Tratados’, págs. 470/475, itens 393/395, 1.984, Forense, v.g.).

Inexiste, na perspectiva do modelo constitucional vigente no Brasil, qualquer precedência ou primazia hierárquico-normativa dos tratados ou convenções internacionais sobre o direito positivo interno, sobretudo em face das cláusulas inscritas no texto da Constituição da República, eis que a ordem normativa externa não se superpõe, em hipótese alguma, ao que prescreve a Lei Fundamental da República" (extraído de seu já citado voto condutor no julgamento do recurso extraordinário n.º 249.970/RS).

Semelhante é a idéia reitora da decisão monocrática transcrita em diante, da lavra do mesmo pretor acima citado: "No sistema jurídico brasileiro, os tratados ou convenções internacionais estão hierarquicamente subordinados à autoridade normativa da Constituição da República. Em conseqüência, nenhum valor jurídico terão os tratados internacionais que, incorporados ao sistema de direito positivo interno, transgredirem, formal ou materialmente, o texto da Carta Política.

O exercício do treaty-making power, pelo Estado brasileiro – não obstante o polêmico art. 46 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados (ainda em curso de tramitação perante o Congresso Nacional) –, está sujeito à necessária observância das limitações jurídicas impostas pelo texto constitucional." (Decisão proferida no juízo de admissibilidade da ação direta de inconstitucionalidade n.º 1.480/DF, relator o Excelentíssimo Senhor Ministro José Celso de Mello Filho. Julgado no dia 26 de junho de 2.001 e publicado no Diário da Justiça da União de 08 de agosto de 2.001, na página 03).

Uadi Lammêgo Bulos, em recente obra, ecoou a doutrina de nossa Corte Magna: "Ao incorporarem-se ao ordenamento jurídico brasileiro, os direitos contidos nos tratados, pactos, convenções, cartas internacionais etc. adquirem o status de autênticos atos normativos infraconstitucionais, possuindo a hierarquia de qualquer lei ordinária, e sujeitando-se ao pórtico da supremacia da Constituição (S.T.F., ADin n.º 1.480, medida liminar, relator Ministro Celso de Mello, R.T.J., 83:809). Logo, não se inserem de modo automático à ordem jurídica, nem, tampouco, ostentam o grau de normas constitucionais. (...).

As normas de direito internacional público, contidas nos tratados, pactos, cartas, acordos, atos ou convênios, seguem o regime jurídico das prescrições de direito interno. Subordinam-se, pois, à Constituição, devendo-lhe total obediência.

Tanto na via difusa como na concentrada essas normas estão sujeitas ao controle de constitucionalidade (R.T.J., 84:724, 95:890). O julgamento da Convenção n.º 158 da OIT pelo Supremo Tribunal Federal demarcou, ‘por unanimidade, a propósito de objeções levantadas ao cabimento da ADIn pelo Presidente da República nas informações elaboradas pela Advocacia-Geral da União, a possibilidade jurídica do controle de constitucionalidade, pelos métodos concentrado e difuso, das normas de direito internacional, desde que já incorporadas definitivamente ao plano do direito positivo interno, explicitando, também por votação unânime, que esse entendimento decorre da absoluta supremacia da Constituição Federal sobre todo e qualquer ato de direito internacional público celebrado pelo Estado brasileiro. Precedentes citados: Rp 803-DF (RTJ 84/724); RE 109173-SP (RTJ 121/270).’" (In Constituição Federal anotada – acompanhada dos índices alfabético-remissivos da Constituição e da jurisprudência. 3ª edição, revista e atualizada. São Paulo: Editora Saraiva, 2.001 – páginas 360/361).

No que tange às relações entre as chamadas normas internacionais e as normas constitucionais, é der ser notado que a doutrina acatada pelo sistema pátrio é a mesma que prevalece no direito português, como de resto, aliás – à exceção do caso holandês – em todo o direito europeu. É o que nos relata Jorge Miranda:

"Normas de Direito internacional convencional e normas constitucionais. Não parece justificarem-se quaisquer dúvidas sobre o modo como no Direito português se posicionam as normas constantes de tratados internacionais perante a Constituição: posicionam-se numa relação de subordinação.

Para lá de todos os argumentos de carácter geral que possam ser retirados do princípio da soberania ou da independência nacional [preâmbulo e arts. 1º e 9º, alínea a] ou do princípio do Estado de Direito [preâmbulo e arts. 2º e 9º, alínea b], bastaria lembrar a sujeição de tais normas à fiscalização da constitucionalidade, se bem que com especificidades significativas (arts. 277º, n.º 2, 278º, n.º 1, 279, n.º 4 e 280º, n.º 3).

Bastaria ainda lembrar que, no que se refere a um tratado como o de Maastricht, de 1.992 – dito ‘Tratado da União Européia’ – a necessidade de se proceder a prévia revisão constitucional para ele poder ser aprovado. Se este tratado valesse (ou valesse desde logo) como base de um novo e superior Direito, ele vincularia os Estados, e entraria em vigor independentemente disso e, depois, seriam as normas constitucionais desconformes que seriam tidas por ineficazes ou por revogadas; ora, não foi isso que aconteceu." (In As relações entre ordem internacional e ordem interna na actual Constituição portuguesa. Arquivos do Ministério da Justiça. Brasília: volume 188, páginas 131/155, julho/dezembro de 1.996 – páginas 141/142).

Ainda assim, há aqueles – já o relatamos – que encontram obstáculos à utilização da prisão civil do devedor fiduciante como meio de execução indireta do mister que o onera. Mesmo aceitando-se por escorreita a teoria da paridade – e mesmo, portanto, tendo-se as normas da Convenção Americana sobre Direitos Humanos como ordinárias –, defende-se que a medida seria inexeqüível, eis que o artigo 7º, §7º do tratado em referência, na qualidade de regra ordinária posterior, teria revogado outros preceitos de mesmo nível normativo, cronologicamente mais vetustos, disciplinadores da aplicação da medida constritiva em trato. Nesses moldes, conforme se tome a mencionada regra internacional como dotada de caráter geral ou especial, ela teria ab-rogado ou o artigo 1.287 do Código Civil brasileiro (como norma geral) ou o artigo 4º do Decreto-lei n.º 911/69 (como norma especial).

Esse é mais um conjunto de proposições que não podem ser defendidas. Dizemo-lo pela simples razão de que o artigo 7º, §7º do Pacto de São José da Costa Rica é inconstitucional e, nessa qualidade, não produz qualquer efeito na ordem vigente. É inclusive completamente ocioso analisar, no ensejo, se a mencionada regra ultramarina possui caráter geral ou especial – e se, assim, teria capacidade para substituir o espaço normativo ocupado pelo artigo 1.287 do Código Civil, ou aquele em que jaz o artigo 4º do Decreto-lei n.º 911/69; não importa em absoluto sabê-lo, eis que a referida norma, em não sendo constitucional, não tem aptidão para revogar norma alguma, ou seja: não tem aptidão para inovar na ordem jurídica.

Veja-se, a respeito, Clève, Clèmerson Merlin. A fiscalização abstrata da constitucionalidade no direito brasileiro. 2ª edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2.000 – página 249 e seguintes. Tamanho é o desprezo da ordem jurídica em relação ao ato inconstitucional que o próprio Supremo Tribunal Federal, contrariando antigo cânon do direito comum pátrio, entendeu ter a decisão que declara em ação direta a inconstitucionalidade de ato legislativo verdadeiro efeito repristinatório, é dizer: restaurador da eficácia da norma revogada pela regra inválida. Nesse sentido, seja consultado o teor da decisão monocrática do Excelentíssimo Senhor Ministro José Celso de Mello Filho no juízo de admissibilidade da ação direta de inconstitucionalidade n.º 2.216/PE, publicada no Informativo S.T.F. n.º 224, de 16 a 20 de abril de 2.001 – páginas 03/04.

De fato, constata-se haver antitético conflito material entre o disposto no preceito em apreço e aquele outro inserto no artigo 5º, inciso LXVII da Constituição Federal: este permite haver a prisão civil tanto no caso do depositário infiel quanto no caso do débito de alimentos; aquele faculta a condução coercitiva somente na hipótese da dívida alimentar. Flagrante é a inconstitucionalidade do artigo 7º, §7º do Pacto de São José da Costa Rica; tal regra, nessa qualidade, não pode ser tida como derrogadora nem do artigo 1.287 do Código Civil nem do artigo 4º do Decreto-lei n.º 911/69, pela simples razão de que norma inconstitucional não revoga norma vigente.

Sem embargo desta evidência, ainda há argumentação em contrário, a postular não existir entre a norma constitucional e a pactual qualquer incompatibilidade. Defende-se que aquilo que o artigo 5º, inciso LXVII da Carta de Outubro realmente fez foi, depois de vedar a priori a prisão por dívidas, facultar (e não ordenar) que o legislador ordinário estabelecesse a prisão civil nos casos indicados. Com esteio nessa exegese, não haveria qualquer antítese entre a regra magna e aquela do artigo 7º, §7º da Convenção Americana sobre Diretos Humanos: esta, enquanto norma ordinária, teria simplesmente renunciado à permissão constitucional de instituir (ou não) a constrição para o depositário infiel.

Mais uma hipótese inválida. O que fez a Constituição não foi permitir que o legislador ordinário, eventual e facultativamente, instituísse a prisão civil, a qual seria meramente tolerada pela Lei Fundamental nas situações mencionadas. O que ela verdadeiramente fez foi instituir, direta e incondicionalmente a prisão nesses casos; a constrição, nesses moldes, não seria simplesmente aceita, mas desejada pela Carta Federal para o devedor contumaz de alimentos e para o depositário infiel.

Irrepreensíveis, nesse sentido, são as palavras do Excelentíssimo Senhor Ministro José Carlos Moreira Alves, decano de nossa Corte Constitucional: "Acrescento outro fundamento de ordem constitucional para afastar a pretendida derrogação do Decreto-lei n.º 911/69 pela interpretação dada ao artigo 7º, item 7º desse Pacto (‘Ninguém deve ser detido por dívida. Este princípio não limita os mandados de autoridade judiciária competente expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar’). Como se vê do teor desse dispositivo, que ingressou em nosso ordenamento jurídico como norma infraconstitucional, se se entender que ele, por haver apenas excepcionado da vedação da prisão civil o inadimplemento da obrigação alimentar, revogou, tacitamente, a legislação infraconstitucional interna relativa à prisão civil do depositário infiel em caso de depósito convencional ou legal (este com referência, inclusive, aos penhores sem desapossamento e à alienação fiduciária em garantia), essa interpretação advirá do entendimento, que é inconstitucional, de que a legislação infraconstitucional pode afastar exceções impostas diretamente pela Constituição independentemente de lei que permita impô-las quando ocorre inadimplemento de obrigação alimentar ou infidelidade do depositário. Por isso mesmo, o inciso LXVII do artigo 5º da Carta Magna é categórico ao dizer que não haverá prisão civil, salvo (o que significa dizer que haverá) a (o que significa prisão) do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a (o que também significa prisão) do depositário infiel. Não diz esse dispositivo que não haverá prisão civil, podendo a legislação permitir que nesses dois casos, ou apenas em um deles, haja essa modalidade de prisão. Diz, sim, que nesses casos – que independem de regulamentação infraconstitucional (a Carta Magna estabeleceu até as hipóteses em que o inadimplemento da obrigação alimentar se enquadra nessa exceção) – haverá prisão civil, sendo que esta, sim, é que, para dar-se efetividade a esse texto constitucional na sua parte positiva (que é a das duas exceções à negativa), se não estivesse regulamentada – e o está – teria de sê-lo." [44]

Nesses termos, percebe-se que o que o artigo 7º, §7º da Convenção Americana sobre Direitos Humanos representa na prática, quando reduz a somente uma as duas hipóteses de prisão civil consignadas no Estatuto Político, é uma ilícita limitação ao regular exercício de uma prerrogativa legiferante constitucionalmente estabelecida. De toda forma, portanto, a norma pactual em análise será inconstitucional. De toda forma – conclui-se – nenhum efeito jurídico válido poderá produzir.

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Sobre o autor
Ivan Carvalho Montenegro da Rocha

Defensor Público Estadual(CE)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROCHA, Ivan Carvalho Montenegro. A prisão civil na alienação fiduciária em garantia. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 322, 25 mai. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5200. Acesso em: 24 abr. 2024.

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