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A prisão civil na alienação fiduciária em garantia

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O que nos cabe no presente esforço é traçar brevíssimas linhas acerca da prisão civil do devedor na alienação fiduciária em garantia, sua constitucionalidade e a sua eventual abolição pela referida norma de direito internacional.

Sumário: I. Introdução. II. Da prisão civil na alienação fiduciária em garantia e sua constitucionalidade. III. Subsistência da possibilidade da prisão civil do devedor fiduciante frente ao Pacto de São José da Costa Rica. IV. Conclusões. V. Bibliografia. VI. Anexo Legislativo


I. Introdução

Há mais de três décadas se tem falado acerca do contrato de alienação fiduciária em garantia, que entrou em nosso sistema obrigacional típico por força da Lei n.º 4.728, de 14 de junho de 1.965. Sua estrutura, como se sabe, "transfere ao credor o domínio resolúvel e a posse indireta da coisa móvel alienada, independentemente da tradição efetiva do bem, tornando-se o alienante ou devedor em possuidor direto e depositário com todas as responsabilidades e encargos que lhe incumbem de acordo com a lei civil e penal."

O conceito legal imediatamente exposto acima advém do artigo 66 da Lei n.º 4.728/65, com redação dada pelo Decreto-lei n.º 911, de 1º de outubro de 1.969. Conferir, mais modernamente, a disciplina da fidúcia perfeita pela Lei n.º 10.406, de 10 de janeiro de 2.002, o novo Código Civil brasileiro (artigo 1.361 e seguintes). Para o que no azo nos interessa, a edição do citado diploma é irrelevante, eis que o regramento que perfez da propriedade fiduciária é em tudo semelhante ao existente até então. O pacto fiduciário, deveras, continua transferindo a propriedade resolúvel da coisa dada em garantia ao credor (artigo 1.361, caput) e o paciente continua sendo qualificado como depositário dela (artigo 1.363, caput). Além disso, a infidelidade do devedor fiduciante continua – e não poderia ser diferente, como veremos infra – a ensejar a sua prisão civil (artigo 652).

O debate suscitado pelo contrato, entretanto, sofre atualmente um novo impulso, sendo permeado por paixões e arroubos vistos somente quando a figura veio a lume em nosso ordenamento, ocasião em que atirou pedras na placidez desse lago de tradicionalíssimos e imemoriais institutos jurídicos que é o direito privado.

Qual a razão desse novo vigor?

Basicamente a mesma da chama que alumiou a querela original. À vista da literatura pertinente, constata-se que a maior parte das discussões que presentemente rondam a alienação fiduciária ainda decorre da caracterização do devedor como depositário do bem sobre o qual recai a avença, e de todas as conseqüências que do fato adsurgem: se o depositário pode fruir do bem, se o credor pode mover em desfavor de sua contraparte a ação de depósito etc. Nesse quadro, as atenções voltam-se de forma especial para a possibilidade da prisão civil do sujeito passivo inadimplente, a qual estaria encartada na previsão do artigo 5º, inciso LXVII da Constituição Federal de 05 de outubro de 1.988, cuja literalidade menciona que "não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel".

Mas o tema não volta à discussão nos mesmos moldes de outrora: dia a dia novos aspectos são provocados, e alongam indefinidamente polêmicas que se achavam falsamente superadas.

No momento, o que mais urgentemente reclama exame é o confronto da dogmática referente ao negócio e a entrada em vigor, entre nós, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, o Pacto de São José da Costa Rica, que, ao preceituar em seu artigo 7º, §7º que "ninguém deve ser detido por dívidas" e que "este princípio não limita os mandados de autoridade judiciária competente expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar", teria derrogado a permissão constitucional inserta do dispositivo mencionado, que alude à prisão civil do devedor de alimentos e do depositário infiel.

O que nos cabe no presente esforço é traçar brevíssimas linhas acerca da prisão civil do devedor na alienação fiduciária em garantia, sua constitucionalidade e a sua eventual abolição pela referida norma de direito internacional.

*    *    *

Antes, contudo, de iniciarmos o nosso labor, uma nota se faz necessária: se, como aludimos supra, admitimos que já se tem discutido as questões relativas à alienação fiduciária em garantia há mais de três décadas, seríamos forçados a reconhecer a mais completa inutilidade de um escrito como este.

Isso hipoteticamente, apenas. Sem embargo de já termos à disposição um rol considerável de obras que versam sobre a matéria em pauta, pensamos estar trazendo à discussão alguns relevantíssimos aspectos, os quais têm sido solenemente olvidados, deliberada ou culposamente.

Daí a utilidade de nosso parecer.

Se ele servir à ilustre tarefa de esclarecer ou por em pauta essas peculiaridades que têm ficado fora do debate, o propósito que moveu a sua feitura estará plenamente satisfeito.


II. Da prisão civil na alienação fiduciária em garantia e sua constitucionalidade.

Originada remotamente a partir da fiducia do Direito Romano [1], a alienação fiduciária em garantia, como notório, é aquele negócio jurídico em que alguém, recebendo financiamento para a aquisição de um qualquer bem, aliena esse mesmo bem ao agente financiador, em garantia do pagamento da dívida contraída. [2] Na avença, aquele que recebe o financiamento e aliena a coisa em garantia é chamado alienante ou fiduciante, ao passo que o credor ou financiador que adquire a res dada em segurança é denominado fiduciário. A principal característica desse contrato reside no fato de que o devedor fiduciante, ao adquirir a propriedade de algo, transfere, ato contínuo, seu domínio resolúvel e sua posse indireta ao credor fiduciário, ficando ele, o reus debendi, como possuidor direto e depositário da coisa trasladada. E é justamente por esse peculiar mecanismo, caracterizador do elo negocial, que se afigura como possível a prisão civil na execução do contrato de alienação fiduciária, i.e., pelo fato de que, na alienação, o devedor fiduciante aparece como depositário da coisa que pretende adquirir, até o momento da prestação integral do preço, ocasião em que há uma espécie de restituição simbólica do bem dado em garantia.

Na qualidade de depositário – sabe-se – fica ele na contingência de devolver a res ao depositante, no caso de inadimplemento contratual, sob pena de ser considerado infiel. E, nesse caso, seu status de parte faltosa faz com que ele possa sofrer a medida executiva indireta [3] da prisão civil, permitida pela Carta Magna (artigo 5º, inciso LXVII). Trata-se de uma providência coercitiva, que se destina a constranger o devedor à restituição da coisa. É espécie de prisão civil ou por dívida, mas não é no debitum mesmo que encontra a sua razão de ser, senão no depósito que se verifica entre as partes: é da natureza desse pacto o retorno do bem às mãos do proprietário, e se o devedor algum óbice atravessa, se algum empeço opõe à devolução da coisa, então é coagido com a restrição de sua liberdade de locomoção. A infidelidade, pois, é o fundamento da prisão civil do depositário, e não – reitere-se – o só fato de ele dever.

Veja-se, nesses moldes, o acórdão unânime da Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento, em 25 de agosto de 1.993, do habeas corpus n.º 2.033/RS, relator o Excelentíssimo Senhor Ministro Edson Carvalho Vidigal, o qual assevera que "a Constituição Federal, em seu artigo 5º, inciso LXVII, não permite a prisão por dívida, exceto em caso de pensão alimentícia e de depositário infiel. O alienante fiduciário é possuidor direto e depositário, com todas as responsabilidades e encargos legais. Daí a prisão civil, não pelo inadimplemento relativo ao mútuo, mas pela infidelidade resultante do não cumprimento das obrigações decorrentes do depósito" (publicado no Diário da Justiça da União de 20 de setembro de 1.993, na página 19.185).

Na categoria de meio coercitivo de se compelir o devedor a cumprir a sua obrigação, a prisão civil na alienação fiduciária em garantia já foi objeto de incontáveis críticas dos doutos, estejam eles nas bancas de advocacia, nos tribunais ou mesmo nas academias superiores de Direito.

Aos que censuram o expediente, há, grosso modo, três aspectos fundamentais, que obstam a sua utilização em nossa práxis judiciária, considerando-se a situação dele perante o direito interno.

O primeiro de seus argumentos é que o Decreto-lei n.º 911/69 [4], ao "equiparar" o devedor da alienação fiduciária ao devedor do contrato de depósito, ou, noutras linhas, ao equiparar o devedor fiduciante ao depositário, promoveu uma verdadeira aberratio legis. Alega-se que o fato, além de perfazer uma severa violação de toda a nossa tradição legislativa, redunda em uma falaciosa tentativa de inserir artificialmente o devedor fiduciante na moldura da previsão constitucional de prisão civil do depositário infiel. Estaria configurada, portanto, uma irrazoável ficção jurídica que, como tal, não poderia ser tolerada.

Paradigmática, nesse tocante, é a preleção do Excelentíssimo Senhor Ministro Adhemar Ferreira Maciel, quando aduz que "o instituto da alienação fiduciária em garantia se traduz em uma verdadeira aberratio legis: o credor fiduciário não é proprietário; o devedor fiduciante não é depositário; o desaparecimento involuntário do bem fiduciado não segue a milenar regra da res perit domino suo. Talvez pudesse configurar em (sic) ‘penhor sine tradicione rei’, nunca em (sic) ‘depósito’. O legislador ordinário tem sempre compromisso com a ordem jurídica estabelecida. Na verdade, o que a lei (Decreto-lei n.º 911/69, ao alterar o artigo 66 da Lei do Mercado de Capitais) fez foi reforçar a garantia contratual mediante prisão civil, o que contraria toda nossa tradição jurídica, que tem raízes profundas no sistema jurídico ocidental." [5]

A mesma via é percorrida pelo Excelentíssimo Senhor Ministro José Paulo Sepúlveda Pertence, que embora reconhecendo ser "manifesto que a Constituição excetuou, da proibição de prisão por dívida, a prisão do inadimplente de obrigação alimentar e a do depositário infiel" e que "a extensão dessa norma de exceção (...) pode sofrer mutações ditadas pelo legislador ordinário e até por tratado", preleciona, contudo, que "ao concretizar os seus termos – isto é, os conceitos de obrigação alimentar ou de depositário infiel – o legislador não pode, mediante ficções ou equiparações, ampliar arbitrariamente o texto constitucional, além da opção constituinte nele traduzida"; conclui, assim, que não se pode "estender, além da marca que há de ser buscada dentro da própria Constituição, o âmbito conceitual do depósito" – precisamente o que teria sido feito pelas "normas do Decreto-lei n.º 911/69, que atribui (sic) ao devedor inadimplente da operação de crédito garantida pela alienação fiduciária as responsabilidades do depositário." [6]

A seu turno, postula Nelson Nery Júnior, referindo-se ao artigo 4º do Decreto-lei n.º 911/69 que "a equiparação feita pela norma, do devedor ao depositário, não constitui verdadeiro e puro contrato de depósito", menciona ainda que "a equiparação apenas permite a utilização da ação de depósito, mas sem a conseqüência da prisão civil do devedor fiduciante." Arremata, portanto, que a vergastada norma "transforma o devedor fiduciante em ‘depositário’, rompendo com todo o sistema privatístico (sic) do contrato de depósito". [7]

Nesse mesmo sentido é a doutrina de Waldírio Bulgarelli, que, dissertando sobre a inserção do contrato em nosso sistema, menciona que "na verdade – não obstante podendo até admitir-se como válidas (o que não são) as razões invocadas para justificar a conformação desse instituto entre nós – o que ocorreu foi um acentuado reforço da garantia nas operações com as financeiras, chegando-se ao extremo de considerar o simples comprador de uma mercadoria a crédito como depositário e, como tal, se inadimplente, levá-lo à prisão". [8]

Simetricamente, refere Luiz Augusto Beck da Silva, ao aludir à possibilidade de o credor fiduciário intentar uma ação de depósito, caso não encontre o bem alienado na posse do reus debendi, que essa é uma "medida extrema, que poderá culminar com a prisão do fiduciante, equiparado que está à figura do depositário". [9]

Defende José Geraldo de Jacobina Rabello, por sua vez, que "o valor liberdade, como direito de ir e vir, situa-se em plano (sic) de importância infinitamente superior ao do desenvolvimento econômico, com que se justifica, na alienação fiduciária em garantia, a equiparação do devedor fiduciante ao depositário para fins de prisão civil". [10]

Em consonância está o entendimento de Valério de Oliveira Mazzuoli, para quem é correto "afirmar que equiparando a lei o devedor fiduciante ao depositário, estão sendo, nesse contexto, prejudicados os interesses do devedor", pois "as normas legais reguladoras do depósito (CC, arts. 1.265/1.287), quando tratam da prisão civil do depositário infiel, estão por sua vez restringindo os direitos deste, de modo que, (sic) não seria lícito estender-se uma restrição de direitos, por equiparação". Aduz ainda ser inconcebível a extensão promovida pelo "artigo 66 da Lei n.º 4.728/65, que equipara o devedor a um depositário, atribuindo-lhe inclusive, (sic) todas as obrigações que a este competem." [11]

Mas não é só. Há ainda um segundo argumento por demais corrente, aposto contra a possibilidade de verificar-se a prisão civil do devedor fiduciante na alienação fiduciária. Trata-se da defesa de que a permissão constitucional em trato pertine tão somente àqueles casos em que há um verdadeiro contrato de depósito – o nomeado depósito típico –, e não a quaisquer outras modalidades legalmente assemelhadas – os chamados depósitos atípicos.

O já citado Valério de Oliveira Mazzuoli proclama que "a Constituição Federal de 1.988, (sic) somente permite a prisão por dívida civil, (sic) no caso de infidelidade do depositário propriamente dito, ou seja, nos casos estritos de depósito, entendido este na sua conceituação clássica, genuína, isto é, naquelas hipóteses em que alguém, por força de imposição legal ou de contrato, recebe objeto móvel alheio para guardá-lo, até que o depositante o reclame, e não nos casos de depósitos atípicos instituídos por equiparação visando apenas reforçar as garantias em favor dos credores." [12]

Por igual, Nelson Nery Júnior doutrina que "a Constituição Federal, artigo 5º, inciso LXVII somente permite a prisão civil do verdadeiro depositário infiel" e que, portanto, "o devedor fiduciante não pode ter sua prisão civil decretada porque não é verdadeiro depositário, não se lhe aplicando a exceção". [13]

Harmônica é a concepção do Excelentíssimo Senhor Ministro Athos Gusmão Carneiro, quando menciona que "inobstante respeitabilíssimas opiniões em contrário, logo declaro meu entendimento de que a excepcional prisão civil por dívidas é limitada aos casos em que está em perigo um valor constitucionalmente conceituado como superior ao próprio valor ‘liberdade’ – ou seja, o direito à vida, nos casos da obrigação alimentícia, e o respeito à confiança e à boa-fé empenhada na guarda de coisa alheia, nos casos de depositário infiel", ressaltando, "todavia, neste segundo caso, que se cuide do depósito regular propriamente dito, aquele previsto no Código Civil (artigo 1.287), sob pena de, em ampliando a compreensão do contrato de depósito e ao mesmo tempo equiparando ‘depósitos’ atípicos, estaremos a placitar, pura e simplesmente, a prisão por dívidas, em surpreendente retrocesso aos tempos mais primevos do direito romano, ao nexum e à manus injectio". [14]

Por último, costuma-se levantar à exeqüibilidade da prisão civil que no azo está sob análise ainda mais um óbice – desta vez de ordem política. Menciona-se que a composição normativa da Lei n.º 4.728/65 com o Decreto-lei n.º 911/69 criou, a fim de atender aos mais inconfessáveis interesses das instituições financeiras, uma figura contratual absolutamente irrazoável, que atribui a uma de suas partes acentuadas vantagens e à outra pesadíssimos gravames obrigacionais. Objeta-se – ora clara, ora subliminarmente – que, em sendo o próprio contrato de alienação fiduciária em garantia um esquema pactual injusto, injusta também seria a constrição civil dele originada; a medida, destarte, na qualidade de providência atentatória ao princípio da justiça, não poderia ser legitimamente aplicada.

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É sintomática a opinião do Senhor Juiz Talai Djalma Selistre, do Tribunal de Alçada do Estado do Rio Grande do Sul, que, ao funcionar como relator no julgamento de uma ação de busca e apreensão lastrada em um contrato de fidúcia, jactou as seguintes palavras: "O instituto da alienação fiduciária em garantia, evidentemente, foi introduzido em nosso ordenamento jurídico para atender os interesses das financeiras, estabelecendo segurança no trato dos financiamentos diretos ao consumidor. O móvel legislativo foi garantir os mútuos destinados à aquisição de bens. E a garantia resultou estabelecida, não só com a atribuição de uma propriedade resolúvel ao credor fiduciário, a lhe ensejar a busca e apreensão do bem objeto do contrato, mas principalmente por fixar a posição jurídica do fiduciante como a de um depositário, permitindo, por conseguinte, que, inadimplente, sem condições de se consolidar a propriedade e a posse do credor, seja compelido ao cumprimento da obrigação sob a ameaça de prisão. E aqui está o aspecto fundamental: a possibilidade de prisão do fiduciante por dívida civil. Esta coação, atingindo a própria pessoa do obrigado, é medida excepcional e limitada por preceito constitucional. Então, não importam os interesses econômicos da nação e das entidades financeiras. Não importam as regras da legislação ordinária e as normas administrativas que possam autorizar a utilização do instituto em outras situações. O que realmente importa é a garantia da liberdade do cidadão, que não pode ser atingida por interesses outros ou por entendimentos decorrentes de abrangência duvidosa". [15]

O Excelentíssimo Senhor Ministro Carlos Mário da Silva Velloso, por igual, ressalta que "a ficção instituída pelo Decreto-lei n.º 911/69 nem foi objeto de discussão no Congresso Nacional. Trata-se de Decreto-lei editado por uma junta militar que foi levada a isso, certamente, pelos que tinham interesse econômico na questão, o interesse de resolver uma obrigação civil com a prisão do comprador inadimplente. Não basta, para o Decreto-lei n.º 911/69, as garantias próprias da alienação fiduciária. Inventou-se a prisão do devedor". [16] Entende, nesses termos, o mecanismo como "odioso", concluindo, portanto, como inviável a prisão civil do paciente na alienação fiduciária.

Não é outra a concepção de Waldírio Bulgarelli, que, ao dissertar sobre as origens políticas do instituto, menciona que "constituiu-se numa fórmula engendrada para reforçar as garantias dos financiamentos realizados através de sociedades financeiras, para as quais não eram bastante as tradicionais garantias asseguradas pelo penhor ou pela venda com reserva de domínio". Cita ainda que "de posse de tal mecanismo jurídico (...), as sociedades financeiras, atribuindo-se a exclusividade de seu uso, acionam-no em toda a sua intensidade, posto que (sic) ele lhes confere vários tipos de ações, que elas, a seu alvedrio e a seu talante, escolhem a que melhor couber na oportunidade, para sempre se ressarcir, jamais perdendo, do que resulta que, neste país, a atividade do crédito – ao contrário do que ocorre no resto do mundo – passa a ser uma atividade em que não há risco para o banqueiro; mesmo que para tanto tivesse sido necessário escavar, desenterrando o esquecido instituto da fidúcia, na sua projeção de propriedade e de garantia". [17] Proclama, por fim, no que tange à situação do pólo passivo, que "ao infeliz fiduciante (devedor) resta bem pouco, posto que (sic) nunca se viu tão grande aparato legal concedido em favor de alguém contra o devedor". [18]

A seu turno, preleciona José Geraldo de Jacobina Rabello, após definir como "utilitaristas" a legislação, a doutrina e a jurisprudência que autorizam a prisão civil do devedor fiduciante em nome do resguardo de valores desenvolvimentistas, que "o espírito utilitarista, porém, não pode, por si mesmo, isoladamente, justificar a ação do legislador, sobretudo quando a liberdade é com ele posta em xeque", aduzindo ainda que "uma tal posição (utilitarista) não guardaria compatibilidade com a justiça e a dignidade, quando o Direito deve ser digno, acima de tudo, e justo". [19]

Essas, em breve súmula, as três considerações que de forma mais recorrente são levantadas contra a constrição em causa.

Em que pese a autoridade de alguns dos nomes citados, contudo, somos compelidos a mencionar que nenhuma das objeções à prisão civil do reus debendi na alienação fiduciária em garantia citadas acima é validamente sustentável. Vejamos o porquê.

O Decreto-lei n.º 911/69 e o problema da equiparação do devedor fiduciante ao depositário.

Quanto à primeira objeção, i.e., o argumento segundo o qual a equiparação do devedor na alienação fiduciária ao depositário é uma verdadeira "aberração legal", devemos traçar algumas poucas linhas.

Em princípio, uma nota se faz necessária: devemos ter como premissa que as formas legislativas válidas – a dizer, aquilo que o legislador constituinte estabelece em sua margem de integral discricionariedade, e aquilo que o legislador ordinário estabelece em sua constitucionalmente limitada esfera de ação – são absoluta, indiscutível e terminantemente arbitrárias, no sentido de que podem ser construídas segundo os critérios de conveniência política do feitor da norma, nos lindes em que lhe é dado atuar. Não há, para a atividade legislativa, qualquer limite exógeno de respeito a uma ordem jurídica preestabelecida. Não há, igualmente, qualquer dever de que seja respeitada uma determinada tradição legal. Os novos regramentos dados às questões de direito guardam uma necessidade de prestar deferência apenas às normas hierarquicamente superiores – respeitadas estas, não há que se falar em invalidade, inclusive porque nada impele juridicamente a que as normas de mesma hierarquia sejam editadas em desacordo umas com as outras.

Nesse sentido é a doutrina de Norberto Bobbio, eminente jurista, filósofo e cientista político peninsular, que entende que o dever de que as regras de mesmo status hierárquico devem guardar compatibilidade umas com as outras – o dever de coerência – é um dever de justiça, mas não propriamente jurídico. Conferir, a respeito, a sua Teoria do ordenamento jurídico (5ª edição. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1.994), página 110 e seguintes.

De fato, sabe-se que as normas jurídicas não possuem nenhum óbice a tratar de determinada matéria de uma tal ou qual forma, senão aquele óbice endógeno, encontrado nelas mesmas, segundo sua particular organização hierárquica. Pode-se falar, assim, que o conteúdo das regras de um dado ordenamento constituído só poderá ser balizado por aquilo que outras regras – superiores, no caso – projetam do topo da própria escala normativa; quanto a estas últimas, elas por nada são balizadas – ao menos não juridicamente. Noutras palavras, é lícito dizer que cada uma das normas infraconstitucionais em espécie deve respeito apenas àquelas outras hierarquicamente mais graduadas, estas às outras ainda mais graduadas e estas últimas tão somente à constituição; esta, por seu turno, a nada deve respeito. Assim é o ordenamento, tal qual é atualmente concebido pela ciência do Direito.

Estabelecidas essas noções, retornemos ao caso concreto.

Mencionamos acima que o Decreto-lei n.º 911, de 1º de outubro de 1.969 (publicado no Diário Oficial da União de 03 de outubro de 1.969), ao entrar em vigor, promoveu uma substancial inovação no sistema de garantias vigente em nosso ordenamento, contrariando – isso é inconteste – a lógica e a estrutura de diversos institutos insertos em nossa legislação ordinária.

Pergunta-se, contudo: não poderia o Decreto-lei n.º 911/69 ter promovido uma tal mudança em nossa legislação ordinária? Havia um mister de que permanecessem incólumes os regramentos referentes a outros institutos, criados por regras de mesmo status normativo?

Não, não havia. Admitir-se o contrário, ou seja, aceitar que as leis não podem ser revogadas por outras normas pertencentes ao mesmo patamar hierárquico – e que, na situação de que ora cuidamos, o Decreto-lei n.º 911/69 não poderia ter desrespeitado uma "tradição legislativa" – seria o mesmo que entender só poder o regramento social institucionalizado sofrer mudanças com uma alteração constitucional, o que é um evidente absurdo. Dentro do permitido pela ordem magna, o legislador ordinário tem a faculdade de alterar discricionariamente a forma com que algo é tratado juridicamente. Não fosse assim, negar-se-ia vigência ao princípio lex posterior derogat priori, segundo o qual a norma posterior, de mesma hierarquia, derroga a anterior, naquilo que lhe for contrária. Não fosse assim, aliás, seria a atividade legiferante de todo inútil, pois que os respectivos órgãos não poderiam jamais dispor sobre matéria alguma que houvesse sido (e todas elas o foram, expressa ou implicitamente) objeto de um qualquer pronunciamento legislativo anterior.

Ora, que na alienação fiduciária o devedor e o credor não são, respectivamente, proprietário e depositário, segundo uma dogmática tradicional, derivada dos conceitos clássicos de propriedade e depósito, isso é algo que nos parece um tanto evidente. Mas a questão é: será que a legislação criadora de um determinado contrato não tem a prerrogativa de modificar as formas anteriormente estabelecidas para as atividades negociais típicas? Obviamente que tem. No que tange ao Decreto-lei n.º 911/69, é exatamente o que ocorre; sendo certo que ele só devia respeito, à época de sua promulgação, à Constituição Federal àqueles dias em vigor, então podemos dizer que sim, ele de fato tinha uma tal prerrogativa de modificar a legislação vigente.

Nesses termos, somos forçados a aceitar que o original mecanismo contratual criado pelo Decreto-lei n.º 911/69, a dizer, o engenho jurídico segundo o qual "a alienação fiduciária em garantia transfere ao credor o domínio resolúvel e a posse indireta da coisa móvel alienada, independentemente da tradição efetiva do bem, tornando-se o alienante ou devedor em possuidor direto e depositário com todas as responsabilidades e encargos que lhe incumbem de acordo com a lei civil e penal", é perfeitamente válido, já que não devia respeito a nenhuma forma normativa anteriormente existente. Ele poderia perfeitamente ter contrariado – e de fato contrariou – uma ou outra tradição legislativa (aliás, esse resguardo que parte da doutrina tem à "tradição legislativa" é algo que nos parece, de resto, um escancarado fetiche legalista).

Postas essas premissas, podemos concluir estarem aqueles que concebem a "equiparação" promovida pelo Decreto-lei n.º 911/69 como uma "aberração legal" incorrendo em um imenso erro de perspectiva. E isso pelo simples e só fato de que o que o Decreto-lei n.º 911/69 realmente fez não foi equiparar o devedor na alienação a um depositário comum, mas sim constituí-lo de fato um depositário, na mesma medida que está presente nos casos ordinários, já conhecidos de há muito pelo direito privado.

Atento a uma tal realidade, o Excelentíssimo Senhor Ministro Francisco Manoel Xavier de Albuquerque, ao funcionar como relator no julgamento do recurso extraordinário n.º 75.221/GB, estabelecendo precedente para a jurisprudência futura do Supremo Tribunal Federal, doutrinou que "não ofende a Constituição a decretação da prisão civil do devedor, alienante fiduciário, porque a própria lei o constitui depositário (artigo 66 da Lei n.º 4.728/65, com a redação do Decreto-lei n.º 911/69)". (Acórdão unânime da Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal no recurso extraordinário n.º 75.221/GB, publicado na Revista Trimestral de Jurisprudência 64/283). Em harmonia está o acórdão unânime da Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal no recurso extraordinário n.º 80.789/SP, relator o Excelentíssimo Senhor Ministro João Baptista Cordeiro Guerra, publicado na Revista dos Tribunais 476/266.

Há, nesse mesmo espectro, algumas decisões também do Superior Tribunal de Justiça, embora – é verdade – não representem o entendimento da maioria dos Ministros. Ad exempla, pode-se citar o acórdão unânime da Quinta Turma daquela corte, no julgamento do habeas corpus n.º 4.363/SP, relator o Excelentíssimo Senhor Ministro Cid Flaquer Scartezzini, o qual preleciona que "é jurisprudência assente na egrégia Suprema Corte que a prisão civil do depositário infiel na alienação fiduciária em garantia não ofende o princípio constitucional do artigo 5º, inciso LXVII, porque a própria lei o constitui depositário" (julgado no dia 25 de março de 1.996 e publicado no Diário da Justiça da União de 24 de junho de 1.996, na página 22.779). Conferir ainda os seguintes julgados: acórdão por votação majoritária da Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça no habeas corpus n.º 7.841/DF, relator o Excelentíssimo Senhor Ministro Raphael de Barros Monteiro Filho, julgado no dia 05 de novembro de 1.998 e publicado no Diário da Justiça da União de 15 de março de 1.999, na página 225; acórdão unânime da Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça no recurso ordinário em habeas corpus n.º 5.313/SP, relator o Excelentíssimo Senhor Ministro Cid Flaquer Scartezzini, julgado no dia 26 de março de 1.996 e publicado no Diário da Justiça da União de 17 de junho de 1.996, na página 21.499.

Em diante. Procedamos agora a uma mudança no referencial da análise, e vislumbremos a questão sob uma outra ótica, um tanto mais afeita à teoria. Quiçá a conclusão a que chegamos anteriormente se afigure ainda mais evidente.

Se tomarmos o Direito como um produto cultural – é dizer, cultivado, criado pelo homem – devemos admitir que não há nada que seja jurídico por natureza, ou seja, não há nada que seja a priori, antes de uma intervenção cultural do homem, qualificado juridicamente desta ou daquela forma. Isso é claro, eis que antes dessa intervenção culturalizante (o neologismo deve ser perdoado) do ser humano o Direito sequer existe.

Bem, tomando-se por verdadeira a asserção de que o universo jurídico, por assim dizer, é criado arbitrariamente (livremente) pelo homem, somos instados a buscar o expediente de que se valem os estamentos sociais dominantes para a produção, para a construção desse mundo jurídico. Para sabermos da existência do Direito, devemos saber de seu nascedouro, de onde ele promana – é essa a questão que primeiramente deve ser posta.

Fugindo da imemorial discussão acerca das fontes jurídicas, limitemo-nos a afirmar que em nosso sistema, de tradição germano-romanista, é a lei a fonte formal do Direito por excelência. Excetuando-se os Estados seguidores do modelo saxão de criação judicial do Direito, aqui e alhures é a lei o meio de que o status quo político se vale para definir juridicamente as relações coexistenciais em sociedade. É a lei, portanto, que qualifica o que é e o que não é valioso ou adequado ao Direito. Qualifica, aliás, absolutamente tudo, até os fatos puramente naturais, quando têm influência no convívio social. [20]

Se é a norma legal que perfaz essa qualificação, e se é verdade que ela o faz em relação a todas as coisas existentes, também nos é lícito afirmar que é ela, a lei, quem atribui títulos às relações intersubjetivas, entre as quais estão aquelas havidas entre particulares no desenvolvimento de sua atuação negocial, disciplinadas pelo que se convencionou chamar de contrato, entendido esse como "um acordo de vontades, na conformidade da lei, e com a finalidade de adquirir, resguardar, transferir, conservar, modificar ou extinguir direitos". [21]

Nesses moldes, podemos asseverar que é a lei que diz o que é o contrato, e quais os contornos que possui. Mesmo quando não há uma definição típica de uma qualquer figura contratual, ela ainda assim deriva da lei, a qual a admite por ducto do princípio da licitude. [22]

Enquanto contrato, o depósito é uma criação legal. Não existia no mundo natural algo como o depósito. Não havia no mundo hiperurâneo das idéias um modelo de depósito a ser respeitado quando da aceitação, pelo direito privado, desse instituto jurídico. A lei o criou [23]. E o fez livremente, a partir da modificação de estruturas contratuais anteriormente existentes [24], com base em inovações trazidas pela práxis negocial.

Tendo a lei criado, pode também a mesma lei modificá-lo: se não há um modelo ideal (natural) do contrato de depósito a ser necessariamente seguido, parece-nos impositivo aceitar que o legislador possui essa liberdade de delinear legalmente o contrato segundo o seu particular juízo de conveniência política, limitado – como dissemos outrora – somente pelas normas fundamentais do sistema de Direito, as quais compõem a constituição.

Tomando, pois, como verdadeiras todas as asserções consignadas acima, é-nos permitido, sem receio de incorrermos em qualquer sorte de reducionismos, prelecionar que a caracterização do contrato de depósito é feita pela norma legal válida. Noutras linhas, e em suma, podemos dizer: é depósito aquilo que a lei diz que é depósito.

Postos todos esses dados, será perfeitamente civil afirmar, quanto ao depósito do artigo 66 da Lei n.º 4.728/65, com redação dada pelo Decreto-lei n.º 911/99, que não estamos diante de uma aberração legal: estamos defronte uma construção livre de uma lei jurídica válida.

Não é, igualmente, uma ficção legal [25], que ocorreria se a lei trabalhasse com presunções ou equiparações a institutos existentes. É uma criação do legislador, que, conforme mencionamos, enquanto estiver dentro daquilo que o poder constituinte lhe delimitou, pode agir ao sabor de seu arbítrio – é livre para tanto.

Não se entende, pois, ter o Decreto-lei n.º 911/69 ampliado o rol das hipóteses constitucionalmente previstas de prisão civil. O que ele fez foi apenas criar um enquadramento jurídico que encartaria algumas determinadas situações de fato nas hipóteses já existentes. Uma coisa, efetivamente, é dizer que a citada norma declarou que a prisão caberia, além de nos casos já previstos na Carta Magna, em tal ou qual outro caso, que antes não existia. Outra completamente diversa é falar que essa ou aquela situação configura um dos casos já previstos no texto magno.

A Constituição Federal de 05 de outubro de 1.988 e o conceito de "depositário infiel".

Aqui somos remetidos ao segundo argumento dos que entendem ser impossível a efetivação da medida de execução indireta ora em trato, mediante a alegação de que a permissão constitucional da prisão civil do depositário infiel refere-se somente àquelas hipóteses em que se tem presente um depósito típico – precisamente o disciplinado no artigo 1.265 e seguintes do Código Civil brasileiro –, e não àquelas outras em que se tem depósitos atípicos – contidos na legislação esparsa.

A impugnação a uma tal asserção é evidente: a Constituição Federal alude à possibilidade de prisão civil do depositário infiel, sem explicitar, contudo, qualquer adjetivação ao depósito no qual a infidelidade do paciente poderá acarretar na aplicação da medida constritiva. Não se refere positivamente a Carta Magna ao depositário infiel "nos contratos de depósito típicos ou próprios"; não exclui, por um outro lado, a possibilidade de haver a sujeição do devedor faltoso à prisão civil nos depósitos atípicos. Fala tão somente em depósito, nos levando a crer que em qualquer das modalidades do contrato a perfídia do reus debendi poderá levar à efetivação de sua prisão civil.

É o que concebe Carlos Alberto Bittar, que preleciona: "Não tendo a expressão sentido restrito ao mero depositário comum, mas sim a hipóteses outras de depósito, compreendida ficava (na constituição anterior) – como fica (na atual) – a integração da alienação fiduciária ao contexto do instituto da prisão civil, como doutrina corrente e pacífica tem assentado." (Bittar, Carlos Alberto. Alienação fiduciária: a questão da prisão civil do devedor. Lex – Jurisprudência dos Tribunais de Alçada Civil do Estado de São Paulo. São Paulo: volume 145, páginas 06/08, maio-junho de 1.994 – página 08). [26]

Não seja levantada, aqui, a defesa teleológica de que a "verdadeira intenção" do Estatuto Político era resguardar apenas o depósito típico com a cominação da prisão civil; não é coisa que possa ser licitamente objetada. Sabemos todos que, se de fato assim o quisesse, a Assembléia Constituinte poderia tê-lo feito, principalmente porque em todas as ocasiões em que houve uma real vontade de deixar consignadas no texto magno as suas decisões políticas, ela o fez sem quaisquer recatos (tal redundou, aliás, na produção de um documento muitíssimo alongado).

Ainda nesse tocante, não podemos deixar de mencionar – mesmo que seja algo óbvio – que a Constituição Federal de 05 de outubro de 1.988 entrou em vigor exatamente dezenove anos e quatro dias depois da edição do Decreto-lei n.º 911, de 1º de outubro de 1.969. Pode-se atestar, portanto, que as casas congressuais não foram de maneira alguma surpreendidas às vésperas da promulgação da Lei Fundamental com uma disposição normativa espúria, a qual não tiveram a oportunidade de contemplar quando de sua elaboração. Se elas realmente a tivessem por espúria, tinham-na rechaçado na nova carta constitucional que produziram. Material e experiência para tanto havia.

Foi precisamente essa ordem de evidências que fez com que o Excelentíssimo Senhor Ministro Romildo Bueno de Souza modificasse o seu entendimento a respeito da matéria, coisa que pode ser atestada pela leitura do seguinte aresto:

"Senhores Ministros, as considerações há pouco desenvolvidas pelo Senhor Ministro Athos Carneiro trazem à minha relembrança meu repúdio, quando Juiz da 2ª Vara Cível do Distrito Federal, às ações de busca e apreensão de coisas alienadas fiduciariamente, com fundamento na Lei do Mercado de Capitais, porquanto não poderia, ao admitir aquelas demandas de depósito, então inventadas, como que antecipadamente prometer ao autor o futuro decreto de prisão do réu, caso a coisa não fosse encontrada. Sustentei, portanto, que havia incompatibilidade daquela lei, naquela disposição, com a Constituição. Entendi que a Lei do Mercado de Capitais, neste ponto, arrombava a Constituição brasileira e dava nome de depósito a institutos que nunca tiveram esta configuração; e, assim ampliava as possibilidades de prisão civil, em afronta à Lei Maior.

Dessa orientação, que aliás não vingou na jurisprudência, afastei-me desde o momento em que a nova Constituição se limitou a teimar nas expressões antigas, segundo as quais não se admite a prisão por dívida, a não ser em casos de alimento e de infidelidade de depositário. Compreendi, então, que a Constituição, tendo já presente norma legal que, de certa forma, ampliava a configuração conceitual e legal de depósito, não poderia mais ser invocada para inibir a aplicação dessa legislação." (Voto proferido no julgamento unânime, pela Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça, do recurso especial n.º 2.222/RS, relator o Excelentíssimo Senhor Ministro Luiz Carlos Fontes de Alencar. Julgado no dia 09 de abril de 1.991 e publicado na Revista do Superior Tribunal de Justiça 33/182).

Mas assim não foi. O legislador constituinte de 1.988 preferiu manter, no artigo 5º, inciso LXVII, norma de redação semelhante àquela da regra coirmã inserta na Constituição anterior (Emenda Constitucional n.º 01/69), cujo artigo 153, §17, preceituava que "não haverá prisão civil por dívida, multa ou custas, salvo o caso de depositário infiel ou do responsável pelo inadimplemento de obrigação alimentar, na forma da lei". [27] Fê-lo intencionalmente, tendo em vista a conservação da norma constitucional correlata, pertencente à ordem derrogada, a qual entendeu – ao menos nesse aspecto – não merecedora de maiores reformas.

Se na ordem anterior, portanto, a norma que vedava a prisão por dívidas fazia parte daquele gênero de normas de eficácia contida – assim entendidas aquelas "em que o legislador constituinte regulou suficientemente os interesses relativos a determinada matéria, mas deixou margem à atuação restritiva por parte da competência discricionária do poder público, nos termos que a lei estabelecer ou nos termos de conceitos gerais nelas enunciados" [28]–, o mesmo ocorre, por uma opção deliberada do legislador constituinte, no vigente sistema constitucional. Se assim foi e se assim ainda é, isso decorre de uma escolha política de nosso poder originário, o qual manteve a concepção segundo a qual "pretender-se limitar a permissão constitucional da prisão civil tão-somente aos casos de depósitos atípicos seria vedar ao legislador os meios próprios e adequados à garantia dos bens financiados e necessários ao desenvolvimento comercial e industrial do País, isto é, criar novos casos de depósito como lhe faculta a Constituição, em seu poder legiferante". [29]

Essa é, de antanho, a doutrina de nossa Corte Constitucional, reiterada pela preleção do Excelentíssimo Senhor Ministro José Celso de Mello Filho, que, ao relatar o recurso extraordinário n.º 249.970/RS, aduziu que o artigo 5º, inciso LXVII da Carta Federal brasileira "qualifica-se como típica norma revestida de eficácia contida ou restringível, eis que, em função de seu próprio conteúdo material, contempla a possibilidade de o legislador comum limitar o alcance da vedação constitucional pertinente à prisão civil, autorizando-o a excepcionar a cláusula proibitória em duas únicas hipóteses: a) o inadimplemento de obrigação alimentar e b) a infidelidade depositária". (Extraído de seu voto condutor no julgamento do recurso extraordinário n.º 249.970/RS, publicado no Informativo S.T.F. 158/04). Também assim: acórdão por maioria de votos da Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal no habeas corpus n.º 76.561/SP, relator o Excelentíssimo Senhor Ministro Carlos Mário da Silva Velloso. Julgado no dia 27 de maio de 1.998 e publicado no Diário da Justiça da União de 02 de fevereiro de 2.001, na página 73.

Sendo de eficácia contida a norma, o conceito constitucional de depositário infiel tem a elasticidade que lhe quiser conferir o legislador ordinário, o qual pode instituir, ao seu alvedrio, tantas modalidades de depósito quantas achar conveniente, e, ipso facto, sujeitar o devedor em todas elas à possibilidade da prisão civil. [30]

A questão das raízes políticas da Lei n.º 4.728/65 e do Decreto-lei n.º 911/69, e da "injustiça" da prisão civil do devedor na alienação fiduciária em garantia.

Antes de findarmos a nossa exposição quanto à validade da prisão civil do devedor fiduciante dentro de nosso sistema de direito, é mister abordarmos o problema das raízes políticas das normas que instituíram, em solo pátrio, o contrato de alienação fiduciária em garantia. Tais normas, reguladoras dessa avença que é tida por muitos como uma figura "hipercapitalista" [31] e socialmente cruel, teriam surgido em decorrência de um movimento de produção legislativa altamente influenciado pelos mais escusos interesses das instituições integrantes do sistema financeiro nacional, o qual logrou êxito em edificar todo um microssistema jurídico exacerbadamente benéfico aos seus componentes. [32] A Lei n.º 4.728/65 e o Decreto-lei n.º 911/69, trazidos ao cenário comercialista pátrio na efervescência desse movimento, teriam possibilitado entre nós a utilização em massa dessa estrutura negocial absolutamente irrazoável, a qual impõe para uma das partes do pólo obrigacional direitos em excesso e para a outra deveres em demasia, de forma unipolar. Menciona-se, como já o dissemos supra, que as medidas havidas em desfavor do paciente na execução de um contrato parcial como esse – notadamente a ameaça da prisão civil – não poderiam ser justificadas em um regime como o nosso, de feição nitidamente democrática.

Podemos ver com bastante clareza de que espécie de argumento estamos diante. Trata-se do argumento da justiça, em suas feições de igualdade e razoabilidade: as normas que criaram o contrato de alienação fiduciária em garantia como hoje o entendemos não seriam inteiramente válidas – e, portanto, não poderiam jamais ser plenamente eficazes – pelo fato de terem edificado um esquema negocial que não corresponde ao postulado superior da igualdade, e que, por isso mesmo, disciplina uma determinada situação coexistencial de maneira terminantemente irrazoável.

Concedemos: é verdade que quo voluntas reges, vadunt leges, e que a equação normativa formada pela estrutura superposta da Lei n.º 4.728/65 e do Decreto-lei n.º 911/69, tendo sido concebida em um período político de exceção, construiu uma forma pactual demasiadamente vantajosa para uma das partes do acordo, e excessivamente onerosa para a outra, em decorrência dos influxos e das conveniências políticas das instituições financeiras. Não o desconhecemos, nem haveríamos de negá-lo.

Ocorre, contudo, que não há nenhum dever jurídico que force a que as leis criem necessariamente relações razoáveis ou equânimes. Ora, não é mesmo na desigualdade – em uma enorme desigualdade – que o próprio sistema de produção em que vivemos está baseado? Se nos fosse dado rejeitar todas as normas que não podem ser qualificadas exatamente como igualitárias ou razoáveis, ser-nos-ia dado, ipso facto, negar a vigência da imensa maioria das regras às quais estamos submetidos – e, pois, do próprio ordenamento. Isso é algo que não pode ser concebido. Ao menos não validamente.

E é justamente essa questão da validade – que é crucial – a que mais tem sido olvidada quando se põe em jogo o problema das raízes políticas da alienação fiduciária. Desconsidera-se com uma freqüência impressionante que a desigualdade e a irrazoabilidade eventualmente contidas em uma norma jurídica válida não podem servir de evasivas para o seu não-atendimento, eis que o cumprimento irrestrito e incondicional da ordem jurídica – de toda ela – é mesmo um dos postulados elementares de nosso Estado de Direito (Constituição Federal, artigo 5º, inciso II), no qual um só ente tem legitimidade para levar em consideração os fatores políticos e filosóficos que permeiam o mundo normativo: o Poder Legislativo.

Não foi outro o espírito das considerações do Excelentíssimo Senhor Ministro Evandro Gueiros Leite, que, após mencionar o risco das conseqüências da aplicação irrestrita da alienação fiduciária em garantia, reconheceu, "porém, que o julgador nada tem a ver com as demasias da lei, para arvorar-se em guardião da pureza do instituto, que o legislador, as autoridades financeiras e os interessados vulgarizam" (trecho de seu voto [vista] no julgamento unânime, pela Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, do recurso especial n.º 2.599/RS, relator o Excelentíssimo Senhor Ministro Francisco Cláudio de Almeida Santos. Julgado no dia 27 de agosto de 1.990 e publicado no Diário da Justiça da União de 10 de setembro de 1.990, na página 9.123).

No mesmo sentido estão as asserções de Carlos Alberto Lúcio Bittencourt que, ao tratar de regras elementares de hermenêutica legislativa e sua aplicação no controle de constitucionalidade, preleciona o seguinte:

"Não se declaram inconstitucionais os motivos da lei. Se esta, no seu texto, não é contrária à Constituição, os tribunais não lhe podem negar eficácia.

O enunciado repete, quase ipsis verbis, o ensinamento de Carlos Maximiliano, haurido na lição unânime dos comentadores. A validade ou eficácia de uma lei, em face da Constituição, não depende, nem pode depender, de modo algum, dos motivos ou considerações que levaram a legislatura a elabora-la. Ou as normas que prescreve são compatíveis com a Constituição e a lei é válida, ou há incompatibilidade e, neste caso, a declaração de ineficácia se impõe.

As razões que levaram o legislador a elaborar o diploma (...) constituem – como adverte Black – matéria inteiramente fora de controle do Judiciário, que não se pode converter em guardião da compostura e da moralidade dos membros do Congresso. Com os motivos que inspiraram os legisladores, repisa Willoughby, as Cortes nada têm que ver – with the motives of the legislators the courts do not concern themselves." (In O controle jurisdicional da constitucionalidade das leis. 2ª edição, atualizada por José de Aguiar Dias. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1.968 – páginas 121/122).

Fora disso, o que há é arbitrariedade, expressa no afastamento da incidência de normas válidas segundo o arbítrio – a escolha, o juízo – de seus destinatários. Tal se nos afigura como conduta teratologicamente ilegítima, que deve ser, por isso mesmo, veementemente reprovada.

Precisamente por esse motivo é que uma análise puramente jurídica da questão deve excluir de pronto considerações desse jaez, i.e., essas de saber se a norma em apreço atende aos postulados (quaisquer deles) da justiça. Se o ordenamento jurídico em si tolera uma qualidade contratual dissonante como essa, ao jurista, enquanto tal, nada resta a fazer; seu mister é exaurido no estudo das possibilidades endógenas da ordem posta. Isso, e nada mais. Por um outro lado, se ele, enquanto cidadão, entende que está sob o jugo de leis que não podem ser tidas em rigor como razoáveis, então, exercendo o seu papel político, poderá sempre cuidar em modificá-las, pelas vias adequadas. Essa é, entretanto, uma luta política. Nada diz respeito ao estudo das normas. Em nada interessa, pois, à questão de saber da validade delas, o que é determinante para saber se devem ou não ser obedecidas.

Para aquilo que presentemente constitui nosso foco de interesse, ficam afastadas, desta forma, as considerações acerca da irrazoabilidade e da injustiça que para muitos são inerentes ao contrato de alienação fiduciária em garantia. Na questão em baila, concluímos ser a norma que permite a aplicação ao devedor fiduciante da medida de execução indireta em causa constitucional, e, portanto, válida. Em nosso ofício, isso nos é bastante.

Visto que a norma é válida internamente, vejamos o problema em sua dimensão referente ao Direito Internacional.

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Sobre o autor
Ivan Carvalho Montenegro da Rocha

Defensor Público Estadual(CE)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROCHA, Ivan Carvalho Montenegro. A prisão civil na alienação fiduciária em garantia. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 322, 25 mai. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5200. Acesso em: 22 dez. 2024.

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