Artigo Destaque dos editores

Ações judiciais para impedir o corte do fornecimento de energia elétrica.

Alguns apontamentos sobre sua natureza e a autoridade competente para julgá-las

Exibindo página 2 de 2
12/05/2004 às 00:00
Leia nesta página:

Notas:

(1) O par. 3º. do art. 6º. da Lei 8.987/95 tem a seguinte redação:

"§ 3º Não se caracteriza como descontinuidade do serviço a sua interrupção em situação de emergência ou após prévio aviso, quando:

I - motivada por razões de ordem técnica ou de segurança das instalações; e,

II - por inadimplemento do usuário, considerado o interesse da coletividade".

(2) Advertimos para a circunstância de que usamos indistintamente os conceitos de consumidor e usuário. É certo que este último termo (usuário) deve ser utilizado sempre que se faça referência ao consumidor de serviços públicos, até porque é o termo técnico que a Lei (8.987/95) emprega. O usuário deve ser entendido como uma categoria específica de consumidor, aquele que faz parte da relação jurídica contratual de serviço público. Mas essa relação contratual é uma típica relação de consumo. Nesse sentido, divergimos do Prof. Antônio Carlos Cintra do Amaral, para quem não se confunde o usuário do serviço público com o consumidor. Afirma ele que "a relação contratual entre concessionária e usuário, mediante a qual uma parte se obriga a prestar um serviço, recebendo em pagamento um preço público (tarifa), tem como pressuposto uma outra, entre a concessionária e o poder concedente". Por essa razão, ou seja, a existência de verdadeiros contratos "coligados", o Poder Público (concedente) tem responsabilidade solidária perante o usuário, "na medida em que mantém a titularidade do serviço", diz ele ("Distinção entre usuário de serviço público e consumidor", artigo publicado na Revista Diálogo Jurídico, n. 13, abril/maio 2002). Com a devida vênia, o concessionário é quem tem o encargo imediato da prestação e adequação do serviço público, respondendo pelos danos que causar a terceiros. Como se diz na doutrina, o concessionário age em nome próprio e por sua conta e risco, sendo perante ele que os usuários demandam em relação ao serviço. Por outro lado, a circunstância de o art. 27 da Emenda Constitucional n. 19/98 ter determinado ao Congresso Nacional a elaboração de "lei de defesa dos usuários dos serviços públicos" não implica reconhecer que o legislador pretendeu criar uma categoria estanque. A aplicação subsidiária das normas do CDC (Lei 8.078/90) à defesa do usuário dos serviços públicos sempre será possível, ainda que se tome de empréstimo aquelas mais genéricas e de caráter principiológico.

(3) O que demonstra que o Min. Humberto Gomes de Barros também mudou posição, acompanhando a reviravolta da jurisprudência da 1ª Turma, pois antes esposava o entendimento de que "é defeso à concessionária de energia elétrica interromper o suprimento de força, no escopo de compelir o consumidor ao pagamento de tarifa em atraso. O exercício arbitrário das próprias razões não pode substituir a ação de cobrança" (REsp n. 223.778/RJ, Rel. Min. Humberto Gomes de Barros, DJU 13.03.2000).

(4) O artigo em questão tem a seguinte redação:

Art. 17. A suspensão, por falta de pagamento, do fornecimento de energia elétrica a consumidor que preste serviço público ou essencial à população e cuja atividade sofra prejuízo será comunicada com antecedência de quinze dias ao Poder Público local ou ao Poder Executivo Estadual.

Parágrafo único. O Poder Público que receber a comunicação adotará as providências administrativas para preservar a população dos efeitos da suspensão do fornecimento de energia, sem prejuízo das ações de responsabilização pela falta de pagamento que motivou a medida.

(5) Seria o caso, e.g., da hipótese em que o corte tivesse de recair sobre um consumidor hipossuficiente ou pessoa jurídica vinculada a grupo de consumidores hipossuficientes. O STJ ainda não enfrentou essa questão, mas o Min. Franciulli Neto, ao proferir voto condutor no Resp Resp 510478-PB ( j. 10.06.03, DJ 08.09.03), ressaltou expressamente que "não será o Judiciário entretanto, insensível relativamente às situações peculiares em que o usuário deixar de honrar seus compromissos financeiros em razão de sua hipossuficiência, circunstância que não se amolda ao caso em exame".

(6)Art. 2º. da Lei 8.987/95.

(7) No regime legal da concessão de serviço público de energia elétrica, é previsto que o concessionário se remunere através da cobrança de um preço pago pela prestação do serviço ao consumidor final (art. 14 da Lei 9.427/96). É a sua contraprestação pela execução dos serviços, que resulta na necessidade de se envolver em outras relações contratuais (de ordem privatística) com os destinatários finais do serviço. Essa característica privatística do contrato de fornecimento de energia tem origem, em princípio, na própria Constituição Federal, quando admitiu a prestação de serviço público por particular, em colaboração ao Poder Público, em regime de concessão ou permissão (art. 175).

(8) O art. 2º. do CDC (Lei 8.078/90), ao definir consumidor, inclui também as pessoas jurídicas adquirentes de produtos e serviços na qualidade de destinatário final. Como a lei não restringe, é de se concluir que também as pessoas jurídicas de direito público podem assumir a posição de consumidor em relação contratual de consumo.

(9) A Súmula é de 03.10.69.

(10) Redação do par. 1º. de acordo com a Lei 9.259, de 09.01.96. Já havia sido anteriormente alterado pela Lei 6.978, de 19.1.82, art. 12.

(11) O serviço público delegado é aquele transferido através de ato administrativo bilateral (concessão) ou unilateral (permissão e autorização). Trata-se de transferência sempre de caráter temporário, podendo ser revogada, modificada ou anulada. Não ocorre uma transferência da titularidade do serviço, mas apenas um traspasse da execução.

(12) Há uma discussão doutrinária sobre se a execução do poder de polícia pode ser transferida ao particular, como acontece no caso da concessão. Para Celso Antônio Bandeira de Mello, os atos decorrentes do poder de polícia, em princípio, não podem ser delegados a particulares, admitindo apenas a prática de certos atos materiais instrumentais à prática do ato jurídico de polícia (ver Serviço Público e Poder de Polícia: concessão e delegação, Revista Diálogo Jurídico Ano I, n. 5, agosto de 2001).

(13) Essa expressão é utilizada por Celso Antônio Bandeira de Mello, ob. cit.

(14) O marco do processo de privatização no Brasil pode ser considerado no momento em que o Governo Federal, em março de 1990 (durante, portanto, a administração Collor de Mello), enviou ao Congresso Nacional a Medida Provisória 155 (que se tornou a Lei 8.031/90), contendo o que viria a ser a base legal do Programa Nacional de Desestatização (PND). Embora o programa de privatização tivesse outros objetivos paralelos de política macroeconômica, como o de consolidar o plano de estabilização econômica que acabara de ser implantado e reduzir a participação do Estado na economia como forma de atrair o capital estrangeiro, o propósito fundamental (como não poderia deixar de ser) era o de repassar ao setor privado a administração de empresas estatais que tinham chegado a um profundo estado de deterioração da qualidade dos serviços oferecidos aos consumidores.

Na verdade, os primórdios da privatização remontam às décadas de 70 e 80, mas sem a significação do processo iniciado nos anos 90, proporcionado pela mudança na "opinião generalizada sobre o papel do Estado no desenvolvimento econômico". O Estado não deveria executar atividades que o setor privado fosse plenamente capaz de realizar. Ao contrário, deveria concentrar seus esforços em áreas como educação, saúde, segurança e regulação. Esse era o raciocínio usado para justificar as privatizações, que se tornaram uma das principais prioridades da nova administração e avançaram sobre setores da indústria do aço, da petroquímica e de fertilizantes. A fase mais intensa, mais longa e mais difícil do processo de privatização só teve início, no entanto, durante a primeira gestão de Fernando Henrique Cardoso, no ano de 1995, quando foram incluídas empresas públicas das áreas de mineração, eletricidade, ferrovias, portos, rodovias, telecomunicações, água e esgotos e bancos.

(15) 1a. Turma do STJ, Resp n. 84.082-RS, j. 23.05.96, DJU 23.05.96.

(16) Note-se, portanto, que, no julgado acima, estavam envolvidos a preservação do patrimônio público e dos princípios da moralidade e impessoalidade administrativas, daí o cabimento do mandado de segurança como via de impugnação de atos de dirigentes de sociedade de economia mista.

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

(17) REsp 174085-GO, j. 18.08.98, DJ 21.09.98. Nesse acórdão, o relator apenas acrescentou que o dirigente da companhia de eletricidade (sociedade de economia mista) "agiu em cumprimento de determinação de legislação específica do setor de energia elétrica, através do poder concedente, Departamento Nacional de Águas e Energia Elétrica, contida na Portaria DNAEE n. 22/86, o que demonstra que praticou o ato impugnado no exercício de função delegada pelo Poder Público".

(18) Observe-se que, na parte final da ementa, o julgado repete, ipsis literis, trecho do acórdão anterior, da relatoria do Min. Demócrito Reinaldo (REsp 84.082-RS).

(19) Reformou acórdão da 2ª. Câmara Cível do TJ de Goiás, que, no nosso entender, tinha atribuído melhor solução a essa questão, assim ementado:

Mandado de segurança. Sociedade de Economia Mista. Ato de gestão.

As sociedades de economia mista podem agir, tanto como entidades públicas, gerindo serviços públicos, quanto como entidades privadas, editando atos de direito privado. Assim é que, evidenciado que o ato por ela praticado – corte de energia elétrica -, foi de mera gestão, não podendo ser tido como de mera autoridade, não pode o mesmo ser atacado por mandado de segurança".

(20) No Resp 430783/MT, também da relatoria do Min. José Delgado, julgado em 17.09.02 (DJ 28.10.02), a Turma manteve o mesmo posicionamento. Nesse caso, a companhia de energia elétrica também era uma sociedade de economia mista.

(21) No julgamento do AGA 248297-SE, tendo como relatora a Ministra Nancy Andrighi, a 2ª. Turma acolheu a tese de que cabe mandado de segurança contra o corte de energia elétrica. A relatora, em seu voto, utilizou como precedente o REsp 174.085-GO, relatado pelo Min. José Delgado.

(22) Compete privativamente à União Federal explorar diretamente ou mediante autorização ou concessão os serviços de instalação de energia elétrica (art. 21, XII, d, da Constituição Federal).

(23) São inúmeros os acórdãos recentes que estão dando pela competência da Justiça Federal, para julgar mandados de segurança impetrados contra o corte de energia elétrica. O entendimento é o de que "conforme o art. 109, VIII, da Constituição, compete à Justiça Federal processar e julgar mandados de segurança contra ato de autoridade federal, considerando-se como tal também o agente de entidade particular quanto a atos praticados no exercício de função delegada" (CC 37912-RS, rel. Min. Teori Albino Zavascki, j. 27.08.03, DJ 15.09.03. No mesmo sentido: CC 38875/RS, rel. Min. Luiz Fux, j. 08.10.03, DJ 17.11.03. 1ª. Seção; CC 39358-RS, rel. Min. Castro Meira, j. 24.09.03, DJ 20.10.03). É importante destacar que esses julgados não adotam diretamente a tese de que o corte de energia elétrica é ato de autoridade pública e, portanto, sujeito ao mandado de segurança. Eles apenas destacaram a competência para julgar esses mandados de segurança. Como destacou o Min. Teori Zavascki ao votar no CC 37912-RS – numa clara indicação de manter-se fiel ao seu pensamento de que não cabe mandado de segurança nessas hipóteses, antes esposado no 429849-RS -, "se o ato atacado é ou não ato típico de autoridade ou ato de mera gestão, é matéria que diz com a admissibilidade do mandado de segurança, e não com a competência para julgá-lo". Nesses conflitos de competência que têm sido julgados pelo STJ, tem-se mantido a competência da Justiça Federal quando o Juiz Federal do grau inferior se declara competente, privilegiando-se o enunciado da Súmula 60 do extinto TFR, que prediz: "Compete à Justiça Federal decidir da admissibilidade de mandado de segurança impetrado contra atos de dirigentes de pessoas jurídicas privadas, ao argumento de estarem agindo por delegação do poder público federal".

(24) Ainda que essas ações sejam amparadas na Portaria n. 222/87 do antigo DNAEE.

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Demócrito Reinaldo Filho

Juiz de Direito. Doutor em Direito. Ex-Presidente do IBDI - Instituto Brasileiro de Direito da Informática.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

REINALDO FILHO, Demócrito. Ações judiciais para impedir o corte do fornecimento de energia elétrica.: Alguns apontamentos sobre sua natureza e a autoridade competente para julgá-las. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 309, 12 mai. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5215. Acesso em: 26 abr. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos