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Tráfico internacional de pessoas.

A escravidão moderna fundada na vulnerabilidade da vítima

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23/09/2016 às 14:08
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4 O ENFRENTAMENTO

O Tráfico Internacional de Pessoas constitui um problema contemporâneo, de dimensões exorbitantes, que afeta todo o ordenamento jurídico e social de um país, motivo pelo qual o seu enfrentamento só se faz possível mediante uma rede de cooperação, em função da característica multifacetada e da necessidade de respostas, para um caso específico, de distintas políticas públicas, de forma a abarcar: segurança pública, relações internacionais, assistência social, saúde, educação, direitos humanos, proteção aos direitos da mulher e, não menos importante, a questão das desigualdades social. Para o atendimento de uma vítima que passou pela situação do tráfico, muitas políticas precisam ser acionadas para que ela possa, de fato, ser reinserida.

4.1 POLÍTICAS PÚBLICAS DE ENFRENTAMENTO

O processo de enfrentamento do tráfico de pessoas se inicia com um grande desafio: a identificação do aliciado como sendo vítima deste fenômeno. A correta caracterização desse crime é crucial para que ele seja enfrentado através das legislações pertinentes ao assunto, pois, como já mencionado anteriormente, é muito comum que o tráfico humano seja confundido com fenômenos de natureza semelhante.

É importante ressaltar que não se deve confundir o simples deslocamento ou exploração com o tráfico de pessoas, pois, as duas atividades, devem estar correlacionadas para caracterizar esse crime organizado. O histórico da vítima é fator de extrema importância para a caracterização do crime, assim como para tirá-la de uma das mais degradantes situações existentes hodiernamente.

O enquadramento de um indivíduo como vítima do tráfico de seres humanos pode ser facilitado, mediante algumas perguntas, individuais e específicas, relacionadas às condições do seu trabalho, como por exemplo: se o indivíduo pode parar o seu trabalho quando desejar; se ele foi abusado física, psicológica ou sexualmente; se ele possui um passaporte ou algum outro documento de identificação; se ele recebe o salário que foi acordado; se os membros de sua família recebem ameaças; e como é que ele chegou no país em que se encontra. Todo esse questionamento constitui um processo eficaz para a identificação da vítima e, a sua não realização, viola Tratados Internacionais que estabelecem protocolos a serem cumpridos quanto à matéria em comento.

Faz-se mister ressaltar, como medida de enfrentamento, além dos requisitos para identificação da vítima, que Convenção de Palermo constitui um documento de extrema importância para que os Estado signatários padronizem o sistema de combate, cumprindo com as responsabilidades estipuladas no Protocolo, de forma a sanar a problemática. Certamente, a mera ratificação de tratados e convenções não resolve a questão, mas é requisito primordial, uma vez que a globalização torna mais rápida e eficaz a interação entre os países, facilitando, dessa forma, a cooperação internacional.

Ao passo que a Convenção de Palermo institui que os seus Estados Partes possuem o compromisso de garantir que sua legislação interna penalize as violações relacionadas ao crime organizado, cabe-nos aqui, tratar do seu instrumento suplementar, o Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças, uma vez que ambos os instrumentos são interpretados em conjunto. Essa ferramenta de enfrentamento ao tráfico internacional de pessoas, estabelece, em seu Capítulo I, artigo 2, os seguintes objetivos:

a) Prevenir e combater o tráfico de pessoas, prestando uma atenção especial às mulheres e às crianças; b) Proteger e ajudar as vítimas desse tráfico, respeitando plenamente os seus direitos humanos; e c) Promover a cooperação entre os Estados Partes de forma a atingir esses objetivos.

Nesse sentido, o Protocolo elenca uma série de disposições a serem cumpridas pelos países que o acolheram, iniciando-se com breves esclarecimentos acerca do tráfico de pessoas, determinando o seu âmbito de aplicação, estabelecendo as medidas legislativas a serem tomadas com relação à criminalização, prevenção, cooperação e outras medidas.

Além disso, o supracitado instrumento determina a criação de programas de assistência e proteção à vítima, de modo que o Estado se comprometa a proteger a privacidade e identidade da mesma, proporcionando uma recuperação física, psicológica e social.

Dessa forma, a questão do confronto se materializa nas providências a serem tomadas pelos governos, no intuito de promover um melhor treinamento das autoridades policiais para que elas sejam capazes de enquadrar a vítima na conjuntura do tráfico, através de um questionamento adequado. Desse modo, cabe-nos ressaltar o dever do país que, por livre e espontânea vontade, se comprometeu com o disposto na Convenção da Palermo e no seu Protocolo Adicional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças, para que medidas pertinentes sejam tomadas a fim de confrontar, mesmo que paulatinamente, essa organização criminosa.

4.1.1 Planos Nacionais de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas

A conjuntura do tráfico de pessoas no Brasil ganhou destaque em 2002, com a divulgação do PESTRAF, que reuniu diversos aspectos do tráfico, entre eles: a identificação de rotas; as questões de gênero e raça que permeiam esse crime; as consequências da exclusão econômica e social; e condições de vulnerabilidade que facilitam a entrada dos indivíduos nas das redes do tráfico.

Seguindo-se da supracitada constatação, através dos Decretos nº 5.015 e5.017, aprovados em 12 de março de 2004, o Brasil promulgou, respectivamente, a Convenção de Palermo e o Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças, comprometendo-se, dessa forma, a adaptar a legislação brasileira, de forma que ela abarque tudo o que a questão do tráfico humano engloba.

A partir desta aprovação, o Brasil iniciou sua mobilização para a elaboração de medidas em torno do tráfico, tanto em sua legislação quanto em seu âmbito administrativo, realizando consultorias efetivas para o desenvolvimento de sistema nacional de enfrentamento ao tráfico de pessoas. Sendo assim, em 26 de outubro de 2006, através do Decreto Presidencial nº 5.948, foi aprovada a Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, que continua em vigência, não tendo sofrido nenhuma alteração em torno das suas diretrizes fundamentais.

Essa política remete a ideia de que, internalizando os preceitos do protocolo de Palermo, o Brasil deve criar frentes que envolvam iniciativas em três eixos fundamentais: prevenção do crime; atenção e apoio as vítimas; e a repressão ao crime. Ainda, estabelece que o país deverá, periodicamente, elaborar um plano de ações, denominado de Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, que estabeleça metas, ajustando atividades e ações que possam ser incorporadas a problemática aqui em questão.

O I Plano Nacional de enfrentamento ao tráfico de pessoas foi aprovado em 2008, pelo Decreto nº 6.347, e possuía, como objetivo: “prevenir e reprimir o tráfico de pessoas, responsabilizar os seus autores e garantir atenção às vítimas”, tendo duração de apenas dois anos. Ele representou o primeiro esforço nacional de combate ao tráfico, no qual indicava a formação de uma rede nacional de enfrentamento ao tráfico de pessoas, que representa um modelo de cooperação entre União, estados e municípios, visando à criação de uma estratégia para cada estado, com uma estrutura capaz de reconhecer o fenômeno local e produzir as medidas necessárias a serem aplicadas de acordo com a realidade de cada estado brasileiro, tendo em vista que as necessidades das vítimas variam de acordo com a região em que ela se encontra.

Em fevereiro de 2013, através do Decreto Presidencial nº 7.901, instituiu-se a Coordenação Tripartite da Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, integrada pelo Ministério da Justiça, a Secretaria de Políticas para as Mulheres e a Secretaria de Direitos Humanos para, em conjunto, dispor sobre o II Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, com vigência durante o período de 2013 a 2016. O artigo 3º, § 1º do Decreto em comento, estabelece os objetivos do II PNETP. São eles:

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I - ampliar e aperfeiçoar a atuação de instâncias e órgãos envolvidos no enfrentamento ao tráfico de pessoas, na prevenção e repressão do crime, na responsabilização dos autores, na atenção às vítimas e na proteção de seus direitos; II - fomentar e fortalecer a cooperação entre órgãos públicos, organizações da sociedade civil e organismos internacionais no Brasil e no exterior envolvidos no enfrentamento ao tráfico de pessoas; III - reduzir as situações de vulnerabilidade ao tráfico de pessoas, consideradas as identidades e especificidades dos grupos sociais; IV - capacitar profissionais, instituições e organizações envolvidas com o enfrentamento ao tráfico de pessoas; V - produzir e disseminar informações sobre o tráfico de pessoas e as ações para seu enfrentamento; e VI - sensibilizar e mobilizar a sociedade para prevenir a ocorrência, os riscos e os impactos do tráfico de pessoas.

Dessa forma, o II Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, representa a segunda etapa da mobilização brasileira no combate a essa organização criminosa. É importante salientar que, esses Planos Nacionais são feitos periodicamente, com o intuito de aperfeiçoar e potencializar as metas estabelecidas, para que, assim, a luta contra a esse crime não perca sua eficácia.

4.2 REINCLUSÃO DA VÍTIMA NA SOCIEDADE

Para tratar do processo da reinclusão da vítima na sociedade, cabe-nos versar acerca do estado de vulnerabilidade da vítima, uma vez que este é o fator principal a ser analisado para que a revitimização seja evitada.

As vítimas do tráfico de pessoas são cidadãos que já se enquadram na definição da palavra “vítima” antes mesmo de serem aliciadas para o tráfico. A Resolução 40/34 da Assembleia Geral das Nações Unidas, de 29/11/85, conceitua a vítima como:

“Pessoa que, individual ou coletivamente, tenha sofrido danos, inclusive lesões físicas ou mentais, sofrimento emocional, perda financeira ou diminuição substancial de seus direitos fundamentais, como consequências de ações ou omissões que violem a legislação penal vigente, nos Estados – Membros, incluída a que prescreve o abuso de poder”.

Isso por que, a própria sociedade trata de descartá-los do meio social, impedindo-os de ter uma vida digna, com todos os seus direitos humanos e fundamentais respeitados. Essa exclusão pode ser percebida diante dos inúmeros fatores de vitimização que levam a vítima ao deslocamento, buscando aceitação em um novo lugar, como, por exemplo: falta de oportunidades; desemprego; violência doméstica; condições de vida precárias; as diversas formas de discriminação; e etc.

A partir desse deslocamento, inicia-se um novo processo de vitimização, que é justamente, quando os aliciados percebem que lhe foram retirados passaporte, documentos e se veem diante de uma grande dívida a ser paga com um trabalho que não lhe rende o necessário. Nesse momento, inicia-se uma nova batalha: esquivar-se daquela conjuntura degradante.

Percebe-se que, na trajetória de um ser humano vitimizado pelo tráfico de pessoas, há uma série de acontecimentos desagradáveis. Ele se encontra numa situação infeliz e desumana, mas sabe que, ao escapar dela, terá que retornar para o mesmo cenário de onde saiu.

Ao retornar ao seu local de origem, ela silencia por ter vergonha de não ter conseguido o que ela estava proposta a alcançar e de ter sido enganada. É sofrer um novo ciclo de vitimização, sob o estigma de uma sociedade que irá apontá-la, sem aceitação. E, ainda, a falta, ou a escassa, existência de serviços que deem conta dessa demanda para que eles possam voltar a ter uma reinserção social.

É nessa etapa que deve haver uma melhoria nos serviços de proteção e assistência às vítimas, reforçando a importância do cuidado para evitar que ocorra a revitimização. Elas precisam ser incluídas no mercado de trabalho, absolvidas pelo poder público para uma capacitação específica, para que possam ter uma mão de obra qualificada.

Portanto, essa reinclusão é crítica na vida da vítima, sendo fundamental o papel dos familiares, dos amigos e a conscientização da própria sociedade, para o acolhimento dessa pessoa que está tentando recuperar a sua dignidade humana.

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Sobre a autora
Maria Alice Medeiros

Advogada devidamente inscrita nos quadros da OAB/PB. Graduada em Direito pelo Centro Universitário de João Pessoa - UNIPÊ (2014) e Pós-graduanda Lato Sensu em direito material e processual do trabalho pela Escola Superior da Magistratura Trabalhista da Paraíba – ESMAT 13. Apaixonada por direitos humanos, constitucional e trabalhista.<br>

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MEDEIROS, Maria Alice. Tráfico internacional de pessoas.: A escravidão moderna fundada na vulnerabilidade da vítima. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4832, 23 set. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/52164. Acesso em: 16 abr. 2024.

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