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O processo penal como instrumento de democracia

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21/05/2004 às 00:00
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IV - A Prisão Preventiva: Ordem Pública e Magnitude da Lesão

Como se sabe, um dos requisitos para a decretação da prisão preventiva é a "garantia da ordem pública", conceito por demais genérico e, exatamente por isso, impróprio para autorizar uma custódia provisória que, como se sabe, somente se justifica no processo penal como um provimento de natureza cautelar (presentes o fumus commissi delicti e o periculum libertatis). Há mais de dois séculos Beccaria já preconizava que "o réu não deve ficar encarcerado senão na medida em que se considere necessário para o impedir de escapar-se ou de esconder as provas do crime" [29], o que coincide com dois outros requisitos da prisão preventiva em nosso País (conveniência da instrução criminal e asseguração da aplicação da lei penal).

Decreta-se a prisão preventiva no Brasil, muitas vezes, sob o argumento de se estar resguardando a ordem pública, quando, por exemplo, quer-se evitar a prática de novos delitos pelo imputado ou aplacar o clamor público. Não raras vezes vê-se prisão preventiva decretada utilizando-se expressões como "alarma social causado pelo crime" ou para "aplacar a indignação da população", e tantas outras frases (só) de efeito.

A respeito, veja-se a preocupação dos juristas espanhóis Gimeno Sendra, Moreno Catena e Cortés Dominguez:

"Tampoco puede atribuirse a la prisión provisional un fin de prevención especial: evitar la comisión de delitos por la persona a la que se priva de libertad. La propia terminología más frecuentemente empleada para expresar tal idea – probable comisión de ´otros´ o ´ulteriores´ delitos – deja entrever que esta concepción se asienta en una presunción de culpabilidad. (…) Por las mismas razones no es defendible que la prisión provisional deba cumplir la función de calmar la alarma social que haya podido producir el hecho delictivo, cuando aún no se ha determinado quién sea el responsable. Sólo razonando dentro del esquema lógico de la presunción de culpabilidad podría concebirse la privación en un establecimiento penitenciario, el encarcelamiento del imputado, como instrumento apaciguador de las ansias y temores suscitados por el delito. (…) La vía legítima para calmar la alarma social – esa especie de ´sed de venganza´ colectiva que algunos parecen alentar y por desgracia en ciertos casos aflora – no puede ser la prisión provisional, encarcelando sin más y al mayor número posible de los que prima facie aparezcan como autores de hechos delictivos, sino una rápida sentencia sobre el fondo, condenando o absolviendo, porque sólo la resolución judicial dictada en un proceso puede determinar la culpabilidad y la sanción penal." [30]

Já o art. 30 da Lei nº. 7.492/86 que define os crimes contra o Sistema Financeiro Nacional inovou: além daqueles requisitos previstos no art. 312 do Código de Processo Penal, estabeleceu mais uma possibilidade de se decretar a prisão preventiva: é a chamada "magnitude da lesão", termo que, assim como "ordem pública", é por demais genérico e, por conseguinte, desaconselhável em se tratando de norma restritiva da liberdade. Ademais, "nota-se que a magnitude da lesão é conseqüência do crime, fator que deve ser levado em consideração para a aplicação da pena (art. 59, CP)." Logo, "este dispositivo é flagrantemente inconstitucional, sua aplicação virá a macular todos os atos que se lhe seguirem": eis a lição de Roberto Podval. [31]


V – A Prisão Temporária:

A prisão temporária, disciplinada na Lei nº. 7.960/89, nada mais é do que aquela famigerada prisão para averiguações, hoje legalizada. Se do ponto de vista formal pode-se até concluir que a antiga prática foi regularizada, sob o aspecto material, indiscutivelmente, continua a mácula aos postulados constitucionais. Como bem notou Paulo Rangel, "no Estado Democrático de Direito não se pode permitir que o Estado lance mão da prisão para investigar, ou seja, primeiro prende, depois investiga para saber se o indiciado, efetivamente, é o autor do delito. Trata-se de medida de constrição da liberdade do suspeito que, não havendo elementos suficientes de sua conduta nos autos do inquérito policial, é preso para que esses elementos sejam encontrados. (...) Prender um suspeito para investigar se é ele, é barbárie. Só na ditadura e, portanto, no Estado de exceção. No Estado Democrático de Direito havendo necessidade se prende, desde que haja elementos de convicção quanto ao periculum libertatis."

A propósito, veja-se a preocupação dos juristas espanhóis Gimeno Sendra, Moreno Catena e Cortés Dominguez, segundo os quais não se pode "atribuir a la medida cautelar el papel de instrumento de la investigación penal.

Dizem eles que "sin duda alguna, esa utilización de la prisión provisional como impulsora del descubrimiento del delito, para obtener pruebas o declaraciones, ha de rechazarse de plano, pues una concepción de este tipo excede los límites constitucionales, y colocaría a la investigación penal así practicada en un lugar muy próximo a la tortura indagatoria." [32]

Aliás, esta lei padece de vício de origem, pois ela foi criada pela Medida Provisória nº. 111/89 quando deveria sê-lo, obrigatoriamente, por lei em sentido formal, votada pelo Congresso Nacional. Como observou Alberto Silva Franco, esta lei "originou-se de uma medida provisória baixada pelo Presidente da República e, embora tenha sido convertida em lei pelo Congresso Nacional, representou uma invasão na área da competência reservada ao Poder Legislativo. Pouco importa a aprovação pelo Congresso Nacional da medida provisória." [33]


VII – A Prevenção e a Competência Penal:

Como se sabe, os arts. 69, VI, 75, parágrafo único e 83 do Código de Processo Penal estabelecem como um dos critérios determinadores da competência exatamente a prevenção. Por ela, e em linhas gerais, qualquer ato praticado por um Juiz de Direito, ainda que anterior ao processo, torna-o prevento.

Entendemos que tais disposições não deveriam constar de um diploma processual de um Estado Democrático de Direito, pois a prevenção, longe de atrair a competência judicial, deveria excluí-la, visto que a prática deste ato judicial anterior ao processo criminal atinge inevitavelmente a imparcialidade do julgador.

Observe-se, por exemplo, que para se decretar a prisão preventiva o Juiz deve obrigatoriamente, nos termos do art. 312 do Código de Processo Penal, admitir a "existência do crime e indício suficiente de autoria", o que já significa um posicionamento quanto ao mérito da causa penal e, por conseguinte, não deixa de ser um pré-julgamento.

Não por menos que o Tribunal Europeu de Direitos Humanos vem decidindo reiteradamente pela exclusão do julgador que de alguma forma interferiu na fase investigatória, segundo nos informa Aury Lopes Jr.

Para este autor, "sem dúvida, chegou o momento de repensar a prevenção e também a relação juiz/inquérito, pois ao invés de caminhar em direção à figura do juiz garante ou de garantias, alheio à investigação e verdadeiro órgão suprapartes, está sendo tomado o caminho errado do juiz instrutor. E, mais: a imparcialidade do julgador está comprometida não só pela atividade de reunir material ou estar em contato com as fontes de investigação, mas pelos diversos pré-julgamentos que realiza no curso da investigação preliminar (como na adoção de medidas cautelares, busca e apreensão, autorização para intervenção telefônica, etc.)." [34]


Notas

1 Direito, Poder, Justiça e Processo, Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 68.

2 Idem, p. 69.

3 Apesar de que, como ensina Norberto Bobbio, "(...) a Democracia perfeita até agora não foi realizada em nenhuma parte do mundo, sendo utópica, portanto." (Dicionário de Política, Brasília: Universidade de Brasília, 10ª. ed., 1997, p. 329).

4 Norberto Bobbio, A Era dos Direitos, Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 01.

5 Idem, p. 05.

6 Compêndio de Processo Penal, Tomo I, Rio de Janeiro: José Konfino Editor, 1967, p. 15.

7 José Frederico Marques, Elementos de Direito Processual Penal, Vol. I, Campinas: Bookseller, 1998, p. 37.

8 Luigi Ferrajoli, Derecho y Razón, Madrid: Editorial Trotta, 3ª. ed., 1998, p. 537.

9 Como se sabe, o defensor exerce a chamada defesa técnica, específica, profissional ou processual, que exige a capacidade postulatória e o conhecimento técnico. O acusado, por sua vez, exercita ao longo do processo (quando, por exemplo, é interrogado) a denominada autodefesa ou defesa material ou genérica. Ambas, juntas, compõem a ampla defesa. A propósito, veja-se a definição de Miguel Fenech: "Se entiende por defensa genérica aquella que lleva a cabo la propia parte por sí mediante actos constituídos por acciones u omisiones, encaminados a hacer prosperar o a impedir que prospere la actuación de la pretensión.. No se halla regulada por el derecho con normas cogentes, sino con la concesión de determinados derechos inspirados en el conocimientode la naturaleza humana, mediante la prohibición del empleo de medios coactivos, tales como el juramento – cuando se trata de la parte acusada – y cualquier otro género de coacciones destinadas a obtener por fuerza y contra la voluntad del sujeto una declaración de conocimiento que ha de repercutir en contra suya". Para ele, diferencia-se esta autodefesa da defesa técnica, por ele chamada de específica, processual ou profissional, "que se lleva a cabo no ya por la parte misma, sino por personas peritas que tienen como profesión el ejercicio de esta función técnico-jurídica de defensa de las partes que actuán en el processo penal para poner de relieve sus derechos y contribuir con su conocimiento a la orientación y dirección en orden a la consecusión de los fines que cada parte persigue en el proceso y, en definitiva, facilitar los fines del mismo". (Derecho Procesal Penal, Vol. I, 2ª. ed., Barcelona: Editorial Labor, S. A., 1952, p. 457).

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10 Introducción al Derecho Penal y al Derecho Penal Procesal, Editorial Ariel, S.A., Barcelona, 1989, p. 230.

11 Gimeno Sendra, Derecho Procesal, Valencia: Tirant lo Blanch, 1987, p. 64.

12 José António Barreiros, Processo Penal-1, Almedina, Coimbra, 1981, p. 13.

13 Elementos de Direito Processual Penal, Vol. I, Forense, p. 64.

14 Sobre a atividade instrutória do Juiz no Processo Penal, remetemos o leitor a duas obras: "A Iniciativa Instrutória do Juiz no Processo Penal", de Marcos Alexandre Coelho Zilli, Editora Revista dos Tribunais, 2003 e "Poderes Instrutórios do Juiz", de José Roberto dos Santos Bedaque, Editora Revista dos Tribunais, 2ª. ed., 1994..

15 Sobre a matéria há também duas obras importantes: "A Busca da Verdade Real no Processo Penal", de Marco Antonio de Barros, Editora Revista dos Tribunais, 2002 e "O Mito da Verdade Real na Dogmática do Processo Penal", de Francisco das Neves Baptista, Editora Renovar, 2001.

16 Búsqueda de la Verdad en el Proceso Penal, Buenos Aires: Depalma: 2000, p. 107.

17 "Classicamente, a verdade se define como adequação do intelecto ao real. Pode-se dizer, portanto, que a verdade é uma propriedade dos juízos, que podem ser verdadeiros ou falsos, dependendo da correspondência entre o que afirmam ou negam e a realidade de que falam." (Hilton Japiassu e Danilo Marcondes, Dicionário Básico de Filosofia, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1990, p. 241).

18 Derecho y Razón, Madrid: Editorial Trotta, 3ª. ed., 1998, pp. 44 e 45.

19 Instituições de Direito e Processo Penal, Coimbra: Editora LDA., 1974, p. 295, tradução de Manuel da Costa Andrade.

20 Parece-nos interessante transcrever um depoimento de Leonardo Boff, ao descrever os percalços que passou até ser condenado pelo Vaticano, sem direito de defesa e sob a égide de um típico sistema inquisitivo. Após ser moral e psicologicamente arrasado pelo secretário do Santo Ofício (hoje Congregação para a Doutrina da Fé), cardeal Jerome Hamer, em prantos, disse-lhe: "Olha, padre, acho que o senhor é pior que um ateu, porque um ateu pelo menos crê no ser humano, o senhor não crê no ser humano. O senhor é cínico, o senhor ri das lágrimas de uma pessoa. Então não quero mais falar com o senhor, porque eu falo com cristãos, não com ateus." Por uma ironia do destino, depois de condenado pelo inquisidor, Boff o telefonou quando o cardeal estava à beira da morte, fulminado por um câncer. Ao ouvi-lo, a autoridade eclesiástica desabafou, chorando: "Ninguém me telefona... foi preciso você me telefonar! Me sinto isolado (...) Boff, vamos ficar amigos, conheço umas pizzarias aqui perto do Vaticano..." (in Revista Caros Amigos – As Grandes Entrevistas, dezembro/2000).

21 Ferrajoli, Luigi, Derecho y Razón, Madrid: Editorial Trotta, 3ª. ed., 1998, p. 604.

22 Crime Organizado, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2ª. edição, 1997, p. 133

23 Lopes Jr., Aury, Investigação Preliminar no Processo Penal, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001, p. 74.

24 Como diz o Professor da Universidade de Valencia, Juan Montero Aroca, "en correlación con que la Jurisdicción juzga sobre asuntos de otros, la primera exigencia respecto del juez es la de que éste no puede ser, al mismo tiempo, parte en el conflicto que se somete a su decisión." (Sobre la Imparcialidad del Juez y la Incompatibilidad de Funciones Procesales, Valencia: Tirant lo Blanch, 1999, p. 186).

25 Iniciación al Proceso Penal Acusatório, Buenos Aires: Campomanes Libros, 2000, p. 43.

26 A respeito deste diploma legal, Alberto Silva Franco afirma que ela, "na linha dos pressupostos ideológicos e dos valores consagrados pelo Movimento da Lei e da Ordem, deu suporte à idéia de que leis de extrema severidade e penas privativas de alto calibre são suficientes para pôr cobro à criminalidade violenta. Nada mais ilusório." (Crimes Hediondos, São Paulo: Revista dos Tribunais, 4ª. ed., 2000, p. 97).

27 Os Princípios Constitucionais Penais, Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1991, pp. 37 e segs.

28 Escritos em Homenagem a Alberto Silva Franco, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 290.

29 Dos Delitos e das Penas, São Paulo: Hemus, 1983, p. 55 (tradução de Torrieri Guimarães).

30 Derecho Procesal Penal, Madrid: Colex, 3ª. ed., 1999, pp. 522/523.

31 Leis Penais e Sua Interpretação Jurisprudencial, Vol. I, São Paulo: Revista dos Tribunais, 7ª. ed., 2001, p. 896.

32 Ob. cit., p. 524.

33 Crimes Hediondos, São Paulo: Revista dos Tribunais, 4ª. ed., 2000, p. 357.

34 Boletim IBCCRIM – Ano 11 – nº. 127 – Junho/2003.

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Sobre o autor
Rômulo de Andrade Moreira

Procurador-Geral de Justiça Adjunto para Assuntos Jurídicos do Ministério Público do Estado da Bahia. Foi Assessor Especial da Procuradoria Geral de Justiça e Coordenador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias Criminais. Ex- Procurador da Fazenda Estadual. Professor de Direito Processual Penal da Universidade Salvador - UNIFACS, na graduação e na pós-graduação (Especialização em Direito Processual Penal e Penal e Direito Público). Pós-graduado, lato sensu, pela Universidade de Salamanca/Espanha (Direito Processual Penal). Especialista em Processo pela Universidade Salvador - UNIFACS (Curso então coordenado pelo Jurista J. J. Calmon de Passos). Membro da Association Internationale de Droit Penal, da Associação Brasileira de Professores de Ciências Penais, do Instituto Brasileiro de Direito Processual e Membro fundador do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (atualmente exercendo a função de Secretário). Associado ao Instituto Brasileiro de Ciências Criminais. Integrante, por quatro vezes, de bancas examinadoras de concurso público para ingresso na carreira do Ministério Público do Estado da Bahia. Professor convidado dos cursos de pós-graduação dos Cursos JusPodivm (BA), Praetorium (MG) e IELF (SP). Participante em várias obras coletivas. Palestrante em diversos eventos realizados no Brasil.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MOREIRA, Rômulo Andrade. O processo penal como instrumento de democracia. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 318, 21 mai. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5224. Acesso em: 25 abr. 2024.

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