Resumo: Este trabalho analisa o Código de Defesa do Consumidor (CDC), iniciando com considerações sobre seu advento. Demonstra-se que, a partir da Segunda Guerra Mundial, o aumento da produção em larga escala e o consequente crescimento do consumo de bens e serviços não foram acompanhados pela priorização da qualidade, gerando a necessidade de a legislação se adaptar a esse novo modelo social. No Brasil, até 1990, a proteção ao consumidor era precariamente assegurada pelo Código Civil de 1916 e pela Lei de Crimes contra a Economia Popular, normativas que se tornaram defasadas. Nesse contexto, foi instituída a Lei nº 8.078/90, o Código de Defesa do Consumidor. O CDC possui três características basilares: é uma lei principiológica, contém normas de ordem pública e interesse social, e configura um microssistema multidisciplinar. A relação de consumo, que pressupõe a figura do consumidor e do fornecedor, também é abordada, com destaque para os direitos básicos dos consumidores e os direitos metaindividuais (difusos e coletivos) e individuais homogêneos. Um dos legitimados para tutelar esses direitos coletivos é o Ministério Público (MP), instituição que, para bem servir à sociedade, ostenta garantias constitucionais como autonomia funcional, administrativa e financeira. Em sua atuação resolutiva, o MP busca solucionar conflitos extrajudicialmente, utilizando instrumentos como o Inquérito Civil e o Compromisso de Ajustamento de Conduta (TAC). No modelo demandista, o órgão ministerial atua por meio de demandas judiciais, sendo a Ação Civil Pública o principal instrumento na seara da defesa do consumidor.
Palavras-chave: Direito do Consumidor; Ministério Público; Tutela Coletiva; Relação de Consumo; Código de Defesa do Consumidor.
INTRODUÇÃO
O consumo é parte integrante do cotidiano da sociedade contemporânea. As relações de consumo evoluíram em larga escala, abrangendo uma multiplicidade de operações como compra e venda, leasing e comércio eletrônico. Nesse contexto de produção em massa, observa-se, por vezes, que o consumidor é relegado a segundo plano, com produtores focando na quantidade em detrimento da qualidade dos produtos e serviços ofertados. Como resultado, o consumidor pode se tornar alvo de práticas abusivas perpetradas por fornecedores, gerando um desequilíbrio na relação consumerista.
O presente trabalho justifica sua relevância social ao apresentar e analisar a Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990 – o Código de Defesa do Consumidor (CDC) –, um diploma legal fundamental que visa proteger a parte considerada vulnerável nessa relação.
A Constituição Federal de 1988 consagrou a defesa do consumidor no inciso XXXII do seu artigo 5º, estabelecendo o dever do Estado de promover essa proteção. A relevância jurídica deste estudo reside também em destacar o papel do Ministério Público (MP) na vanguarda da defesa dos interesses sociais mais relevantes, entre os quais se incluem os direitos dos consumidores. O MP atua, especialmente, quando a lesão atinge uma coletividade de pessoas que se encontram em situação fática similar. A partir da Constituição de 1988, o Parquet assumiu a incumbência de defender a ordem jurídica, o regime democrático e os interesses sociais e individuais indisponíveis. Assim, sempre que estiver presente um interesse ou direito dessa natureza – nos mais diversos campos, como meio ambiente, direito do consumidor, saúde, educação, direitos dos idosos, entre outros – o Ministério Público possui legitimidade para interceder em sua defesa.
Dessa forma, o tema central deste artigo é a tutela dos direitos coletivos consumeristas pelo Ministério Público.
Os objetivos específicos do artigo são:
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Analisar a efetividade da atuação do Ministério Público na defesa dos direitos coletivos do consumidor.
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Elucidar o desenvolvimento histórico e as bases do Código de Defesa do Consumidor.
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Definir os conceitos de consumidor, fornecedor, produtos e serviços no âmbito das relações de consumo.
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Apontar as atribuições legais do Ministério Público e suas ferramentas de proteção ao consumidor.
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Demonstrar, por meio de exemplos, a efetividade conferida às leis consumeristas a partir da intervenção ministerial.
A metodologia empregada é a pesquisa bibliográfica, desenvolvida a partir de materiais publicados em livros, artigos e periódicos, com embasamento legal em leis e jurisprudência. Adota-se, ainda, uma perspectiva dialética, que permite analisar a dinâmica das transformações, as inter-relações dos fenômenos e as contradições inerentes ao tema.
O artigo está organizado da seguinte forma: após esta introdução, o primeiro capítulo abordará considerações sobre o advento e as características do Código de Defesa do Consumidor. O segundo capítulo estudará a figura do consumidor, seguido pelo terceiro, que se debruçará sobre o fornecedor. O quarto capítulo tratará de produtos e serviços. O quinto capítulo cuidará dos direitos básicos do consumidor, desdobrando-se na apreciação dos direitos metaindividuais (difusos e coletivos) e dos interesses individuais homogêneos. No sexto capítulo, será feito um estudo sobre o Ministério Público, apontando suas garantias, funções e princípios institucionais. O sétimo capítulo abordará o Inquérito Civil, desde sua instauração até o arquivamento. Em seguida, o oitavo capítulo tratará da Ação Civil Pública. O nono capítulo trará casos concretos que demonstram a efetividade conferida às leis consumeristas após a intervenção do Ministério Público. Por fim, a conclusão exporá os resultados da pesquisa, traçando considerações sobre a relevância do órgão ministerial na defesa dos direitos dos consumidores.
1. CONSIDERAÇÕES SOBRE O ADVENTO DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR
Tornou-se cada vez maior o acesso das pessoas a bens e serviços prestados por fornecedores, graças aos avanços industriais, tecnológicos e às novas formas de comunicação. Nas palavras de Fabrício Bolzan,
O novo modelo de sociedade de consumo ora apresentado ganhou força com a Revolução Tecnológica decorrente do período Pós-Segunda Guerra Mundial. Realmente, os avanços na tecnologia couberam na medida ao novel panorama de modelo produtivo que se consolidava na história. Tendo por objetivo principal o atendimento da enorme demanda no aspecto quantitativo, o moderno maquinário industrial facilitou a produção e atendeu a este tipo de expectativa.1
A partir da Segunda Guerra Mundial os produtores estavam empenhados em vender cada vez mais, a seu turno os consumidores estavam inclinados a comprar, muitas vezes sendo enganados por propaganda enganosa. Segundo Catalan
[...] após o fim da Segunda Grande Guerra, as práticas comerciais evoluíram bem mais rápido que as leis editadas visando sua regulamentação, por exemplo, com a oferta crescente de novos produtos e serviços à coletividade, com o aparecimento de técnicas publicitárias mais agressivas, e ainda, com a crescente especialização dos entes coorporativos.2
Com as produções em massa, a qualidade não era o foco central, e sim a quantidade. Começavam a surgir os problemas, produtos e serviços viciados ou com defeitos que causavam prejuízos econômicos ou até mesmo físicos. Como as produções eram em grande escala, os contratos que predominavam eram os de adesão, neste o destinatário não tem o poder de alterar cláusula. Conforme Serrano,
Veio a necessidade de intervenção do estado para regular, estabelecer normas protetoras das relações de consumo, impondo responsabilidade aos intermediários e produtores pela qualidade de seus produtos e transparência de seus defeitos ao público.3
Para resguardar os direitos dos que adquiriam bens e produtos, até o ano de 1990, havia, essencialmente, duas leis, quais sejam: a Lei 3.071/1916 – antigo Código Civil, e a Lei 1.521/1951 – Crimes contra a economia popular.
Contudo, o Código Civil de 1916 tornou-se defasado, haja vista ter sido criado inspirado no liberalismo econômico do século XIX que se pautava nas relações individualizadas, o qual se caracterizava por um equilíbrio entre os sujeitos que firmavam o contrato. Acontece que no novo modelo de sociedade os vícios e defeitos se apresentavam com frequência. Mas o Direito em voga na época não estava apto a cuidar da parte mais fraca na relação de consumo, o consumidor. A transformação que se sucedeu clamou por legislações específicas.
Foi então que 11 de setembro de 1990 foi instituída a Lei 8.078, o Código de Defesa do Consumidor - CDC. Ele veio justamente para sanar as deficiências do Código Civil, lacunas que tornavam insuficientes a proteção ao consumidor.
Também vale destacar importantes mandamentos da Constituição da República de 1988 concernentes à defesa do consumidor, temos os arts. 5º, XXXII e 170, V, e o art. 48. no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Pelo art. 5º da CF/88 todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade, nos termos seguintes: XXXII – o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor.
A CF/88 aborda a defesa do consumidor como princípio fundamental porque o consumidor busca no mercado tudo o que é produzido, almejando satisfazer suas necessidades básicas.
Conforme os ensinamentos de Catalan:
Visando solucionar parte dos conflitos de interesses que explodiram diuturnamente no seio social, enquanto fruto de determinação insculpida no artigo 5º da Constituição Federal, o Código de Defesa do Consumidor, foi aprovado em 1990, objetivando ser um instrumento efetivo de proteção às relações de consumo, mas principalmente, visando salvaguardar o pólo mais fraco da relação negocial, explorando desde antes de seu nascimento e até mesmo após sua morte.4
O Art. 170. da CF/88 determina que a ordem econômica é fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tendo por fim assegurar a todos a existência digna, conforme os ditames da justiça social, observando princípios, dentre eles no V consta a defesa do consumidor.
Já o art. 48. do ADCT diz que O Congresso Nacional, dentro de cento e vinte dias da promulgação da Constituição, elaborará código de defesa do consumidor.
Como dita a Constituição, é do Estado o dever de amparar o consumidor na relação jurídica de consumo, Bolzan explica que
O legislador constituinte optou pela elaboração codificada do Direito do Consumidor, e não pela edição de leis específicas, cada uma disciplinadora de assuntos afetos às relações jurídicas de consumo. Apesar de existirem outras leis especiais dentro do sistema de proteção do consumidor, no momento da elaboração do Diploma de defesa do consumidor a opção pela codificação foi a mais acertada.5
O Direito do Consumidor é ferramenta de suma importância nas regulamentações das relações jurídicas, nas quais de um lado está o consumidor vulnerável e do outro o fornecedor que detém todo o conhecimento técnico da produção.
1.2. CARACTERÍSTICAS ACERCA DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR
O Código de Defesa do Consumidor possui três características basilares: lei principiológica; normas de ordem pública e interesse social e microssistema multidisciplinar.
Lei principiológica se deve ao fato de o CDC ser constituído por inúmeros princípios que visam conferir direitos aos consumidores e a impor deveres aos fornecedores.
Por sua vez, norma de ordem pública e interesse social é garantia expressa no art. 1º da Lei 8.078/90. Significa dizer que o Juiz pode de ofício reconhecer direitos do consumidor; as decisões têm caráter educativo e de alerta para a toda a sociedade e para os fornecedores; as partes não podem abolir direitos, leciona Bolzan:
A autonomia da vontade e a pacta sunt servanda, institutos muito presentes no Direito Civil clássico, foram mitigadas no CDC em razão da necessidade do intervencionismo estatal que buscou atingir, em última análise, o reequilíbrio da relação de consumo que é muito desigual. Desta forma, sendo abusiva uma cláusula contratual, ela será anulada, não cabendo a alegação de que o consumidor estava consciente e de que gozava da plenitude de sua capacidade mental.6
Por fim, como microssistema multidisciplinar, o CDC agrega múltiplas disciplinas jurídicas, tais como, direito constitucional, direito processual civil, direito civil, direito penal, direito administrativo.
Foi então que 11 de setembro de 1990 foi instituída a Lei 8.078, o Código de Defesa do Consumidor – CDC.
2. CONSUMIDOR
Perante o CDC, em seu artigo 2º, consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final.
De acordo com a Teoria Finalista ou subjetiva, conceituar consumidor é o cerne da proteção do CDC, para essa Teoria quando se fala em "destinatário" no artigo 2º está se referindo ao destinatário fático e econômico do bem ou do serviço, ou seja, a interpretação é feita de forma restrita, a relação não engloba fins profissionais, mas sim considera consumidor aquele que adquire produto para seu uso próprio ou de sua família.
Há de se destacar que após o Código Civil de 2002 a Teoria Finalista ganhou amplitude e se aprofundou nos conceitos de consumidor imediato e também no conceito de vulnerabilidade.
À guisa de exemplo do finalismo aprofundado é a aceitação da pessoa jurídica como consumidora, porém, ela deve comprovar fragilidade no caso concreto.
Interessante observar a jurisprudência do STJ (REsp. 476.428/SC, Rel. Nancy Andrigui, j. 19.04.2005, DJ. 09.05.2005): Direito do Consumidor. Recurso especial. Conceito de consumidor. Critério subjetivo ou finalista. Mitigação. Pessoa Jurídica. Excepcionalidade. Vulnerabilidade. Constatação na hipótese dos autos. Prática abusiva. Oferta inadequada. Característica, quantidade e composição do produto. Equiparação (art. 29). Decadência. Inexistência. Relação jurídica sob a premissa de trato sucessivo. Renovação do compromisso. Vício oculto. – A relação jurídica qualificada por ser “de consumo” não se caracteriza pela presença de pessoa física ou jurídica em seus polos, mas pela presença de uma parte vulnerável de uma lado (consumidor), e de um fornecedor, de outro. – Mesmo nas relações entre pessoas jurídicas, se da análise da hipótese concreta decorrer inegável vulnerabilidade entre a pessoa-jurídica consumidora e a fornecedora, deve-se aplicar o CDC na busca do equilíbrio entre as partes.
Ao consagrar o critério finalista para interpretação do conceito de consumidor, a jurisprudência deste STJ também reconhece a necessidade de, em situações específicas, abrandar o rigor do critério subjetivo do conceito de consumidor, para admitir a aplicabilidade do CDC nas relações entre fornecedores e consumidores-empresários em que fique evidenciada a relação de consumo. – São equiparáveis a consumidor todas as pessoas, determináveis ou não, expostas às práticas comerciais abusivas. – Não se conhece de matéria levantada em sede de embargos de declaração, fora dos limites da lide”.
Pelo exposto fica claro que a vulnerabilidade será presumida quando o consumidor for pessoa física; e no caso de consumidor pessoa jurídica a vulnerabilidade deve ser comprovada.
O CDC também contempla a figura do consumidor por equiparação, o qual engloba e tutela outras pessoas, além do adquirente direto de um produto ou um serviço. O CDC trata desse assunto em três momentos. O parágrafo único do artigo 2º diz que "equipara-se a consumidor a coletividade de pessoas, ainda que indetermináveis, que haja intervindo nas relações de consumo". Esse dispositivo almeja evitar ou reparar a ocorrência de um dano em face dessa coletividade de consumidores.
Em seguida o artigo 17 informa que "para os efeitos desta Seção, equiparam-se aos consumidores todas as vítimas do evento". A seção a que se refere trata da Responsabilidade pelo "Fato do Produto e do Serviço", logo, o simples fato de ser vítima de um produto ou serviço será o tutelado pelo CDC. É, portanto, irrelevante identificar a pessoa que adquiriu o produto ou o serviço.
A vítima do evento danoso também é conhecida como bystanders, que será equiparada ao consumidor não por ser destinatária final de um produto ou serviço, mas por estar no local dos fatos quando da ocorrência do acidente de consumo.
Ainda, o artigo 29 dita: "para os fins deste Capítulo e do seguinte, equiparam-se aos consumidores todas as pessoas determináveis ou não, expostas às práticas nele previstas". Ele está relacionado aos consumidores expostos às práticas comerciais.
3. FORNECEDOR
Impreterivelmente há a figura do fornecedor na relação de consumo, sendo conceituado de forma ampla no artigo 3º do CDC:
Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividade de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços.
O artigo acima trazer à baila toda a cadeia de fornecimento. A habitualidade é a característica principal para considerar as pessoas físicas como fornecedoras; conforme preleciona Rizzatto Nunes (2009), também estão enquadradas os que atuarem com eventualidade e fins lucrativos, como os profissionais liberais.
A partir do ensinamento extraído da jurisprudência do STJ constante do Agravo em Recurso Especial 1.963, Rel. Ministro Mauro Campbell Marques, publicado em 04.04.2011, depreende-se com precisão que o CDC não exige expressamente que o fornecedor de produtos e serviços seja um profissional, no entanto há o requisito da habitualidade:
Destaca-se que para serem fornecedoras as recorrentes teriam que desenvolver habitualmente como sua atividade a comercialização de lotes, situação esta que como vimos acima não ocorreu, pois conforme se depreende dos documentos acostados com a exordial, elas somente cederam alguns lotes por imposição da situação já explanada.
Quanto a esse assunto, Rizatto Nunes discorre:
No caso de uma pessoa física, ao exercer uma atividade atípica ou eventual, quando praticar atos de comércio ou indústria, a exemplo de um estudante que compra e revende lingerie para poder pagar seus estudos, isto o caracteriza como fornecedor perante o CDC, porém se ele somente revender seu produto no período natalino, ainda assim é considerado fornecedor, trata-se de atividade comercial.7
O Estatuto do Torcedor, Lei n. 10.671/2003 em seu art. 3º, apresenta o fornecedor equiparado, sua redação diz que para todos os efeitos legais a entidade responsável pela organização da competição e a entidade de prática desportiva detentora do mando de jogo equiparam-se a fornecedor, nos termos da Lei n. 8.078, de 11 de setembro de 1990.
O equiparado não é o fornecedor do contrato principal de consumo, mas o intermediário, o titular da relação conexa e principal de consumo.