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Reflexões sobre a advocacia, em seu contexto de indispensabilidade à administração da Justiça

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28/05/2004 às 00:00
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9) A limitação dos honorários

Os honorários advocatícios devem ser limitados. Não se pode admitir que para não correr o risco de perder tudo, que a parte se veja submetida a deixar a metade (ou mais) com o advogado.

Advogado não é sócio, deve ser remunerado com dignidade, mas essa remuneração com dignidade não pode subtrair a dignidade ao cliente. A dignidade é um bem universal, que não pode ter nem privilegiados, nem excluídos.

Os honorários precisam de uma limitação mínima, porque servem ao sustento e à dignidade do advogado [19]. Não se justifica sua fixação em valores irrisórios, mormente quando a sucumbente é a Fazenda Pública, ou quando os valores em discussão forem muito altos. Este raciocínio vem sendo interpretado até como demonstração de um certo despeito dos magistrados, que consideram absurdo que o advogado aufira mais que seus vencimentos. Este tipo de raciocínio serve ainda para ampliar a vantagem na resistência às pretensões, a medida que, é pouco o plus a que o resistente estará obrigado, em comparação ao tempo ganho no cumprimento da obrigação.

Entretanto, se há necessidade de uma limitação mínima, para resguardar a dignidade do advogado, não se pode olvidar que a limitação máxima é indispensável para garantir que o processo restituirá as partes ao status quo ante, sem tornar-se um meio de substituição da injustiça ocasionada pela parte adversa, pela injustiça causada pelo advogado.

Tomo, por exemplo, a Justiça do Trabalho onde campeiam honorários de 30, 40 e 50%. Um empregado que receba anos de horas extras, de uma vez, se vê obrigado a deixar a metade para um advogado que atuou no seu processo por algumas horas ou alguns minutos, muitas vezes utilizando-se de petições padronizadas. Mais grave ainda é quando o empregado é reconhecido como carente, a merecer assistência judiciária. Nesses casos, ao invés do advogado isentá-lo do pagamento de honorários, contentando-se com os 15% previstos em lei e suportados pela parte contrária, entende que devem incidir honorários normais (de 20% ou mais), acrescidos dos assistenciais. Como os honorários devem servir principalmente para que a parte vencedora possa se ressarcir dos gastos, nesse caso, além de não fazê-lo ainda pagará honorários maiores que os demais mortais apenas porque é mais carente.

Há um outro efeito colateral. Quanto maiores os honorários envolvidos, mais o advogado passa a ter interesse pessoal na causa, de forma que, as razões que contra-indicam o advogar em causa própria, passam a transparecer, mormente a transformação do fígado em órgão pensante.

Os honorários devem ser limitados por lei e os próprios contratos de honorários deveriam ser obrigatoriamente juntados aos autos e passíveis de discussão, independentemente de ação própria, desde que a parte manifestasse sua discordância, observada a ampla defesa. A Advocacia possui uma finalidade pública indissociável, não se podendo, em nome de sua autonomia, permitir que sirva apenas para deslocar a titularidade do agente causador do dano, com sua redução, ou seja, do resistente à pretensão ao advogado, com uma agravante: se o advogado protege o cliente contra a parte contrária, quem protegerá o cliente contra o próprio advogado, mormente na assinatura do contrato de honorários e sua execução???

A base de cálculo também deveria estar restrita à vantagem obtida (não se podendo tratar igualmente verbas reconhecidas e pagas e verbas resistidas [20]).

Aliás, não se pode olvidar que a assistência judiciária deva ser conferida a quem não tem condições de pagar advogado. Nessa ótica, nada impede que o Juiz exija declaração de punho, do advogado, de não estar cobrando honorários do assistido, pena de indeferimento da assistência pugnada. Na hipótese do advogado declarar não estar cobrando honorários diretos e vir a fazê-lo, além da sanção ética, deve responder criminalmente, na forma da lei. Esta é uma prática que deveria se tornar corrente, para se evitar, como se disse, que os desvalidos arquem com honorários superiores aos pagos pelos aquinhoados sociais. Deveria ainda, ser positivada, para evitar celeumas acerca da licitude.

Os honorários a serem repassados ao patrono da parte as detentora de assistência judiciária, são apenas os que desta decorrem. Este fato independe de declaração; antes, tem nascedouro na própria concessão do benefício. A própria OAB, através de seu Conselho Federal, já reconheceu a ilicitude da cobrança de honorários advocatícios de quem é detentor de assistência judiciária, como se verifica do aresto:

"HONORÁRIOS. COBRANÇA DE CLIENTE BENEFICIÁRIO DA JUSTIÇA GRATUITA. INFRAÇÃO CONFIGURADA. INDICAÇÃO INCORRETA DA NORMA, QUE NÃO ACARRETA PREJUÍZO PARA A PARTE, NÃO INVALIDA O ATO. A cobrança de honorários advocatícios de clientes beneficiários da justiça gratuita se apresenta como conduta manifestamente incompatível com o exercício da Advocacia, com a configuração da infração disciplinar prevista no art. 103, inciso XIV, da Lei 4.215/63. A Lei Material aplicável é a vigente à época do feito. (...) (Proc. 2.133/2000/SCA-SP, Rel. Luiz Filipe Ribeiro Coelho (DF). Ementa 057/2000/SCA, julgamento em 12.06.00, por unanimidade. DJ 03.07.00. p. 59). [21]

Por fim, é necessário tornar mais formal a concessão de poderes especiais, principalmente para receber, dar quitação e transigir. O Direito do Consumidor há muito já ojeriza a utilização de contratos e cláusulas padronizadas, com efeitos superlativos e firmadas, muitas vezes, sem que o usuário do serviço consiga apreender a gravidade do pacto ou dos poderes que outorgou. Os poderes especiais assim, deveriam depender da outorga de mandato por instrumento público ou apud acta, após cientificação expressa pelo tabelião ou Juiz, dos efeitos correspondentes.


10) A efetividade do processo em face do entrave do advogado

Ao lado da limitação dos honorários advocatícios, há necessidade de se garantir que o próprio advogado não se tornará um entrave à efetivação da justiça.

Não são poucos os casos em que o advogado não se limita a instruir seu cliente, colocando-se radicalmente contra a conciliação, apesar de não ser o titular do direito de ação.

Em muitos casos, inclusive, no processo se obtém uma solução não conciliatória, em razão única e exclusivamente do advogado, que desprezando, por completo a vontade da parte, manifesta-se contrário à celebração de acordo. Quando os honorários são cobrados por ato, principalmente na defesa do réu, tal postura pode traduzir a colocação do interesse próprio sobre o interesse do constituinte. Quando são cobrados de forma percentual, não se pode, apenas para garantir o direito aos honorários, manter-se o litígio também com a parte adversa. Aliás, especificamente no processo do trabalho, há advogados que afirmam que a Justiça do Trabalho não tem competência para dirimir a controvérsia entre o empregado e seu advogado (devendo ser dirimida a controvérsia na Justiça Comum), mas que são os mesmos em sustentar que um acordo não deva ser homologado, por prejudicar-lhes os mesmos honorários.

Há contudo, situação ainda pior. Por detrás de um pretenso direito a ver discutida a relação em processo próprio, há casos, ainda que isolados, de causídicos que se apropriam, indevidamente, do total devido a seu constituinte e ante a determinação de restituição, afirmam que a discussão deva se travar em processo próprio. A afirmação é falaciosa, porquanto a efetividade do processo pressupõe o pagamento ao credor e não a terceiro e, em segundo lugar, um processo alimentar, satisfeito após vários anos, passa a ter sua estrada recomeçada, em ritmo e rito ordinário, apenas para premiar a má-fé.

Nesses casos, o Juiz não só pode, como deve mandar intimar o advogado a apresentar comprovante de que efetuou o repasse dos valores a quem de direito, com redução dos honorários pactuados (até o limite do razoável), pena de execução nos próprios autos.

Por fim, é necessário criar um mecanismo para que se declare caduca a representação pelo advogado, no caso de sua repetida inércia ou inépcia (como ocorre no júri). Não são raros os feitos que aguardam providências de advogados, sem que o cliente conheça de sua inércia (e muitas vezes, sequer é possível dar-lhe a conhecer, porque as mudanças de endereço não são comunicadas, dolosa ou culposamente).


11) A Advocacia a prevenir litígios e processos

Os operadores jurídicos não são preparados para solucionar litígios e sim para juridiscizá-los.

A conciliação e a transação envolvem uma série de operações psicológicas para as quais não há qualquer preparação dos acadêmicos de direito, dos juízes, Promotores e advogados.

As causas possuem, muitas vezes, uma causa psicológica que não pode ser desprezada, porquanto uma vez descoberta possuem rápida e fácil solução. Por vezes, uma repreensão judicial ao ato do réu, ainda que verbal é, para o autor, muitas vezes mais importante do que uma grande soma em dinheiro. Descoberta essa situação, é possível obter-se a conciliação das partes, por quantia mínima; ignorada essa situação, nenhum valor, com todas as implicações jurídicas decorrentes, satisfará o autor.

Os operadores jurídicos não são capazes de buscar o diálogo ou uma solução extrajudicial para as causas, tendendo, ao contrário, a ampliar a lide.

Há um limite entre o esclarecimento do cliente acerca de seus direitos que não traduz uma autorização para a "criação" de direitos ou ampliação da lide. Não se pode admitir que o próprio cliente se veja surpreendido por pedidos que não pretendia formular e que tornam, ainda mais, difícil uma solução amigável endoprocessual ou extraprocessual.

O ideal seria que os advogados buscassem sempre uma solução não-judicial para os litígios, servindo-se de notificações extrajudiciais ou mesmo do diálogo com a parte adversa, abreviando etapas e sem elas, a satisfação do direito buscado.

Por outro lado, os advogados e todos os demais operadores jurídicos não podem mais ignorar que o jurídico constitui apenas um instrumento para a solução dos litígios e não um fim em si mesmo; que o processo deve servir ao homem e não o homem ao processo, situação que se verifica quando se transforma na oficialização de teses acadêmicas, onde a parte passa de ator a espectador, cuja intervenção é vista como uma suprema heresia e a discordância uma apostasia.

A solução do processo é aquela que possa causar melhor satisfação, o que nem sempre passa pela decisão judicial, nem pelo montante do valor pago ou recebido.

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12) Conclusão

A Justiça não é perfeita, possui suas mazelas, seus vícios e suas máculas. Não é perfeita, primeiro porque é humana, mas também por ser vitimada e manietada por leis mal feitas e por operadores jurídicos, por vezes, despreparados, inertes ou carentes de retidão de caráter.

A Magistratura não é perfeita, o Ministério Público não é perfeito, mas também não o é, a Advocacia, como bem recorda José Maria e Silva:

O diagnóstico está certo — a Justiça é, sem dúvida, a mais grave doença do país. Mas a terapia está completamente errada — o controle externo do Judiciário não cura o Brasil. Culpar o Judiciário pela inexistência de Justiça no país é o mesmo que responsabilizar exclusivamente o médico pelas mazelas do sistema de saúde. Os Tribunais de Justiça, a exemplo dos hospitais de urgência, só cuidam do cidadão depois que ele passa pelas mãos dos responsáveis pelo atendimento básico de seus direitos — geralmente policiais, advogados e Promotores. Controlar o Juiz — o último elo na cadeia da Justiça — não torna o Promotor mais escrupuloso, o advogado mais ético e o policial mais investigativo. É como tentar pôr um telhado numa casa sem alicerces. [22]

A Ordem dos Advogados do Brasil tem uma responsabilidade ímpar no aperfeiçoamento das instituições, mas, para que possa atuar nessa luta sem fim, de forma irretocável, deve reconhecer que somente pode criticar quem não se coloca como impermeável às críticas. Assim o exige a democracia.

Deve sujeitar-se portanto, a não apenas ao controle do Tribunal de Contas da União, por impor pagamento de contribuições compulsórias, como também, a manter, em seus Tribunais de Ética, membros oriundos da Magistratura e do Ministério Público e até, em uma visão mais profunda, a um controle externo, a exemplo do que se prega para a Magistratura e o Ministério Público.

Por outro lado, a defesa intransigente que deve fazer é da instituição da Advocacia e não da pessoa do advogado, em particular, porquanto visa, em última análise, a independência na função, única garantia de que prevalecerá a justiça e não a ditadura do Judiciário ou o arbítrio do Juiz.

Não é possível harmonizar a função Corregedora da OAB (que é a própria razão de sua existência) com a função de defensora intransigente do advogado. A defesa deve ser da instituição, relegando-se às associações de classe (e sindicatos de advogados) a proteção dos indivíduos, até porque, há ocasiões em que se antagonizam.

A Advocacia carece de especialização, porque o direito torna-se, dia a dia, mais complexo e porque o sistema não perdoa o erro do advogado. Essa especialização passa pela aquisição de conhecimentos interdisciplinares [23], inclusive de psicologia e administração, para que o advogado possa gerir melhor os processos colocados sob sua tutela e se utilizar de instrumentos metajurídicos que visem a solução dos litígios e não sua jurisdicização. Deve-se incutir no advogado uma filosofia de solução de conflitos e não de sua manutenção, incentivo ou

Carece ainda de instanciamento, adquirindo o advogado capacidade postulatória de forma progressiva, porquanto sua atuação no processo, pela irreversibilidade dos atos, é mais complexa que a do Juiz.

A Advocacia deve ter sua dignidade preservada, com igual importância à dignidade da parte, o que impõe a limitação mínima e máxima dos honorários e a vedação de cobrança de honorários das partes a quem se concedeu assistência judiciária.

Deve se impor a representação por advogado em todos os processos. O jus postulandi deve ser extinto por não se justificar mais em uma época e que há, no Brasil, cerca de 500.000 advogados e por criar um desequilíbrio que afeta o sagrado direito de defesa, que impõe paridade de armas.

A assistência judiciária deve ser provida a todos quantos não tenham condições de exercer judicialmente a cidadania. Sem acesso à justiça, sem direito de petição universalizado, não há cidadania em sentido democrático (para todos).

Como o Estado não tem como prover assistência a todos os que dela necessitam, os bacharéis formados por Universidades Públicas devem restituir o conhecimento que a sociedade lhes proporcionou em serviços destinados aos mais pobres, observado o instanciamento.

O aperfeiçoamento da Advocacia fará com que o advogado se torne, efetivamente, a garantia da justiça, recuperando o povo a confiança no sistema. A parte não se sentirá insegura ante o advogado, por saber que seus padrões éticos são elevados, nem diante do Juiz, por saber que seu advogado saberá exercer o seu munus de forma satisfatória, recorrendo dos eventuais erros do Juiz e assim sucessivamente.

Em resumo, todo o sistema de justiça brasileiro está a merecer aprimoramento, o que inclui a Advocacia, que não é a exceção perfeita em essência e conteúdo, não podendo assim taxar de injustas todas as queixas que contra ela se faça. Urge a construção de um novo sistema. Um sistema que considere o advogado peça indispensável do sistema jurisdicional, a quem devam ser dados meios materiais (o que inclui o fim do jus postulandi e o Estado deixar de considerar a assistência judiciária como um luxo, ao invés de atributo necessário da cidadania). Um sistema que imponha o constante aperfeiçoamento e especialização da classe dos advogados (a exemplo do que deve ocorrer também com a Magistratura e o Ministério Público). Um sistema que recupere os fins da participação da Advocacia na Magistratura, concedendo idêntico munus à Magistratura, em seus Tribunais de Ética. Um sistema que imponha à OAB a recuperação de suas funções primordiais que são a efetiva correição da Advocacia e seu aperfeiçoamento institucional, inclusive com controle externo. Um sistema que torne a verba honorária advocatícia suficiente para o advogado, mas justa para o cliente, que não é sócio do advogado, mas cidadão que dele precisa para exercer direito fundamental da cidadania, ou seja, o de petição. Um sistema que torne o advogado participante efetivo na solução dos litígios, não seus criadores, incentivadores ou mantenedores. Um sistema que redescubra que por detrás do litígio e como fim dos processos está o ser humano, cuja dignidade é o fim último da Justiça, sendo os operadores jurídicos meros instrumentos, meios de concretização (sejam eles Advogados, Juízes, Policiais ou membros do Ministério Público ou, ainda, servidores). Estas modificações passam pela necessidade de reforma legislativa, mas também pela mudança de mentalidade dos atores jurídicos, esta talvez mais fácil, rápida e imediata, por depender apenas da consciência.

O homem é o fim e a medida de todas as coisas, inclusive da Justiça e da Advocacia.

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Sobre o autor
José Ernesto Manzi

Desembargador do TRT-SC. Juiz do Trabalho desde 1990, especialista em Direito Administrativo (La Sapienza – Roma), Processos Constitucionais (UCLM – Toledo – España), Processo Civil (Unoesc – Chapecó – SC – Brasil). Mestre em Ciência Jurídica (UNIVALI – Itajaí – SC – Brasil). Doutorando em Direitos Sociais (UCLM – Ciudad Real – España). Bacharel em Filosofia (UFSC – Florianópolis – SC – Brasil), tendo recebido o prêmio Mérito Estudantil (Primeiro da Turma)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MANZI, José Ernesto. Reflexões sobre a advocacia, em seu contexto de indispensabilidade à administração da Justiça. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 325, 28 mai. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5244. Acesso em: 19 abr. 2024.

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