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O ICMS na importação de bens por pessoa física ou jurídica não contribuinte do imposto.

Análise das alterações trazidas pela EC nº 33/2001 e a Súmula do STF

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24/05/2004 às 00:00
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As importações para uso próprio por pessoas não contribuintes habituais do ICMS não estão sujeitas ao imposto estadual.

Introdução

Este breve arrazoado objetiva analisar o cenário jurídico que se formou sobre a questão da não incidência do ICMS na importação de bens por pessoa física ou jurídica não contribuinte do imposto – incluindo neste apanhado a posição adotada pelo Colendo Supremo Tribunal Federal sobre a matéria – bem como se as alterações introduzidas na Constituição Federal pela Emenda Constitucional n.º 33, de 11 de dezembro de 2001 (EC n.º 33/2001) devem ou não alterar o entendimento até então prevalecente.


O ICMS na importação antes da EC n.º 33/2001

Antes da EC n.º 33/2001, o artigo 155, § 2.º, IX, "a", da Constituição Federal disciplinava a incidência do ICMS na importação com a seguinte redação:

"Art. 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre:

(...)

§ 2.º O imposto previsto no inciso II atenderá ao seguinte:

(...)

IX - incidirá também:

a) sobre a entrada de mercadoria importada do exterior, ainda quando se tratar de bem destinado a consumo ou ativo fixo do estabelecimento, assim como sobre serviço prestado no exterior, cabendo o imposto ao Estado onde estiver situado o estabelecimento destinatário da mercadoria ou do serviço."

As Fazendas Estaduais, por seu turno, entendiam que a disposição constitucional supra lhes conferia uma carta branca para a cobrança do ICMS em toda e qualquer importação, sem fazer distinção entre pessoa física ou jurídica, contribuinte ou não do imposto. Do outro lado da discussão, estavam as pessoas físicas ou jurídicas que não eram contribuintes do imposto e que sustentavam a sua não incidência na importação de bens para uso próprio ou para a realização de sua atividade essencial, respectivamente, neste último caso, por tratar-se de produto destinado à integração do ativo fixo.

Não demorou muito e o impasse chegou às barras dos tribunais superiores. Inicialmente, analisando a legislação complementar que rege o imposto sob comento, o Egrégio Superior Tribunal de Justiça (STJ) firmou o entendimento de que o ICMS era devido nas importações realizadas por pessoas físicas, chegando, inclusive, a editar duas súmulas sobre o assunto. A Súmula n.º 155 dispunha: "O ICMS incide na importação de aeronave, por pessoa física, para uso próprio." E a Súmula n.º 198 arrematava: "Na importação de veículo por pessoa física, destinado a uso próprio, incide o ICMS."

Todavia, considerando que a estrutura e os aspectos gerais do ICMS são tratados na Constituição Federal, era questão de tempo até que o Supremo Tribunal Federal (STF) fosse chamado para se pronunciar sobre a tormentosa questão. E isso não tardou a acontecer. Houve, então, uma mudança drástica na compreensão da matéria. A Corte Suprema firmou uma posição diametralmente oposta àquela que vinha prevalecendo no STJ, ao concluir que o importador, tanto pessoa física como jurídica, não contribuinte do ICMS, não estava sujeito à cobrança do referido imposto estadual. Os precedentes versando sobre a impossibilidade da cobrança do tributo em tais situações foram se multiplicando [1] e, por fim, o Plenário do STF sedimentou o assunto.

O leading case tem a seguinte ementa (RE n.º 203.075-9/DF, Tribunal Pleno, Red. p/ acórdão Min. Maurício Corrêa, j. 5/8/1998, maioria de votos, DJU 29/10/1999):

"RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. PESSOA FÍSICA. IMPORTAÇÃO DE BEM. EXIGÊNCIA DE PAGAMENTO DO ICMS POR OCASIÃO DO DESEMBARAÇO ADUANEIRO. IMPOSSIBILIDADE.

1. A incidência do ICMS na importação de mercadoria tem como fato gerador operação de natureza mercantil ou assemelhada, sendo inexigível o imposto quando se tratar de bem importado por pessoa física.

2. Princípio da não-cumulatividade do ICMS. Pessoa física. Importação de bem. Impossibilidade de se compensar o que devido em cada operação com o montante cobrado nas anteriores pelo mesmo ou outro Estado ou pelo Distrito Federal. Não sendo comerciante e como tal não estabelecida, a pessoa física não pratica atos que envolvam circulação de mercadoria.

Recurso extraordinário não conhecido."

No caso do RE n.º 203.075-9/DF estava em discussão a importação para uso próprio de um veículo automotor por uma pessoa física. Posteriormente, o Plenário do STF foi confrontado novamente com a questão do ICMS na importação de bens por não contribuinte, contudo, agora envolvendo uma pessoa jurídica. O caso concreto dizia respeito à importação de um aparelho de mamografia por uma sociedade civil [2].

Durante o julgamento, os ministros do Supremo Tribunal Federal relembraram a posição do Sodalício na apreciação plenária do RE n.º 203.075-9/DF, que envolvia pessoa física, e confirmaram, por maioria, a impossibilidade da cobrança do ICMS na importação de bens também por pessoa jurídica que não é contribuinte do imposto.

Merece destaque o percuciente raciocínio externado pelos eminentes Ministros Marco Aurélio e Sepúlveda Pertence em declarações de votos vencedores no caso da importação por uma pessoa jurídica constituída sob a forma de sociedade civil e, portanto, não contribuinte do ICMS. Colhem-se os excertos abaixo, "verbis ad verbis":

"No caso em que envolvida pessoa natural, ou seja, no Recurso Extraordinário n.º 203.075/DF, também votei entendendo que não há a incidência do tributo (...). É o que se verifica na espécie dos autos. (...) Em síntese, somente ocorre a aplicação do dispositivo quando se cuida, realmente, de importador que seja contribuinte do ICMS." – Min. Marco Aurélio; grifo acrescentado.

"Também eu, no RE 203.075/DF, ao acompanhar o voto do Sr. Ministro Maurício Corrêa, levei em consideração não o fato – para mim absolutamente incidental – de cuidar-se de pessoa física, mas sim o de não se cuidar de contribuinte do ICMS. É o caso, pouco importando que na espécie se trate de pessoa jurídica." – Min. Sepúlveda Pertence; sublinhado acrescentado.

Ao analisar os dois precedentes oriundos do Plenário do STF (RE n.º 203.075-9/DF e RE n.º 185.789-7/SP), verifica-se que os fundamentos básicos que levaram a Corte Suprema a afastar a cobrança do ICMS nas importações realizadas por pessoas físicas ou jurídicas não contribuintes do imposto, podem ser resumidos assim: a) a expressão "operações" empregada no texto constitucional traz ínsita a significação de ato mercantil; b) o vocábulo "circulação", próprio da estrutura do ICMS, pressupõe a mudança de titularidade e não a de simples movimentação física do bem; c) o termo "mercadoria" exige a compreensão de objeto de comércio por quem exerce a mercancia com freqüência e habitualidade; d) a palavra "estabelecimento" tem o sentido que lhe foi dado pelo direito comercial, a saber, local próprio ou edifício em que é exercida a profissão de comerciante, compreendendo todo o conjunto de instalações e aparelhamentos necessários ao desempenho do negócio, componentes do fundo de comércio; e) não há como aplicar o princípio da não-cumulatividade do imposto nas importações feitas por pessoas físicas ou jurídicas que não circularão o bem importado.

Reputa-se correto o entendimento plenário do STF, afinal, conforme registrado pelo Ministro Maurício Corrêa ao proferir o seu voto no RE n.º 203.075-9/DF, "é de fundamental importância que se busque interpretar os princípios gerais de direito privado, para pesquisar a definição, o conteúdo e o alcance dos conceitos utilizados pela Constituição Federal que, por estarem prescritos na legislação comum, não podem ser alterados pela legislação tributária (CTN, artigos 109 e 110)". Trata-se de lembrete argutamente inserido no momento temporal adequado e que serve de parâmetro.


O ICMS na importação com o advento da EC n.º 33/2001

O assunto parecia ter sido resolvido com o entendimento esboçado pelo Pleno do STF. É digno de nota que até o STJ passou a rever a sua jurisprudência e praticamente afastou a aplicação de suas súmulas, que agora, estavam na contra-mão da história, submetendo-se, a partir daí, à interpretação suprema da Carta Magna feita pelo STF [3].

Entretanto, com o advento da EC n.º 33/2001 houve uma alteração substancial no conteúdo do artigo 155, § 2.º, IX, "a", da Constituição Federal, que passou a rezar:

"Art. 155.............................................

§ 2.º.................................................

.............

IX - incidirá também:

a)sobre a entrada de bem ou mercadoria importados do exterior por pessoa física ou jurídica, ainda que não seja contribuinte habitual do imposto, qualquer que seja a sua finalidade, assim como sobre o serviço prestado no exterior, cabendo o imposto ao Estado onde estiver situado o domicílio ou o estabelecimento do destinatário da mercadoria, bem ou serviço."

A alteração do texto constitucional, à primeira vista, pode transparecer ter aberta uma permissão para a cobrança do ICMS do importador, pessoa física ou jurídica, não contribuinte do imposto. Porém, a aprovação pelo Colendo STF da Súmula n.º 660 (aprovada em plenário no dia 24/9/2003 e publicada no DJU de 15/10/2003), lançou dúvida sobre essa assertiva. Diz a Súmula de maneira contundente, "ipsis litteris":

"Não incide ICMS na importação de bens por pessoa física ou jurídica que não seja contribuinte do imposto."

Considerando que a súmula em questão foi editada quase dois anos depois da EC n.º 33/2001, a primeira impressão foi a de que o STF estaria confirmando a interpretação jurisprudencial criada naquela Corte sobre a não incidência do ICMS na importação de bens por pessoa física ou jurídica não contribuinte do imposto, ou seja, que a nova redação do artigo 155, § 2.º, IX, "a", da Carta Magna não influenciaria o assunto [4].

Ocorre que os julgamentos mais recentes proferidos pelo STF sobre a matéria em exame têm limitado a aplicação do entendimento jurisprudencial sedimentado aos fatos geradores ocorridos antes da EC n.º 33/2001. É que se observa na ementa do acórdão e na decisão monocrática transcritas abaixo, colhidas por amostragem, "ad litteram":

"CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. ICMS. IMPORTADOR NÃO CONTRIBUINTE DO ICMS. C. F., art. 155, § 2.º, IX, a, redação anterior à EC 33/2001: IMPOSSIBILIDADE DA COBRANÇA DO TRIBUTO. Precedentes do STF: RE 185.789/SP, M. Corrêa, Plenário, 3.3.2000; RE 346.856/RJ, M. Alves, "D.J." de 31.10.2002; RE 199.554-AgR/SP, Néri da Silveira, "D.J." de 4.8.2000. Agravo não provido." (AGRAG 342.050-3/SP, Rel. Min. Carlos Velloso, j. 9/9/2003, DJU 10/10/2003).

"Antes da edição da EC n.º 33/2001, o Plenário deste Supremo Tribunal Federal consolidou o entendimento no sentido de que não incide ICMS sobre a importação de mercadorias por pessoa jurídica não contribuinte do tributo. Eis a ementa do leading case: "RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. IMPORTAÇÃO DE BEM POR SOCIEDADE CIVIL PARA PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS MÉDICOS. EXIGÊNCIA DE PAGAMENTO DO ICMS POR OCASIÃO DO DESEMBARAÇO ADUANEIRO. IMPOSSIBILIDADE. 1. A incidência do ICMS na importação de mercadoria tem como fato gerador operação de natureza mercantil ou assemelhada, sendo inexigível o imposto quando se tratar de bem importado por pessoa física. 2. Princípio da não-cumulatividade do ICMS. Importação de aparelho de mamografia por sociedade civil, não contribuinte do tributo. Impossibilidade de se compensar o que devido em cada operação com o montante cobrado nas anteriores pelo mesmo ou outro Estado ou pelo Distrito Federal. Inexistência de circulação de mercadoria. Não ocorrência da hipótese de incidência de ICMS. Recurso Extraordinário não conhecido" (RE n.º 185.789, Red. p/ acórdão, Min. Maurício Corrêa, por maioria, DJ de 19/05/2000). Nego seguimento ao agravo. Publique-se." (AI 469.502-5/RS, Rel. Min. Ellen Gracie, j. 8/10/2003, DJU 3/11/2003).

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O cenário atual parece indicar que o STF está aguardando que o tema seja suscitado em relação a um fato gerador ocorrido após a EC n.º 33/2001, a fim de que o plenário do STF tenha a oportunidade de rediscutir a matéria e definir se a atual redação do artigo 155, § 2.º, IX, "a", da Lei Maior permite a manutenção da Súmula n.º 660.

É isso que se denota do que ocorreu na sessão de julgamento do plenário do STF realizada em 26/11/2003. Naquela ocasião, o Ministro Sepúlveda Pertence sugeriu, e o Tribunal acolheu, a alteração da Súmula n.º 660, tendo sido aprovado que passaria a vigorar, "à primeira vista", nos seguintes termos: "Até a vigência da EC 33/2001, não incide ICMS na importação de bens por pessoa física ou jurídica que não seja contribuinte do imposto." Contudo, a alteração só passa a integrar a Súmula da jurisprudência predominante do STF após ser publicada por três vezes consecutivas no Diário da Justiça, na forma prevista no artigo 102, § 3.º do Regimento Interno da Corte, o que ainda não ocorreu [5], permanecendo em vigor a redação originalmente divulgada.

Portanto, a questão que se coloca é se a Súmula n.º 660 do STF realmente precisa de uma ressalva temporal em relação à EC n.º 33/2001 e se a nova redação do artigo 155, § 2.º, IX, "a", da Carta Política tem o condão de modificar a interpretação jurisprudencial sobre a não incidência do ICMS na importação por não contribuintes.


A não incidência do ICMS mesmo após a EC n.º 33/2001

Data venia daqueles que entendem o contrário, não parece que a nova redação do artigo 155, § 2.º, IX, "a", da Carta Constitucional tenha a faculdade de reverter o entendimento jurisprudencial que gerou a edição da Súmula n.º 660, afinal, os fundamentos básicos que nortearam a jurisprudência do STF a favor das pessoas físicas e jurídicas importadoras e não contribuintes do ICMS, permanecem intactos.

É verdade que o novo texto constitucional fala agora em "bem ou mercadoria" (antes era apenas mercadoria), em "domicílio ou estabelecimento" (antes era só estabelecimento), em "qualquer finalidade" para o item importado (antes se falava em destinação ao consumo ou ao ativo fixo do estabelecimento) e expressamente inclui as "pessoas físicas ou jurídicas não contribuintes" como potenciais contribuintes.

Todavia, nada disso modifica que se está diante do imposto conhecido como ICMS e previsto estruturalmente no artigo 155, inciso II, da Constituição Federal [6]. Ou como ensinaria o professor e mestre José Eduardo Soares de Melo, "os diversos elementos integrantes da regra-matriz de incidência do ICMS, devem ser analisados e aplicados de modo coerente, e harmônico, para poder se encontrar a essência tributária; em especial a materialidade de sua hipótese de incidência" [7].

Não se desconhece o entendimento de parte da doutrina, entre eles Vittorio Cassone [8], no sentido de que o inciso IX, letra "a", contém elementos materiais diferentes do das hipóteses de incidências do inciso II, ambos do artigo 155 da Constituição Federal de 1988. Alega esta parte da doutrina, e se reconhece a razoabilidade de seu raciocínio, que enquanto o inciso II representa a regra mestra do ICMS, o inciso IX, alínea "a" é exceção. E argumenta ainda que em casos desse naipe, em que se verifica suposta antinomia, a regra de interpretação deve ser a seguinte: "duas normas incompatíveis do mesmo nível e contemporâneas são ambas válidas" [9].

Porém, com o devido respeito a esta parte da doutrina, não se pode olvidar do fato de que o ICMS, em qualquer das hipóteses de incidência, seja ela originária da regra matriz (artigo 155, II), seja da regra tida como exceção (artigo 155, § 2.º, IX, "a"), conserva ínsito a existência de "operações relativas à circulação de mercadorias", além de continuar exigindo a aplicação do princípio da não-cumulatividade. Ocorre que estes pressupostos não se verificam nas importações promovidas por pessoas físicas ou jurídicas que não sejam contribuintes do imposto, de modo que, mesmo sob a égide da EC n.º 33/2001, parecem continuar válidas as premissas que levaram a Corte Suprema a editar a Súmula n.º 660, que neste sentir, deveria ser aplicada sem qualquer alteração.

Para se chegar ao entendimento esboçado acima, é de especial interesse analisar a expressão "operações relativas à circulação de mercadorias". Mesmo tendo início no exterior, como sói ocorrer nas importações, o ICMS só é devido se tais operações tiverem o fim capaz de gerar a incidência do tributo, frise-se, "a circulação de mercadorias". Sem a realização deste evento básico, não há imposto.

Paulo de Barros Carvalho preceitua com acerto que "operações", no contexto, "exprime o sentido de atos ou negócios hábeis para provocar a circulação de mercadorias. Adquire, neste momento, a acepção de toda e qualquer atividade, regulada pelo Direito, e que tenha a virtude de realizar aquele evento" [10].

Em complementação, tratando da "circulação", pontifica lapidarmente Carvalho de Mendonça: "as mercadorias passando por diversos intermediários no seu percurso entre os produtores e os consumidores, constituem objeto de variados e sucessivos contratos. Na cadeia dessas transações dá-se uma série continuada de transferência da propriedade ou posse das mercadorias. Eis o que se diz circulação de mercadorias" [11].

E com a maestria que lhe é peculiar, o festejado tributarista Hugo de Brito Machado resume a compreensão que se deve ter da locução "operações relativas à circulação de mercadorias", ao lecionar que se trata de "quaisquer atos ou negócios, independentemente da natureza jurídica específica de cada um deles, que implicam circulação de mercadorias, vale dizer, que implicam mudança da propriedade das mercadorias, dentro da circulação econômica que as leva da fonte até o consumidor" [12].

Assim, quando se analisa a situação do importador pessoa física ou jurídica que age sem o intuito mercantil, nota-se nitidamente a ausência de "operação" na sua concepção jurídica, e por conseqüência, fica prejudicada qualquer alegada ocorrência de "circulação", ainda que se fale em bens desnaturados de sua significação mercantil.

Mas não é só isso. Há também a questão da não-cumulatividade do ICMS que não se coaduna com as importações realizadas por pessoas físicas ou jurídicas que não são contribuintes habituais do imposto, mesmo que se tente elastecer o campo de incidência do tributo e ainda que se adote o entendimento de parte da doutrina – já refutado acima – que aceita o artigo 155, § 2.º, IX, "a", da Carta Magna, como exceção à regra matriz do inciso II do mesmo artigo, não se sujeitando aos seus pressupostos.

O princípio da não-cumulatividade do ICMS encontra o seguinte disciplinamento na Constituição Federal de 1998, que, aliás, não sofreu alteração com a EC n.º 33/2001:

"Art. 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre:

(...)

II – operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior.

§ 2.º O imposto previsto no inciso II atenderá ao seguinte:

I – será não-cumulativo, compensando-se o que for devido em cada operação relativa à circulação de mercadorias ou prestação de serviços com o montante cobrado nas anteriores pelo mesmo ou outro Estado ou pelo Distrito Federal."

Antes de qualquer coisa, é imperioso esclarecer o significado da expressão "não-cumulatividade do tributo" adotada pelo texto constitucional. Para isso, traz-se à baila os ensinamentos sempre oportunos do professor Hugo de Brito Machado, que apresenta o conceito adiante, aceito nos meios doutrinários: "Entende-se por não-cumulatividade a qualidade do imposto, o princípio segundo o qual em cada operação o contribuinte deduz do valor do imposto correspondente à saída dos produtos o valor que incidiu na operação anterior, de sorte que reste tributado somente o valor acrescido. Em outras palavras, do valor do imposto que incide na saída dos produtos deduz-se o valor do imposto que incidiu nas operações anteriores sobre os respectivos insumos" [13].

Analisar o regime jurídico da não-cumulatividade do ICMS é tarefa complexa e demanda a abordagem de muitas questões secundárias que não contribuem diretamente para a compreensão do tema abordado neste arrazoado. Contudo, naquilo que interessa, convém ressaltar que ao adotar o referido princípio, a Constituição Federal outorgou ao legislador complementar a tarefa de disciplinar o regime de compensação do imposto [14].

O legislador complementar, porém, limitou-se a reproduzir o texto constitucional em sua literalidade [15], ressalvada a omissão do Distrito Federal no final do dispositivo, o que, porém, não afeta o princípio constitucional, vez que o imposto cobrado pelo Distrito Federal pode sim ser compensado em operações seguintes nos Estados.

Portanto, tal qual exposto na Constituição Federal de 1988 e ratificado na legislação complementar, explica com clareza Hugo de Brito Machado que o princípio da não-cumulatividade do ICMS, a rigor, de regime misto, efetiva-se "no momento da apuração do valor do imposto a ser pago. As entradas de mercadorias e os recebimentos de serviços tributados, de um lado, a ensejar ‘crédito’. De outro as saídas de mercadorias e as prestações de serviços tributadas a ensejar ‘débito’. Toma-se então o total dos débitos, e dos créditos, em determinado período, subtraindo-se um do outro. O saldo devedor é o valor do imposto a ser pago naquele período. Havendo saldo credor, será este transferido para o período seguinte. Opera-se a ‘compensação’ entre os créditos e os débitos, recolhendo-se o saldo devedor, quando for o caso, ou transferindo-se para o período seguinte o saldo credor que porventura existir" [16].

E arremata o ilustre professor e magistrado na mesma publicação e artigo:

"Não há, todavia, impropriedade no uso das palavras ‘crédito’, ‘débito’, nem ‘compensação’, nesse contexto. Apenas não estão empregadas em certo sentido com o qual geralmente aparecem na linguagem jurídica, mas no sentido com o qual são geralmente usadas em contabilidade. Poder-se-ia dizer que o valor do imposto a ser pago será ‘o resultante positivo da soma algébrica do montante do imposto relativo às saídas, positivo, com o montante do imposto relativo às entradas, negativo, sendo o resultante negativo transportado para o período de apuração seguinte’". Página 167; sublinhados acrescentados.

A partir das proposições até aqui apresentadas, não é necessário um exercício mental muito elaborado para se concluir pela impossibilidade da aplicação do princípio da não-cumulatividade do ICMS em relação ao importador pessoa física ou jurídica que não se configura contribuinte habitual do imposto, uma vez que este não reúne os requisitos necessários para apurar o "crédito", o "débito" e efetivar a "compensação".

É como registrou apropriadamente o Ministro Maurício Corrêa no seu voto condutor do acórdão proferido no RE n.º 203.075-9/DF, Pleno do STF, já referenciado nestas breves linhas: "Observo, ainda, a impossibilidade de se exigir o pagamento do ICMS na importação de bem por pessoa física, dado que, não havendo circulação de mercadoria, não há como se lhe aplicar o princípio constitucional da não-cumulatividade do imposto, pois somente ao comerciante é assegurada a compensação do que for devido em cada operação com o montante cobrado nas anteriores pelo mesmo ou outro Estado ou pelo Distrito Federal" (os negritos são do original).

Deste modo, simplesmente desconsiderar o princípio da não-cumulatividade do ICMS, apenas para poder cobrar o imposto de pessoas físicas ou jurídicas que importam bens para uso próprio, sem ter a finalidade de circular tais bens, seria uma violação flagrante das normas constitucionais, que neste caso especial, tem caráter impositivo.

O doutrinador José Eduardo Soares de Melo [17], parafraseando Ataliba e Cleber Giardino [18], resume bem como deve ser considerado o princípio da não-cumulatividade do ICMS ao dizer: "A cláusula da ‘não-cumulatividade’ não consubstancia mera norma programática, nem traduz recomendação, sequer apresenta cunho didático ou ilustrativo, caracterizando, na realidade ‘diretriz constitucional imperativa’. Trata-se de uma autêntica obrigação a ser cumprida tanto pelo poder público, como pelo contribuinte".

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Sobre o autor
Welton Charles Brito Macêdo

advogado em Cesário Lange (SP)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MACÊDO, Welton Charles Brito. O ICMS na importação de bens por pessoa física ou jurídica não contribuinte do imposto.: Análise das alterações trazidas pela EC nº 33/2001 e a Súmula do STF. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 321, 24 mai. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5248. Acesso em: 23 nov. 2024.

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