Usucapião coletiva urbana e função social da propriedade

01/10/2016 às 09:58
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Neste artigo é proposta uma reflexão crítica acerca do instituto Usucapião Coletivo Urbano (artigo 10º, do Estatuto da cidade, lei nº 10.257/20010, em face à Função Social da propriedade e o Direito de Moradia.

O homem, primeiramente, era nômade, não tendo se instalado em um local fixo e até então não via essa necessidade. No decorrer da sua evolução e em decorrência da agricultura, foi que surgiram as aldeias comunitárias. Há seis mil anos, originadas das vilas dispersas dos povoados neolíticos, surgiram as primeiras civilizações, sendo no baixo do vale do Rio Tigre e Eufrates, no vale do Indus e no rio Huang. Assim, consta-se a evolução do meio social do homem para se fixar em um determinado local, considerando, assim, um início da propriedade privada.

Adiante na história chegamos à Grécia e Roma, na qual estas reconheceram a propriedade privada, no dizer de Fustel de Coulagens “há três coisas que, desde as mais remotas eras, se encontram fundadas e estabelecidas solidamente pelas sociedades grega e romana; a religião doméstica, a família e o direito de propriedade; três coisas que apresentaram entre si manifesta relação e que parece terem mesmo sido inseparáveis”.[1]

Na Grécia, a análise sobre a propriedade reside no fato do caráter familiar dos objetos, sendo que tudo o que se possuía pertencia à família e da grande carga religiosa pela adoração do deus-lar.

Em Roma, observa-se o mesmo caráter familiar da propriedade, mas com destaque para o momento da ascensão do império, que em face desse momento a propriedade privada se desenvolveu. A propriedade romana estava vinculada à religião, sendo o costume da época enterrar os mortos no campo de cada família, na qual as almas eram tutoras do direito de propriedade e a sepultura estabelecia o vínculo da família com a sua terra.

No feudalismo, com a queda do império romano, ocorreu a divisão das terras e, assim, existia o Senhor Feudal, o dominum directum e o vassalo, o dominium utile. Nesse momento histórico a riqueza essencial era a terra, a qual estava em poder de poucos. Os que usavam a terra para o cultivo pagavam tributos, prestavam serviços e precisavam do auxílio do senhor feudal. Diante dessa realidade social, observa-se o caráter político da terra, uma vez que não existia senhor sem terra, nem terra sem senhor.

O principal marco para a propriedade veio com a Revolução Francesa, na qual elevou ao patamar de direito fundamental, sendo positivada na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, nos Arts. 2º e 17:

“Art. 2º: o fim de toda associação política é a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem. Esses direitos são a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão.”

“Art. 17.: Como a propriedade é um direito inviolável e sagrado, ninguém dela pode ser privado, a não ser quando a necessidade pública legalmente comprovada o exigir evidentemente e sob condições de justa e prévia indenização. ”  

Assim, considerado um direito fundamental de primeira dimensão junto com o direito à liberdade, cidadania, dignidade da pessoa humana, entre outros.

Partimos agora para um panorama da propriedade no Brasil, conforme todas as Constituições, com início na Imperial de 1824 até a Republicana de 1988.

O período vigente no Brasil nesta época trata-se do começo do império monarca exercido por D. Pedro I, que teve um início fático com o famoso grito do Ipiranga, ocorrido às margens do rio Ipiranga, no dia 07 de setembro de 1822, sendo reconhecido oficialmente por Portugal em 29 de agosto de 1825.  

Nesse contexto, a Constituição do Império, que recebeu influência da constituição Francesa e Portuguesa, reconheceu o caráter absoluto da propriedade, porém não havia qualquer dispositivo no tocante à Função Social da Propriedade.

Com a Constituição Republicana de 1891, na qual instituiu o presidencialismo e o federalismo, com nítida influência do pensamento americano, no tocante à concepção liberal no campo político, econômico e social estampado na Constituição Americana de 1787. O direito de propriedade foi mantido de forma absoluta, seguindo os preceitos da constituição anterior, porém aprofundou o caráter individual da propriedade, no momento em que criou um maior distanciamento do Estado na relação do domínio, estabelecendo que a desapropriação não estaria estribada na exigência de bem público, mas no caso de necessidade ou utilidade pública.

Após a primeira Constituição Republicana, tivemos a Constituição de 1934, na qual sofreu influências da Constituição de Weimar de 1919 e da Constituição Espanhola de 1931, instituindo a democracia social.

Com está Constituição podemos observar a substituição da concepção individualista da propriedade por uma concepção social, com destaque para o Art.  113, inciso XVII:

“Art. 113”. A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no país a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, a subsistência, a segurança individual e a propriedade, nos seguintes termos:

XVII. É garantido o direito de propriedade que não poderá ser exercido contra interesse social ou coletivo, na forma que a lei determinar. A desapropriação por necessidade ou utilidade pública far-se-á nos termos da lei, mediante prévia e justa indenização. Em caso de perigo iminente, como guerra ou comoção intestina, poderão as autoridades competentes usar da propriedade particular até onde o bem público o exija, ressalvado o direito de indenização ulterior. ”

Outro tópico inserido que merece destaque é a possibilidade de uso da propriedade particular em caso de guerra ou comoção intestina, a critério de exigência do bem público, ressalvado o direito à indenização.

A constituição de 1937, sendo outorgada e tendo como paradigma as constituições ditatoriais, foi tímida na explicitação do instituto, não demonstrando com a mesma clareza da Constituição anterior, mas manteve a mesma estrutura, assim, o direito de propriedade foi afirmado, tão-somente, no Capítulo Direitos e Garantias Individuais.

A Constituição promulgada em setembro de 1946 era republicana, federativa, democrática e fora fruto de uma Assembleia Nacional Constituinte, nesse cenário podemos afirmar que o caminho da democracia foi retomado. No tocante à propriedade não houve uma equiparação a direito fundamental, mas é de se observar um início no que tange à função social da propriedade conforme previsto no Art. 146, §16.

Cabe ainda, apontar a inclusão de uma nova forma de desapropriação por interesse social, conforme prelecionava o Art.  147, da presente Carta Magna, e, ainda, no tocante a propriedade rural, foi sob a égide desta que entrou em vigor a Lei nº 4.504, de 30 de novembro de 1964, o Estatuto da Terra, com contornos específicos da Função Social da Propriedade Rural.

No período considerado como obscuro da história Brasileira, a ditadura militar (1964 – 1985), tivemos a Constituição de 1967 e, para a maioria da doutrina, a Constituição de 1969.

Com essas duas cartas, no que concerne a propriedade, seguindo a ordem cronológica foram mantidos os mesmos termos da Constituição de 1946, mantendo dois interesses básicos: o interesse individual e o interesse social, porém esta elevou a propriedade à condição de princípio, conforme dispõe os artigos 150 a 157, demonstrando, assim, o interesse social desta.

Com a Constituição de 1969, que para alguns é considerada como uma emenda à Constituição de 1967, não houve maiores alterações permanecendo o texto anterior, a alteração existente a ser comentada foi no tocante à desapropriação.

Por fim, com a Constituição de 1988 a propriedade foi elevada à categoria de direito fundamental ao lado da vida, liberdade e igualdade, com previsão constitucional no Art. 5º, dos Direitos e Garantias Individuais e Art. 170º, da Ordem Econômica e Financeira. Nesse cenário constitucional e social foi observada a necessidade do atendimento da função social da propriedade.

O DIREITO URBANÍSTICO NO BRASIL

No que concerne ao Direito Urbanístico, a Constituição Federal trouxe o Direito de Propriedade e a Função Social da Propriedade no rol dos Direitos e Garantias Fundamentais previstos no Art. 5. Adiante no texto Constitucional, temos a competência administrativa da União, para instituir diretrizes para o desenvolvimento urbano, conforme Art. 21, inciso XX e, no tocante à competência legislativa ocorre previsão a competência concorrente da União, dos Estados, do Distrito Federal e Territórios para legislar sobre direito Urbanístico, nos termos do Art. 24, inciso I, bem como a competência suplementar dos Municípios para legislar sobre assuntos de interesse local, conforme Art. 30, inciso I e II.

Por fim, no Título VII – Da Ordem Econômica e Financeira, no seu Capítulo – I Dos Princípios Gerais da Atividade Econômica, no Art. 170, inciso III, fora previsto novamente o princípio da Função Social da Propriedade e ainda, no seu Capítulo II – Da Política Urbana, na qual seus dois artigos 182 e 183 regulam a política de desenvolvimento urbano, com destaque para o previsto no Art. 182, §1º, no qual prevê o plano diretor como instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana.

 Em sede do ordenamento infraconstitucional temos a Lei nº 6.766, de 19 de dezembro de 1979, na qual dispõe sobre o parcelamento do solo urbano, ainda em vigor com modificações introduzidas pela Lei 9.785, de 21 de janeiro de 1999 e  Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001, denominado Estatuto da Cidade, na qual regulamentou os artigos previstos na Constituição, anteriormente elencados, bem como estipulou outras hipóteses de necessidade da elaboração do plano diretor e instituiu instrumentos de política urbana a serem utilizadas pelos Municípios na execução da política urbana e cumprimento da Função Social da Propriedade.   

USUCAPIÃO COLETIVA COMO FORMA DE FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE.

Nesse novo cenário trazido pela Constituição Federal de 1988, é de se observar um novo panorama político e social, no qual ocorreu o retorno da democracia e instituiu o Estado Democrático de Direito.

Diante desse novo panorama, dos preceitos fundamentais positivados e a necessidade latente da organização das cidades, com o Capítulo da Politica Urbana e como forma de regulamentar, na seara infraconstitucional esse capítulo, tivemos a edição do Estatuto da Cidade e com ele os consequentes instrumentos para cumprir o papel social das cidades .

Como objetivo do presente trabalho a análise do art. 10, do Estatuto da Cidade, na qual disciplina o instituto “Usucapião Coletiva”, seguindo a redação deste:

Art. 10. As áreas urbanas com mais de duzentos e cinquenta metros quadrados, ocupadas por população de baixa renda para sua moradia, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, onde não for possível identificar os terrenos ocupados por cada possuidor, são susceptíveis de serem usucapidas coletivamente, desde que os possuidores não sejam proprietários de outro imóvel urbano ou rural.

§ 1o O possuidor pode, para o fim de contar o prazo exigido por este artigo, acrescentar sua posse à de seu antecessor, contanto que ambas sejam contínuas.

§ 2o A usucapião especial coletiva de imóvel urbano será declarada pelo juiz, mediante sentença, a qual servirá de título para registro no cartório de registro de imóveis.

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§ 3o Na sentença, o juiz atribuirá igual fração ideal de terreno a cada possuidor, independentemente da dimensão do terreno que cada um ocupe, salvo hipótese de acordo escrito entre os condôminos, estabelecendo frações ideais diferenciadas.

§ 4o O condomínio especial constituído é indivisível, não sendo passível de extinção, salvo deliberação favorável tomada por, no mínimo, dois terços dos condôminos, no caso de execução de urbanização posterior à constituição do condomínio.

§ 5o As deliberações relativas à administração do condomínio especial serão tomadas por maioria de votos dos condôminos presentes, obrigando também os demais, discordantes ou ausentes.

Diante da redação acima, analisamos o objetivo do legislador em inserir o referido instituto no ordenamento jurídico, conceder uma regularidade jurídica para moradias irregulares e áreas de habitação precárias(favelas).

Em um primeiro momento, diante do momento histórico da elaboração/edição do Estatuto, podemos considerar que legislador teve uma boa intenção na criação desse instituto, porém em uma análise no momento atual podemos ver que este cometeu um grande equívoco, pois uma vez consolidada as habitações em questão e pelo grande número de famílias presentes, se faz muito complexo e dificultoso a retirada/realocação dos moradores, tendo assim o legislador cometido um grande equívoco quanto a essa redação em questão.  

Vejamos, a redação em questão determina que as áreas urbanas com mais de duzentos e cinquenta metros quadrados, ocupadas por população de baixa renda para sua moradia, por cinco anos, sem a possibilidade de identificação dos terrenos ocupados, são susceptíveis de serem usucapidas coletivamente.

Observamos com essa redação que o legislador, quando elencou os requisitos para aquisição da propriedade, não determinou em conjunto a necessidade da implantação de nenhuma política pública ou de alguns ou todos os equipamentos urbanos (saneamento básico, transporte público, energia elétrica, infraestrutura, água encanada, entre outros) para caracterizar Usucapião, aquisição da propriedade. Assim, se observa uma violação a política urbana determinada no Art. 2º, do Estatuto, senão vejamos o dispositivo em questão: 

Art. 2o A política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana, mediante as seguintes diretrizes gerais:

I – garantia do direito a cidades sustentáveis, entendido como o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infra-estrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações;

IV – planejamento do desenvolvimento das cidades, da distribuição espacial da população e das atividades econômicas do Município e do território sob sua área de influência, de modo a evitar e corrigir as distorções do crescimento urbano e seus efeitos negativos sobre o meio ambiente;

V – oferta de equipamentos urbanos e comunitários, transporte e serviços públicos adequados aos interesses e necessidades da população e às características locais;

Diante dos dispositivos da política urbana apresentados e outros mais trazidos, é de se afirmar que Usucapião Coletivo, no qual elencado no Art. 10, trata-se de uma afronta à ordem urbanística implementada.

No momento que ocorre a aquisição da propriedade (através do Usucapião Coletivo) sem a observância dos instrumentos da política urbana é de se observar que esse local habitado não cumprirá com o seu papel social, pois apesar de haver moradia, muitas vezes ocorre a ausência de equipamentos básicos, como pavimentação asfáltica, transporte público, saneamento básico, energia elétrica, infraestrutua,  além de outros que disponibilizados de maneira conjunta proporcionariam o bem estar de todos, principalmente dos habitantes daquele local e, de uma maneira indireta, de toda a sociedade, podendo assim, o direito a cidade ser conseiderado um bem difuso.

Ainda, o principal efeito ocasionado com a ausência desses serviços públicos ou prestados de maneira ineficiente é sem dúvidas a exclusão social, onde os moradores dessas localidades passam por todo tipo de situação alarmante no tocante à violação de direitos fundamentais e sem nenhum amparo do poder público.  

VIOLAÇÕES AMBIENTAIS

Não bastasse a ausência de instrumentos públicos básicos, questões de cunho ambiental também são violadas, não respeitando áreas de preservação permanente (APP) e áreas de mananciais.

Ocorre ainda, no tocante à correta utilização do solo, não é  elaborado Estudo Prévio de Impacto de Vizinhança (EIA) e Relatório Interno de Impacto Ambiental (RIMA), instrumentos esses de extrema importância  responsáveis pelos estudos referentes aos impactos ambientais ocasionados em virtude de obras.

Assim, podendo ocasionar danos irreparáveis ao meio ambiente natural do local e consequentemente para todo o ecossistema. Ainda, colocando em risco a saúde e a vida das famílias, como, por exemplo, os deslizamentos que ocorreram no Estado do Rio de Janeiro, nas quais foram atingindas várias cidades, no ano de 2011 e mais recentemente na cidade de Salvador, no Estado da Bahia.

DA CONSTITUCIONALIDADE DO ART. 10, DO ESTATUTO DA CIDADE (USUCAPIÃO COLETIVO).  

Diante dessa realidade apresentada,  se faz necessária uma discussão em torno da Constitucionalidade do artigo em questão, pois diante dos argumentos apresentados e diante do Estado Democrático de Direito Brasileiro, no qual possui como objetivos, o rol do art. 3º da Carta da República, na qual consiste na construção de uma sociedade livre, justa e solidária, na erradicação da pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais, garantir o desenvolvimento nacional e promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade, e quaisquer outras formas de discriminação.

Não bastasse o art. 3º acima apresentado, temos ainda o principal fundamento do Estado Brasileiro, no qual é primórdio de todas as relações e instituições: A dignidade da pessoa humana, art. 1º, inciso III, da Constituição Federal de 1988.

Vejamos uma posição finalista da questão. Usucapião Coletivo tem como objetivo a concessão de moradia, consequentemente a concretização da Função Social da Propriedade, por outro lado, a concessão dessa moradia não vai ocasionar uma melhora na qualidade de vida ou respeito à condição de pessoa humana, pelo contrário, com a concessão dessas moradias irregulares, além de ocasionar violações generalizadas de direitos humanos, ocorrerá também discriminações de forma generalizada, incluindo discriminações raciais e sociais, ocasionando aos moradores/habitantes desses locais a sua exclusão para com o resto da sociedade.

Sendo assim, diante das questões apresentadas e violações ocasionadas é de se afirmar que o presente dispositivo legal está pautato pelo vício da inconstitucionalidade de cunho material, violando completamente a Constituição Federal de 1988.

PRECEDENTES IMPORTANTES REFERENTE AO DIREITO DE PROPRIEDADE.

Por fim, interessante ainda trazer alguns casos, nos quais possuem como conteúdo conflitos possessórios, o direito fundamental de propriedade, moradias irregulares habitadas por famílias de baixa renda e fazer uma análise crítica dos casos em questão.

O primeiro caso a ser levantado é o da reintegração de posse de uma área privada, que ocorreu no município de São José dos Campos, no bairro denominado de Pinheirinho, no qual teve grande repercussão nacional e internacional acerca da atuação da Polícia Militar, do Poder Executivo Federal, Estadual, Municipal e do Judiciário, tanto Federal como Estadual e violações de direitos humanos e abuso de autoridade por parte da atuação da polícia. No presente trabalho não cabe analisarmos essas questões, pois entraríamos em outra discussão, analisaremos aqui uma solução condizente com os ditames de moradia para o problema em questão.

A ocupação do loteamento chamado pinheirinho teve início no ano de 2004, por aproximadamente 300 famílias, em uma área de 1,3 milhão de metros quadrados pertencente à massa falida de determinada empresa. Por fim, no local já contavam com estabelecimentos comerciais, religiosos, associação de moradores, espaços de lazer e uma grande praça chamada zumbi dos palmares. 

No caso da presente ocupação o destaque fica em torno da área, na qual apesar de pertencer a uma empresa, esta se encontrava em processo falimentar e não havia nenhum plano para utilização, pois depois da reintegração esta continuou abandonada, ou seja, ocorreu a integração e a área continuou abandonada, e o pior que ficou cheia de entulho, consequência da ação de integração.

O ponto principal é a ausência do poder público em sanar o problema, no qual seria o déficit de moradia digna, em pequenos casos o poder público tentou alguma solução pacífica e eficaz para o problema, cita-se a tentativa do governo do estado de São Paulo em conceder auxílio aluguel aos moradores, mas os valores dos imóveis na cidade eram maiores do que o auxílio fornecido.

Poderia este, em face dos inúmeros dispositos legais, como a desapropriação, ter realizado um levantamento técnico sobre a situação de moradia na cidade e, assim, desapropriado a respectiva área e realizado um plano de urbanização, com a construção de um novo bairro, completo, com infra instrutura, saneamento básico, transporte público e demais equipamentos urbanos que promovem o bem estar social e melhoram a qualidade de vida dos moradores.

A área em questão estava abandonada, não era utilizada para nenhum fim até a ocupação, sendo essa situação revertida de uma área em situação de abandono, sem nenhuma perspectiva para utilização, para uma área efetivamente utilizada.

Pois bem, digamos que a ocupação ocorre-se antes¸ que não fosse possível realizar esse estudo e posteriormente as obras de infraestrutura e demais equipamentos urbanos, a intervenção poderia ocorrer da mesma forma, pórem com alguma cautela em face dos moradores que lá já estariam presentes, pois mesmo os moradores que lá já residiam não possuiam os demais itens básicos que estão incluídos no direito de moradia.

Os efeitos gerados pela reintegração para as famílias são imensuráveis, os depoimentos apresentados foram dos mais váriados tipos, desde agressões, abuso sexual até discriminação pelo fato de ter sido morador. Assim, faremos a seguinte pergunta: para onde essas famílias foram? Ocuparam outra área?

Por fim, como salientado, a reintegração não solucionou o problema, pelo contrário, acabou por piorando. Apesar do estandarte de “estar cumprindo a lei”, outras saídas eram possíveis e poderiam ser consideradas opções muito melhores a que fora tomada, assim, mais uma vez vemos a omissão do poder público para com a população, sendo um total contrasenso aos princípios do Estado Democratico de Direito e à diginidade da pessoa humana.  

O próximo caso a ser discutido não teve tanta repercução midiática quanto ao anterior e também não chegou ao nível de barbárie quanto ao mesmo, mas o interessante deste caso é o desfecho tomado por ele há época dos fatos, uma vez que não estávamos sob a égide da Constituição Federal de 1988 e consequentemente do  Código Civil de 2002 e do Estatuto da Cidade.

Ocorre que o presente caso, no terreno em questão, fora realizado um loteamento e o mesmo foi inscrito junto aos orgãos públicos na data de 1955. Acontece que não foi dado continuidade nas obras. Os relatos indicam que a  a ocupação ocorreu em torno de 1970, no qual no ano de 1973 já existiam 6 barracos.

A ação reinvidicatória foi proposta no ano de 1995, na propositura da demanda os relatos são de que a favela (assim denominada no acordão) já estava consolidada, inclusive dotada de três equipamentos urbanos: água, iluminação pública e luz domiciliar, não possuindo um número específico o de moradores, mas os relatos são de que habitavam o local uma estimativa de centenas ou milhares de pessoas.

O ponto marcante neste caso foi o entendimento do Tribunal de Justiça de São Paulo. Os autores ingressaram com a presente ação e a mesma foi julgada procedente em 1º grau, com o simples fundamento dos autores serem proprietários do terreno.

Em grau de recurso, houve a reforma do entendimento. Os réus, em primeira alegação pugnaram pelo usucapião social urbano, do art. 183 da Constituição Federal de 1988, o que foi afastado em virtude dos fatos terem ocorrido antes da promulgação da carta constitucional, mas o argumento principal foi no tocante ao direito social de moradia e que de forma brilhante fora acolhido.

Merece destaque alguns trechos do brihante acordão: 

Pense-se no que ocorre com a denominada desapropriação indireta. Se o imóvel, rural ou urbano, foi ocupado ilicitamente pela Administração Pública, pode o particular defender-se logo com ações possessórias ou dominiais. Se tarda e ali é construída uma estrada, uma rua, um edifício público, o esbulhado não conseguirá reaver o terreno, o qual, entretanto, continua a ter existência física. Ao particular, só cabe ação indenizatória

Isto acontece porque o objeto do direito transmudou-se. Já não existe mais, jurídica, econômica e socialmente, aquele fragmento de terra do fundo rústico ou urbano. Existe uma outra coisa, ou seja, uma estrada ou uma rua, etc. Razões econômicas e sociais impedem a recuperação física do antigo imóvel.”

Diante do trecho destacado se observa, em determinada circunstância, diante de situações concretas, no caso trazido temos o exemplo do abandono, nesse caso extremo, diga-se de passagem, assim o interesse público prevalece sobre o interesse privado.

E não bastasse essa argumentação, em outro ponto, de extrema importância vejamos:   

No caso dos autos, a retomada física é também inviável. O desalojamento forçado de trinta famílias, cerca de cem pessoas, todas inseridas na comunidade urbana muito maior da extensa favela, já consolidada, implica uma operação cirúrgica de natureza ético-social, sem anestesia, inteiramente incompatível com a vida e a natureza do Direito.”

Em análise do presente trecho, pode-se afirmar que está foi uma decisão extremamente importante no tocante ao respeito aos direitos humanos, pois se observa o respeito com os moradores do local e ainda cabenos trazer a definição feita pelo desembargador referente a operação: “É uma operação socialmente impossível.”

Diante do presente caso, que foi escolhido pelo momento histórico, e diante do conteúdo da descisão, que mesmo da ausência de dispositivos legislativos especificos no tocante à função social da propriedade e a promulgação da Constituição Federal estar quase que recentemente promulgada, se observou o caráter social da terra.

Em um legítimo contra senso do caso descrito anteriormente, na qual a Constituição Federal já havia sido promulgada e ainda, os dispositivos que regulamentam a política urbana e a função social da propriedade já estavam vigentes  no ordenamento jurídico e em uma obscuridade jurídica, nada fora realizado para respeitar esses direitos fundamentais das pessoas que lá rezidiam e no caso descrito, nenhum destes instrumentos estavam em vigor e os direitos

fundamentais dos moradores foram respeitados, sendo assim considerado um triste paradoxo.

Neste último caso temos o mais impactante de todos. Como é de conhecimento, o Brasil foi a sede dos dois maiores eventos esportivos mundiais, a Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas, deste ano, tendo este último a maior concentração de esportes localizada na cidade do Rio de Janeiro e como consequência a necessidade de realização de inúmeras obras, entre elas de infra-estrutura e instalações referentes aos locais de competição.

O que a maioria da população não sabe é o custo a ser gasto para esses eventos, não digo o valor em dinheiro das obras (o que também é preocupante), mas sim, para as famílias que foram afetadas pelas obras referentes a esses eventos esportivos, mais especificamente a olimpíada.

Temos, assim, a Vila Autódromo, um bairro que nasceu com uma comunidade de pescadores nos anos 60, em uma época que a zona oeste do Rio era praticamente deserta, sem os condomínios de luxo e shoppings center de hoje. A partir dos anos 90, com o prefeito César Maia (DEM), a comunidade passou a conviver com a ameaça constante de ser removida devido a sua privilegiada posição geográfica, alvo constante do expansivo setor imobiliário.

Ainda nos anos 90, o Governo do Estado finalmente concedeu aos moradores o uso da área por 99 anos. Anos mais tarde, em 2005, a Câmara de Vereadores aprovou a lei complementar 74/2005, que transformou a comunidade em Área Especial de Interesse Social.

Estima-se que habitavam o local em torno de 583 famílias, nas quais totalizam 2.450 pessoas, números esses até fevereiro de 2014, quando começou os atos de desocupação e remoção.

Não bastasse, a comunidade venceu o prêmio internacional de urbanismo Urban Age Award, do Deutsche Bank e da London School of Economics and Political Science na qual fora realizado em face da obras da olimpíada, com destaque para melhorias em vários setores, incluindo a proteção do meio ambiente, projeto este que acabou por não sair do papel.  

Após várias tentativas, a prefeitura resolveu tentar acordo com os moradores, os quais os projetos foram se adequando às exigências desta, tornando, no fim das contas, o projeto viável, não sendo necessário a desocupação, menos ainda os atos de remoção. Após apresentada a última versão do plano, a prefeitura rompeu as negociações coletivas e começou a fazer negociações individuais com os moradores. Com isso surgiu inúmeras denúncias por parte dos moradores de coação e ameaça por parte dos agentes públicos para com os moradores.

Por fim, os guerreiros da Vila Autódromo foram se cansando e alguns concordaram em sair mediante remuneração ou caso fossem realocados em outro local. Calcula-se que mais de 2/3 das famílias deixaram o local, mesmo algumas que não eram necessárias suas saídas optaram pela realocação ou pela indenização.

No mais, apenas à título de informação, cabe trazer alguns números referentes às descoupações/remoções, no qual estima-se que de 2009 a 2013 foram removidas e indenizadas ou realocadas de suas casas 20.299 famílias, estima-se entre 67.000 pessoas e na metade do segundo mandato do prefeito Eduardo Paes, estima-se que o número de pessoas removidas fica em torno de 70.000, sendo este último considerado o maior índice de remoções de todas as administrações municipais.

Como é de se enfatizar as abordagens anteriores são meras apresentações dos atos acontecidos baseado em artigos, notícias e documentários sobre esses episódios, no qual desde já fica recomendado a visualização, pois no tocante ao primeiro e último caso a situação é extremamente alarmante com o descaso do respeito ao próximo e da dignidade da pessoa humana, onde nitidamente fora preservado o interesse privado, aquém do interesse coletivo, da função social da propriedade, da Constituição Federal e do Estado Democrático de Direito.     

CONCLUSÃO

Para encerrar o presente trabalho, observamos a importância do Capítulo referente à Política Urbana trazida pela Constituição Federal de 1988 e seus instrumentos criados para proporcionar o direito social as cidades. No caso das cidades grandes, onde o crescimento se mostra desenfreado e inúmeros moradores vivendo nas periferias e favelas sem nenhum amparo do poder público, não possuindo também acesso a equipamentos urbanos básicos, fundamentais ao desenvolvimento e o bem estar dos cidadãos.

Porém, como apresentado, temos “Usucapião Coletivo” (art. 10, Estatuto da Cidade) esse não pode ser considerado como uma benesse para o sistema de proteção social da cidade. Em uma alusão a uma das formas de aquisisão da propriedade o legislador através dele simplemente entregaria o domínio às famílias e se veria por solucionado o problema de moradia.  

O ponto de discussão é nítidamente o direito de moradia, pois não é apenas um teto que perfaz esse direito, mas também todo o sistema que envolve a moradia, ou seja, o direito de moradia tem sempre que ser pautado pela adequabilidade, onde além da cobertura, será pautado por residências com material adequado (por exemplo  tijolos), infraestrutura com ruas asfaltadas, com sarjetas instaladas e com a devida acessibilidade aos portadores de deficiência e altura adequada para a segurança dos moradores, saneamento básico, este último uma realidade muito distante de muitos brasileiros, água encanada, transporte público, bem como demais serviços públicos como a coleta de lixo, unidades de saúde e instituições de ensino.

Observamos assim uma nova realidade no tocante ao conceito de moradia e função social da propriedade, onde este não ficaria restrito apenas à concessão de um “teto/cobertura”, mas além deste, todos os demais equipamentos que guarnecem uma moradia adequada, na qual além de promover o bem estar dos moradores, teria como consequência positiva a redução da discriminação social e aumento inclusão social, consolidando assim, o texto da Lex Fundamentalis com especial destaque para a dignidade da pessoa humana, princípio norteador do Estado Democrático de Direito Brasileiro.  

Por fim, conforme levantado anteriormente, o instuto em questão encontra-se em contrario sensu para com todos os outros instrumentos trazidos pelo Estatuto da Cidade, pois os outros pautam por ação integrada entre os poderes e a população e pelo respeito à organização urbana, situação diferente que ocorre com o instuto em questão, no qual um de seus requisitos é a impossibilidade de identificar os terrenos ocupados por cada possuidor, tirando assim, como uma identificação final que o presente instrumento fora editado simplismente para “solucionar” os problemas referente às favelas, concedendo a propriedade dos imóveis para os moradores e pouco importando as condições que estão os imóveis, quais os serviços públicos são fornecidos e a real condição dos moradores.  

Assim, conforme afirmado anteriormente é latente a inconstitucionalidade do instuto em questão, pois as violações ocasionadas por este instuto são alarmantes chegando ao ponto de afirmar que em determinadas favelas ocorre a existência de um Estado paralelo, com leis e regras próprias, no qual em qualquer Estado isso seria inadmissível, principalmente em uma democracia, pautada por um Estado Democrático de Direito.


[1] FUSTEL DE COULAGENS. A cidade antiga, p.50. 

Pires, Lilian Regina Gabriel Moreira. Função social da proprieade urbana e o plano direitor. Belo Horizonte: Fórum, 2007.

Dallari, Adilson de Abreu/Ferraz, Sérgio. Estatuto da Cidade (Comentários a Lei Federal nº 10.257/2001). 4ª Edição. São Paulo: Malheiros, 2014.   

MORAES, Alexandre de. Curso de direito constitucional. 27ª Edição. São Paulo: Atlas, 2011.  

DIMOULIS, Dimitris. Dicionário Brasileiro De Direito Constitucional. 2º Edição. São Paulo: Saraiva, 2012.

MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos Fundamentais E Controle De Constitucionalidade: estudos de direito constitucional. 4ª Edição. São Paulo: Saraiva, 2012.

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