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Direito intertemporal:

o Código Civil de 2002 e as sociedades já existentes

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02/06/2004 às 00:00
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6 – O CÓDIGO CIVIL DE 2002 E AS SOCIEDADES JÁ EXISTENTES

Atualmente no Brasil houve uma profunda alteração na legislação societária, em especial no que envolve as chamadas sociedades limitadas, que passam a ter uma regulamentação mais extensa. Nessa nova regulamentação surgiram muitos aspectos inovadores, como por exemplo, a proibição da sociedade entre cônjuges casados no regime da comunhão universal e da separação obrigatória, a obrigação de se mencionar a atividade nas denominações das limitadas, os quoruns qualificados para alterações contratuais, dentre outros aspectos.

Essas mudanças no regime jurídico das limitadas se aplicam às sociedades que já existiam antes do advento do novo Código Civil? Em caso afirmativo, tal aplicação é imediata ou só se inicia a partir do prazo de adaptação dado pelo Código?

6.1 – ASPECTOS RELATIVOS À CONSTITUIÇÃO DAS SOCIEDADES

A sociedade se forma pela manifestação de vontade de duas ou mais pessoas (art. 981, Novo Código Civil). Tal manifestação é o ato constitutivo das sociedades, imprescindível para sua formação. Em relação às sociedades limitadas, não há maiores controvérsias sobre a natureza jurídica desse ato constitutivo, afirmando nossa doutrina que estamos diante de um contrato plurilateral [47].

Esse contrato plurilateral não é um fim em si, sua função não termina com o cumprimento das obrigações pelas partes, ele é um instrumento para um fim maior. Apesar dessa função instrumental, é certo que uma vez concluído o contrato de constituição de uma sociedade representa um ato jurídico perfeito, na medida em que reúne os elementos essenciais para produzir efeitos sob a égide de determinada lei.

Consumado o ato sob a égide de determinada lei, ele é um ato jurídico perfeito protegido constitucionalmente de qualquer ingerência de leis novas. Aspectos atinentes à constituição da sociedade estão salvos da incidência da nova lei, diante do disposto no artigo 5º, XXXVI da Constituição Federal, isto é, as condições relativas à constituição da sociedade devem se submeter a lei vigente na época da constituição da sociedade.

Essa interpretação é expressamente defendida por Gabba que afirma que "as formas exteriores do contrato de sociedade, que definem a validade do mesmo, devem ser disciplinadas pela lei, sob cujo império o contrato é concluído" [48].

Diferente não é a lição de Carlos Maximiliano que afirma que "As sociedades regem-se conforme os preceitos imperantes quando foram constituídas, inclusive a que pelo Direito atual não teria personalidade jurídica" [49].

Analisando os contratos como um todo, Serpa Lopes defende a mesma linha de interpretação ao afirmar que "Na formação dos contratos, como já se disse, prevalece a lei do dia da sua formação" [50].

Acreditamos que essa interpretação é a única que pode ser adotada, especialmente tendo em vista que se trata de uma regra constitucional a proteção ao ato jurídico perfeito. Além disso, o artigo 2.035 do Código Civil de 2002 afirma que a validade dos negócios jurídicos se rege pela lei da época da sua conclusão, o que significa que a validade de uma sociedade deve ser analisada sob a ótica da lei em vigor na época da sua constituição.

6.1.1 – SOCIEDADE ENTRE CÔNJUGES

Com o advento do Código Civil de 2002 (art. 977), proíbe-se a sociedade entre cônjuges casados pelo regime da comunhão universal e pela separação obrigatória de bens, protegendo-se o próprio regime de casamento. No regime da comunhão universal nem sempre haveria uma real e efetiva conjugação de patrimônios, ou seja, nem sempre haveria de fato dois sócios. No regime da separação, haveria a união do que deveria estar separado.

A intenção da proibição da sociedade entre cônjuges casados por tais regimes é, pois, evitar a mudança do regime matrimonial. Entretanto, acreditamos que tal solução não se justifica. Há bens, que mesmo no regime da comunhão universal, não se comunicam (art. 1.668), e nem sempre é necessária a participação efetiva de todos os sócios na vida da sociedade. Além disso, para os casados no regime da separação obrigatória não se proíbe a aquisição de um bem em condomínio [51], então por que proibir a associação entre os dois?

De qualquer modo, a proibição existe atualmente. Todavia, surge a dúvida em relação às sociedades que já existiam.

A nosso ver, essa nova proibição não pode afetar sociedades constituídas anteriormente, pois essa constituição representa um ato jurídico perfeito, que está a salvo de leis novas, por força do artigo 5º, XXXVI da Constituição Federal.

Desse modo, podemos afirmar que as sociedades entre cônjuges casados pela comunhão universal ou pela separação obrigatória não precisam se dissolver e nem os cônjuges precisam alterar o regime de bens do casamento. Interpretar de outra maneira, seria dizer que se surgisse um impedimento de casamento entre primos, todos os casamentos anteriormente realizados entre primos deveriam ser desfeitos, o que não é razoável.

6.1.2 – DENOMINAÇÃO DAS SOCIEDADES LIMITADAS

Todas as pessoas se identificam por um traço distintivo que é o nome. Em relação às pessoas jurídicas tal nome pode ter regras legais para a sua formação, dando limites para o que pode ser escolhido pelos sócios.

Em relação às sociedades limitadas, pode haver o uso tanto de uma razão social, típica das sociedades de pessoas, quanto de uma denominação, típica das sociedades de capitais, o que reforça a tese da natureza híbrida de tal sociedade.

A firma ou razão social caracteriza-se pela utilização do patronímico dos sócios, pessoas físicas [52], não sendo necessária a indicação de todos, nem do seu nome completo, podendo ser utilizadas expressões como e companhia, e irmãos, etc. Assim, seriam exemplos de razão social: JOÃO DA SILVA E CIA, IRMÃOS SOARES LTDA e J. SANTOS E IRMÃOS. Já a denominação caracteriza-se pela não utilização do nome dos sócios, podendo se usar uma expressão de fantasia, a indicação do local, ou apenas a indicação do objeto social [53], não sendo, a princípio, exigida a indicação da atividade exercida (art. 35, III da Lei 8.934/94)

Para as sociedades limitadas, o Código Civil de 2002 não altera o regime geral da razão social, mas afirma que na denominação deve ser indicada a atividade exercida (art. 1.158, § 2º), similarmente ao que já era determinado pelo artigo 3º do Decreto 3.708/19 [54], mas já não era mais exigido pela Lei 8.934/94. Mais uma vez, indaga-se se as sociedades já existentes precisam alterar a sua denominação?

A nosso ver, a resposta tem que ser negativa, na medida em que a formação do nome empresarial deve reger-se pela lei da época da constituição da sociedade, não se sujeitando a novas regras que eventualmente surjam. Temos aqui a proteção a um ato jurídico perfeito, e a um direito adquirido da sociedade.

6.2 – DELIBERAÇÕES SOCIAIS

No regime do Decreto 3.708/19, foi estabelecido o regime majoritário, o qual não mais prevalece para o Código Civil de 2002, que estabelece quoruns diversificados para as deliberações. Assim, para a modificação do contrato social, a fusão, a incorporação da sociedade por outra, sua dissolução, ou a cessação do estado de liquidação exige-se a aprovação de três quartos do capital social. Em relação à nomeação, destituição ou fixação de remuneração dos administradores, bem como ao pedido de concordata, exige-se mais da metade de todo o capital social. Exige-se a unanimidade para a designação de administrador não sócio, enquanto o capital não estiver integralizado. Há ainda o quorum de dois terços do capital social para a destituição de administrador sócio, nomeado pelo contrato social., e para a nomeação de administrador não sócio, quando o capital já estiver totalmente integralizado. Por fim, em relação às demais deliberações, exige-se a maioria dos votos dos presentes à assembléia, salvo quorum maior exigido pelo contrato social.

As deliberações de uma sociedade concluídas no regime anterior não são afetadas pela lei nova, uma vez que são fatos consumados. Todavia, as novas deliberações a serem tomadas não são atos jurídicos perfeitos na medida em que não concluídos sob a égide da lei antiga. Também não há que se cogitar de direito adquirido na espécie, porquanto a definição dos quoruns é uma situação abstrata e geral, que não é apta a gerar direitos adquiridos. Assim sendo, para as deliberações tomadas na égide de uma lei nova, o Código Civil de 2002, já devem valer os novos quoruns estabelecidos. Essa é a solução consagrada pelo artigo 2.033 do Código Civil de 2002.

6.3 – INTERPRETAÇÃO DO ARTIGO 2.031 DO CÓDIGO CIVIL DE 2002

Os opositores das conclusões ora defendidas, fundamentam-se basicamente no disposto no artigo 2.031 do novo Código Civil que dá o prazo de dois anos para as sociedades se adequarem ao regime da nova lei. A nosso ver, tal dispositivo não pode afrontar a garantia constitucional da proteção ao direito adquirido ao ato jurídico perfeito e a coisa julgada, devendo ser interpretado de outra maneira.

A adaptação a ser feita no prazo de um ano, se refere a formalidades contábeis, publicações, isto é, durante o prazo de dois anos a sociedade pode continuar fazendo sua escrituração sem as novas exigências feitas pelo Código Civil.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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NOTAS

1 GABBA, C. F. Teoria della retroativitá delle leggi. 3ª ed. Torino: UTET, 1898, v. 4, p. 423.

2 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 2ª ed. Coimbra: Almedina, 1998, p. 237.

3 Idem, p. 249-270.

4 MIRANDA, Pontes de. Comentários à Constituição de 1967. Rio de Janeiro: Forense, 1987, v. 5, p. 6.

5 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição, p. 257.

6 LOPES, M. M. Serpa. Comentários à Lei de Introdução ao Código Civil. 2ª ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1959, v. 1, p. 387.

7 A lei penal retroage para beneficiar o réu.

8 A lei penal especial ou temporal pode ser aplicada após o fim da sua vigência.

9 MIRANDA, Pontes de. Comentários à Constituição de 1967, v. 5, p. 20.

10 MAXIMILIANO, Carlos. Direito intertemporal ou Teoria da retroatividade das leis. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1946, p. 7.

11 ALVES, José Carlos Moreira. As leis de ordem pública e de direito público em face do princípio constitucional da irretroatividade. Revista da Procuradoria Geral da República, ano 1, nº 1, out-dez/92, p. 13.

12 Idem, Ibidem.

13 ALVES, José Carlos Moreira. As leis de ordem pública e de direito público em face do princípio constitucional da irretroatividade, p. 13.

14 Idem, ibidem.

15 ROUBIER, Paul apud FRANÇA, Rubens Limongi. A irretroatividade das leis e o direito adquirido, p. 209.

16 ALVES, José Carlos Moreira. As leis de ordem pública e de direito público em face do princípio constitucional da irretroatividade, p. 14.

17 FERRARA, Francesco. Trattato di diritto civile italiano. Roma: Athenaeum, 1921, p. 266, tradução livre de "Ogni fatto giuridico, sia avvenimento casuale od atto giuridico, è regolato tanto per le sue condizioni di forma che di sostanza, quanto per tutti i suoi effetti – passati, presenti e futuri – dalla legge del tempo in cui il fatto fu giuridicamente compiuto..."

18 ALVES, José Carlos Moreira. As leis de ordem pública e de direito público em face do princípio constitucional da irretroatividade, p. 14.

19 SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras linhas de direito processual civil. 14ª ed. São Paulo: Saraiva, 1994, v. 3, p. 43.

20 GRECO FILHO, Vicente. Direito processual civil brasileiro. 12ª ed. São Paulo: Saraiva, 1997, v. 2, p. 246.

21 SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras linhas de direito processual civil, v. 3, p. 43.

22 MIRANDA, Pontes de. Comentários à Constituição de 1967, v. 5, p. 102.

23 LIMA, João Franzen de. Conflito de leis no tempo. Revista Forense,vol 137 n 579/580 p 11 a 22 set/out 1951, p. 20.

24 ALVES, José Carlos Moreira. As leis de ordem pública e de direito público em face do princípio constitucional da irretroatividade, p. 15.

25 STJ – 6ª Turma – Resp 89348/SP, Relator Ministro Vicente Leal, DJ de 04/11/96.

26 STJ RESP 222466/SP, Relator Ministro Fernando Gonçalves, DJ de 22/05/2000

27 STF - RE 205193/RS, Relator Ministro Celso de Mello, DJ de 06/06/97

28 STJ – RESP 248.155/SP, Relator Ministro Sálvio de Figueiredo, DJ DE 07/08/2000.

29 LIMA, João Franzen de. Conflito de leis no tempo, p. 13.

30 MELLO, Oswaldo Aranha Bandeira de. Princípios Gerais de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 1969, v. 1, p. 271.

31 LIMA, João Franzen de. Conflito de leis no tempo, p. 13.

32 LIMA, João Franzen de. Conflito de leis no tempo, p. 13.

33 MAXIMILIANO, Carlos. Direito intertemporal ou Teoria da retroatividade das leis, p. 45.

34 Neste ponto preferimos não incluir os chamados direitos consumados, isto é, aqueles já exercidos em sua plenitude por seu titular.

35 STF – Plenário – MS 21216/DF, Relator Ministro Octávio Gallotti, DJ de 28/06/91.

36 MELLO, Oswaldo Aranha Bandeira de. Princípios Gerais de Direito Administrativo, v. 1, p. 282.

37 MELLO, Oswaldo Aranha Bandeira de. Princípios Gerais de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 1969, v. 1, p. 283

38 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Ato Administrativo e Direitos dos administrados. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1981, p. 106

39 MELLO, Oswaldo Aranha Bandeira de, op. Cit, p. 284.

40 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de Direito Constitucional, 25ª edição – São Paulo: Saraiva, 1999, p.297.

41 MELLO, Oswaldo Aranha Bandeira de, op. Cit, p. 284.

42 LIMA, João Franzen de. Conflito de leis no tempo, p. 14.

43 LOPES, M. M. Serpa. Comentários à Lei de Introdução ao Código Civil, v. 1, p. 254.

44 LIMA, João Franzen de. Conflito de leis no tempo, p. 18.

45 LOPES, M. M. Serpa. Comentários à Lei de Introdução ao Código Civil, v. 1, p. 257.

46 LOPES, M. M. Serpa. Comentários à Lei de Introdução ao Código Civil, v. 1, p. 253.

47 REQUIÃO, Rubens, Curso de direito comercial, Vol. 1, p. 344; BULGARELLI, Waldirio, Sociedades Comerciais, p. 24; COELHO, Fábio Ulhoa, Curso de direito Comercial, Vol. 2, p. 374; MARTINS, Fran, Curso de direito comercial, p. 189; BORBA, José Edwaldo Tavares, Direito societário, p. 31; GOMES, Orlando, Contratos. Atualização e notas de Humberto Theodoro Junior. 18. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 393; ROQUE, Sebastião José, Direito Societário, p. 31; FAZZIO JUNIOR, Waldo. Manual de direito comercial. São Paulo: Atlas, 2000, p. 152, HENTZ, Luiz Antonio Soares. Direito comercial atual – de acordo com a teoria da empresa. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 94-95.

48 GABBA, C. F. Teoria della retroativitá delle leggi. 3ª ed. Torino: UTET, 1898, v. 4, p. 424, tradução livre de "Le forme esteriori del contratto di societá, che decidono della validitá del medesimo, devono del pari essere desunte dalla legge sotto il cui impero il contrato venne posto in essere".

49 MAXIMILIANO, Carlos. Direito intertemporal, p. 234.

50 LOPES, M. M. Serpa. Comentários à Lei de Introdução ao Código Civil. 2ª ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1959, v. 1, p. 368.

51 MIRANDA, Pontes de, Tratado de direito privado. 3ª ed. São Paulo: RT, 1984, v. 49, p. 226.

52 REQUIÃO, Rubens, Curso de direito comercial, v. 1, p. 201; FRANCO, Vera Helena de Mello, Manual de direito comercial, v. 1, p. 130; SILVA, Bruno Mattos e. Curso elementar de direito comercial: parte geral e contratos mercantis. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2001, p. 34; MARTINS, Fran, Curso de direito comercial, p. 92.

53 COELHO, Fábio Ulhoa, Curso de direito comercial, v. 1, p. 172; FRANCO, Vera Helena de Mello, Manual de direito comercial, v. 1, p. 131.

54 LUCENA, José Waldecy, Das sociedades por quotas de responsabilidade limitada, p. 129.

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Sobre o autor
Marlon Tomazette

procurador do Distrito Federal, advogado em Brasília (DF), professor de Direito do UniCEUB e da Escola Superior de Advocacia do Distrito Federal

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

TOMAZETTE, Marlon. Direito intertemporal:: o Código Civil de 2002 e as sociedades já existentes. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 330, 2 jun. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5257. Acesso em: 25 nov. 2024.

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