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O Ministério Público e a defesa do princípio da impessoalidade

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19/05/2004 às 00:00

Resumo:


  • Legitimidade processual e carência de ação são entidades distintas com efeitos diferentes.

  • Ação civil pública pelo Ministério Público é imprópria para discutir atos administrativos de promoção pessoal de Prefeito Municipal.

  • Recurso especial negado e agravo regimental improvido pelo STJ, mantendo entendimento de que a matéria deve ser tratada via ação popular.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

CONCLUSÕES

31. O princípio da impessoalidade, previsto no art. 37, caput e § 1º, da Constituição da República, torna cogente que os atos estatais sejam atribuídos ao órgão ou ao ente público do qual emanam, e não à pessoa do agente que os praticou, o que terminará por evitar a promoção pessoal deste em detrimento do interesse público inerente à sua atividade. Superadas as concepções puras do positivismo jurídico, que tiveram em Kelsen [39] o seu maior expoente, a doutrina contemporânea tem visto os princípios como formas de expressão da própria norma, a qual é subdividida em regras e princípios. Sendo normas, os princípios, a exemplo das regras, carregam consigo acentuado grau de imperatividade, exigindo a necessária conformação de qualquer conduta aos seus ditames, o que denota o seu caráter normativo (dever ser). Descumprida uma norma, o que inclui o princípio da impessoalidade, ter-se-á a ilicitude do comportamento do agente e, ipso facto, a sua sujeição às sanções cominadas.

32. Maculada a ordem jurídica pelos próprios agentes do Poder Público, tem o Ministério Público, por imperativo constitucional e legal, o dever-poder de ajuizar as medidas cabíveis visando à sua recomposição, isto sob pena de comprometimento de sua própria atividade finalística. Por ser a ação um mero instrumento utilizado para a deflagração da atividade jurisdicional do Estado, tendo natureza autônoma e abstrata, não deve ser ela confundida com a pretensão deduzida, em que pese estarem umbilicalmente ligadas, havendo uma nítida conexão instrumental entre ambas. Considerando que a ação veicula uma pretensão, os elementos daquela, de natureza objetiva e subjetiva, serão individualizados por esta. Como desdobramento dessas observações sobre o direito de ação, podemos dizer que o estudo desse direito subjetivo, acaso dissociado de qualquer elemento a ele extrínseco, permitirá a identificação de características que em muito se assemelham à água: é inidoro, insípido e incolor. Em outras palavras, a ação, como instrumento utilizado para se alcançar a tutela jurisdicional, é elemento vital à sobrevivência da pretensão amparada pelo direito material, tal qual ocorre com a água em relação ao ser humano; no entanto, somente em sendo analisada em conjunto com a pretensão que lhe é conexa, assumirá a ação colorido próprio. Por tais motivos, o nomen juris atribuído à ação somente terá relevância quando, através dele, for possível identificar o tipo de procedimento a ser seguido. De qualquer modo, ainda que algum equívoco seja identificado, o processo somente deverá ser extinto sem julgamento do mérito em não sendo possível adaptá-lo ao tipo de procedimento legal.

33. Tratando-se de ação civil pública que busca velar pelo princípio da impessoalidade, incabível será a extinção do processo em razão de equívoco na via eleita, pois, além de seguir o rito ordinário, referida ação efetivamente é o meio adequado à tutela do patrimônio social, o qual abrange o dever de observância à impessoalidade da Administração, estando o Ministério Público legitimado a ajuizá-la. Os valores consubstanciados no princípio da impessoalidade, de natureza transindividual, indivisível e indeterminada, se enquadram na categoria dos denominados interesses difusos, estando atrelados à própria concepção de Estado Democrático de Direito, do que emerge o direito subjetivo dos administrados à sua observância e legitima a atuação do Ministério Público como substituto processual destes ou, como preferem alguns, na condição de legitimado autônomo.


Notas

1 RT nº 716/253.

2 Neste sentido: Norberto Bobbio, Teoria do Ordenamento Jurídico, Brasilia: UNB, 1989, pp. 158/159 e J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 3ª ed., Coimbra: Almedina, 1998, p. 1086.

3 Manual de Direito Constitucional, tomo 1, 4ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 1990, p. 198.

4 Cf. Margarita Beladiez Rojo, Los Principios Jurídicos, Madrid: Tecnos, 1994, p. 75 e ss.

5 Cf. Ronald Dworkin, Taking Rights Seriously, Massachussets: Harvard University Press, 1980, p. 24.

6 A afirmação de que os princípios podem ser cumpridos em diferentes graus resulta do fato de não veicularem mandados definitivos. Assim, o comando que deles inicialmente deflui pode ser afastado por razões opostas, sendo que a solução deste conflito não é identificada a priori, variando gradativamente conforme os valores em jogo no caso concreto.

7 Cf. Robert Alexy, Teoria de los Derechos Fundamentales, trad. de Ernesto Garzón Valdés, Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1993, pp. 86 e seguintes.

8 Art. 127, caput, da CR/88.

9 Art. 129, II, da CR/88.

10 Art. 129, III, da CR/88.

11 Art. 129, IX, da CR/88.

12 James Goldschmidt, Derecho Procesal Civil, trad. de Leonardo Prieto Castro, 1ª ed., Barcelona: Editorial Labor S.A., 1936, p. 96.

13 Na definição de Celso (in L. 51, D., de obligationibus et actionibus, 44, 7): "Nihil aliud est actio quam ius quod sibi debetur, iudicio persequendi".

14Fundamentos del Derecho Procesal Civil, 1ª ed., Buenos Aires: Aniceto Lopez Editor, 1942, p. 20.

15 José Frederico Marques, Instituições de Direito Processual Civil, Vol. II, atualizada por Ovídio Rocha Barros Sandoval, 1ª ed., Campinas: Millennium Editora, 2000, p. 09.

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16Op. cit., p. 13.

17 Para Pontes de Miranda (in Tratado das Ações, Tomo 1, 1ª ed., Campinas: Bookseller, 1998, p. 68), "pretensão é a posição subjetiva de poder exigir de outrem alguma prestação positiva ou negativa"

18Op. cit., pp. 32/33.

19 Arts. 920 usque 933 do CPC.

20 Arts. 890 usque 900 do CPC.

21 Arts. 914 usque 919 do CPC.

22 Arts. 950 usque 966 do CPC.

23Op. cit., p. 29.

24 Art. 267 do CPC: "Extingue-se o processo, sem julgamento do mérito:" (...) "IV - quando se verificar a ausência de pressupostos de constituição e de desenvolvimento válido e regular do processo; (...)".

25 Art. 244 do CPC.

26 Art. 249, § 1º, do CPC.

27 Art. 271 do CPC: "Aplica-se a todas as causas o procedimento comum, salvo disposição em contrário deste Código ou de lei especial".

28 No mesmo sentido: Hely Lopes Meirelles, Mandado de segurança, ação popular, ação civil pública, mandado de injunção e habeas data, 16ª ed., São Paulo: Malheiros Editores, 1995, p. 127.

29 Arts. 4º e 12 da Lei nº 7.347/85. Vide José dos Santos Carvalho Filho, Ação Civil Pública, 3ª ed., Rio: Lumen Juris, 2001, pp. 102/103 e 333/337.

30 Art. 273 do CPC.

31 Art. 81, parágrafo único, I, da Lei nº 8.078/90.

32 Art. 81, parágrafo único, II, da Lei nº 8.078/90.

33 Na lição de Duguit (in Manuel de Droit Constitutionnel, 4ª ed., Paris: E. de Boccard Éditeur, 1923, pp. 25/26), "a questão freqüentemente discutida de saber qual é o objetivo do Estado, ou mais exatamente do poder público, se resolve da seguinte maneira: o poder público tem por objetivo realizar o direito; ele é obrigado pelo direito a fazer tudo o que esteja ao seu alcance para garantir o reinado do direito".

34 Cf. Georges Vedel, Droit Administratif, Paris: Presses Universitaires de France, 1973, p. 324.

35 Nas palavras de Guido Falzone (in Il dovere di buona amministrazione, Milão: A. Giuffrè Ed., 1953, p. 147), "l''interesse alla buona amministrazione si pone come uno di quegli interessi che non sono particolari ad um dato individuo, mas comuni alla generalità e sono quindi di questo posseduti in quanto parte di questa, come mera frazione dell''interesse colletivo".

36 Ao dispor sobre as funções institucionais do Ministério Público, o art. 129, III, da CR/88 inclui o dever de "promover o inquérito civil público e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos".

37 Segundo Nélson Nery Junior (in Princípios do Processo Civil na Constituição Federal, 5ª ed., São Paulo: RT, 1999, p. 114) "parcela da doutrina ainda insiste em explicar o fenômeno da tutela jurisdicional dos interesses e direitos difusos pelos esquemas ortodoxos do processo civil. Tenta-se justificar a legitimação do Ministério Público, por exemplo, como extraordinária, identificando-a com o fenômeno da substituição processual. Na verdade, o problema não deve ser entendido segundo as regras de legitimação para a causa com as inconvenientes vinculações com a titularidade do direito material invocado em juízo, mas sim à luz do que na Alemanha se denomina de legitimação autônoma para a condução do processo (selbständige Prozebfürungsbefugnis), instituto destinado a fazer valer em juízo os direitos difusos, sem que se tenha de recorrer aos mecanismos de direito material para explicar a referida legitimação". No mesmo norte caminha Luiz Ghilherme Marinoni (in Novas Linhas do Processo Civil, 4ª ed., São Paulo: Malheiros Editores, 2000, p. 68), verbis: "Como o processo clássico seria um obstáculo para o acesso à justiça, em razão de sua absoluta inidoneidade para atender aos novos conflitos de massa, as categorias processuais tiveram que ser reestruturadas, surgindo um ''processo de massa'', que não é mais aquele que era marcado por categorias jurídicas substancialmente pré-capitalistas. Fala-se, hoje, em legitimação autônoma para a condução do processo, quando se pensa, por exemplo, na legitimação do Ministério Público para a tutela dos direitos difusos".

38 STJ, 2ª T., REsp. nº 67.148-SP, rel. Min. Adhemar Maciel, DJU de 04.12.95. No mesmo sentido: 1ª Turma, REsp. nº 167.344, DJ de 19.10.98; REsp. nº 196.932, DJ de 18.03.99; REsp. nº 119.827, DJ de 01.07.99; REsp. nº 213.714, DJ de 06.09.99, todos relatados pelo Min. Garcia Vieira; REsp. nº 154.128, DJ de 18.12.98 e RMS nº 7.423, j. em 12.06.97, ambos relatados pelo Min. Mílton Pereira; e REsp. nº 123.672, j. em 1º.12.97, DJ de 16.03.98, rel. Min. José Delgado; REsp. nº 90.391-SP, j. em 21.10.99, DJ de 17.12.99, p. 324 e REsp. nº 226.863-GO, j. em 02.03.00, RSTJ nº 138/102, ambos relatados pelo Min. Humberto Gomes de Barros; e REsp. nº 162.377-SC, rel. Min. Francisco Falcão, j. em 13.03.01, DJ de 25.06.01, p. 106. A 2ª Turma não destoa desse entendimento: REsp. nº 151.811-MG, rel. Min. Eliana Calmon, j. em 16.11.00, DJ de 12.02.01, p. 104; e REsp. nº 149.096-MG, rel. Min. Francisco Peçanha Martins, j. em 03.10.00, DJ de 30.10.00, p. 138; o mesmo ocorrendo com a 1ª Seção, competente para as causas relativas ao direito público em geral (art. 9º, § 1º do RISTJ): AEREsp. nº 167.783-MG, rel. Min. Ari Pargendler, j. em 07.08.00, DJ de 09.10.00, p. 119.

39 Teoria Geral do Direito e do Estado, trad. de Luís Carlos Borges, 3ª ed., São Paulo: Martins Fontes, 1998.

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Sobre o autor
Emerson Garcia

Membro do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GARCIA, Emerson. O Ministério Público e a defesa do princípio da impessoalidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 316, 19 mai. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5270. Acesso em: 23 dez. 2024.

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