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O Ministério Público e a defesa do princípio da impessoalidade

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19/05/2004 às 00:00

Resumo:


  • Legitimidade processual e carência de ação são entidades distintas com efeitos diferentes.

  • Ação civil pública pelo Ministério Público é imprópria para discutir atos administrativos de promoção pessoal de Prefeito Municipal.

  • Recurso especial negado e agravo regimental improvido pelo STJ, mantendo entendimento de que a matéria deve ser tratada via ação popular.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

"Processual civil. Ação civil pública. Moralidade pública. Ação popular.

1.Não há de se reconhecer como idênticas as entidades processuais conhecidas como legitimidade processual e carência de ação. Ambas têm contornos definidos e produzem efeitos diferentes.

2. Acórdão que reconhece ser a ação civil pública intentada pelo Ministério Público imprópria para discutir ato administrativo praticado por Prefeito Municipal consistente em usar, em campanha eleitoral, símbolo específico, não merece ser atacado via recurso especial, sob o fundamento de que houve reconhecimento de ilegitimidade de parte.

3. Recurso especial cuja negação de subida se prestigia.

4. Agravo regimental improvido".

(STJ, 1ª Turma, AGRAI nº135.179-MG, rel. Min. José Delgado, j. em 15.09.97, unânime, DJ de 17.11.97)


ASPECTOS GERAIS

1. A hipótese sumariada na ementa acima transcrita versava sobre agravo regimental interposto contra decisão que negou provimento a agravo de instrumento interposto pelo Ministério Público do Estado de Minas Gerais, por ter sido negado o prosseguimento de recurso especial apresentado contra acórdão que entendeu ser referida Instituição carecedora de ação civil pública que objetivava eliminar das edificações, dos móveis, dos veículos e de qualquer outro bem do Município de Rio Preto, de modo completo, o símbolo do colibri, que fora criado e utilizado por Prefeito Municipal durante a campanha eleitoral, isto em razão da nítida promoção pessoal do agente com a utilização do dinheiro público.

2. Ao fundamentar o seu voto, o eminente relator, Ministro José Delgado, assim se pronunciou:

"O presente recurso não merece ser provido, pelo que prevalece o entendimento esposado pelo douto Tribunal a quo, devendo o despacho agravado ser mantido pelos seus próprios fundamentos. Assim sendo, transcrevo-os como razão de decidir:

''A Turma julgadora, entretanto, não decretou a carência por ilegitimidade do Ministério Público. Concluíram os julgadores pela impropriedade da ação civil pública para investida contra violação do art. 37, § 1º, do Texto Maior. Consta do voto do eminente relator:

''Se há lesividade do ato que determinou a colocação da publicidade... haverá de ser combatida via ação popular, própria para anular o ato que propicie lesão à moralidade pública. É que, se o símbolo associa figura do prefeito, houve ofensa à moralidade, porque se trata de promoção pessoal. Como ensina CRETELLA JR., "não tem sentido que o governante empregue dinheiro público para fazer questão pessoal (Comentários à Constituição de 1988, Forense, 1ª ed., vol. IV, p. 2253). Se assim procede, atenta contra o princípio da moralidade, legitimando qualquer cidadão, via ação popular, a impedir que o ato se pratique''(fls. 98/99).

A nova Carta, como ensina J.M. Othon Sidou, ''trouxe também à órbita de vigilância popular o ato lesivo à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural'' (Habeas corpus, mandado de segurança, ação popular - As garantias dos direitos coletivos, RJ, Forense, 1989, p. 381).

No caso ora em exame, em que apontada vulneração ao art. 37, § 1º, da Constituição, cabível a ação popular, segundo entendimento doutrinário:

''O dispositivo tem eficácia e é dotado de sanção, pois o dinheiro público gasto com a publicidade, contraditando o texto, será caracterizado como ato de improbidade. Não havendo normas reguladoras da matéria, é cabível ação popular para responsabilizar o autor ou autores do ato lesivo ao erário público''. (Comentários à Constituição Brasileira, Pinto Bezerra -sic, 1990, ed. Saraiva, 2º volume, p. 395).

A discussão, como se vê, não envolve questão afeta à legitimidade do Ministério Público para o ajuizamento da ação civil pública, o que inviabiliza o apelo, no pertinente.

Alega, ainda, ofensa ao artigo 282, III, do Código de Processo Civil.

Ao contrário do que sustenta o Ministério Público, não se trata de dar ao fato correta definição jurídica.

O que ouve, repita-se, foi o exame das condições da ação e a decretação da carência, matéria constante do artigo 267, VI, da lei adjetiva, que pode ser conhecida de ofício em qualquer tempo e grau de jurisdição. Descabida, pois, a alegação de ofensa à norma processual apontada.

Observa-se do inteiro teor da decisão acima citada, onde consta referência aos fundamentos do acórdão, que não houve reconhecimento de ilegitimidade do Ministério Público para o trato do assunto ventilado na Ação Civil Pública intentada. O que se decidiu foi no sentido de que a mencionada ação era imprópria, haja vista ser caso a ser resolvido no âmbito de Ação Popular, em razão de se apontar ato administrativo violador do artigo 37, § 1º, do Texto Maior.

O panorama do julgado demonstra, ao contrário do que pretende o agravante, que foi estabelecida diferença nuclear entre as entidades carência de ação e ilegitimidade, o que, na verdade, se compatibiliza com os ensinamentos da doutrina".

Após realçar que a observância ao princípio da impessoalidade, na modalidade descrita no art. 37, § 1º, da Constituição da República, não consubstancia um interesse difuso ou coletivo, concluiu o relator pela absoluta impropriedade da ação civil pública para combater os atos que o tenham violado. Em suas palavras:

"Como observado, em nenhum momento o acórdão hostilizado tratou de definir se o Ministério Público tinha legitimidade ou não para intentar a ação. Entendeu, apenas, que ela, a ação civil pública, não era a cabível para o trato da questão.

Diante de tais circunstâncias, o recurso especial interposto não merece subir, haja vista que trata de tema não prequestionado no aresto".

3. Releva observar que entendimento similar já havia sido encampado pela 5ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, por ocasião do julgamento da Apelação nº 10.061/0, realizado em 14 de outubro de 1993, sendo relator o eminente Desembargador José Loyola [1]. Na ocasião, restou assentado que "para se obter a restituição ao Erário Municipal de dinheiro desviado por Prefeito, a via processual cabível é a ação popular e não a ação civil pública, porquanto a primeira visa à declaração de nulidade ou à anulação dos atos lesivos ao patrimônio público e à moralidade administrativa, e a segunda destina-se à proteção de determinados direitos e interesses difusos ou coletivos previstos em lei específica. Se o representante do Ministério Público, utilizando-se da via processual inadequada, intenta ação civil pública com vistas à restituição de dinheiro desviado por Prefeito Municipal, o pedido não pode ser recebido como ação popular, em face da ilegitimidade ativa do Ministério Público para a propositura dessa última".

4. Ao negar seguimento ao recurso especial interposto pelo combativo Parquet mineiro, a Primeira Turma do Superior Tribunal de Justiça alicerçou o seu julgado na ausência de prequestionamento e, de forma sintética, nos seguintes fundamentos: a) o dever de obediência ao princípio da impessoalidade não pode ser considerado um interesse difuso ou coletivo; b) não se tratando de um interesse difuso ou coletivo, é inadequada a utilização da ação civil pública para a sua defesa; c) não foi reconhecida a ilegitimidade do Ministério Público para o ajuizamento da ação civil pública, mas sim a impropriedade da via eleita, devendo a questão ser perquirida em ação popular, de iniciativa exclusiva do cidadão.


COMENTÁRIOS

Princípio da Impessoalidade

5. Estando a lide, em sua gênese, vinculada à violação da impessoalidade na administração, por ele haverão de ser iniciados estes breves comentários. Tal princípio, previsto no art. 37, caput e § 1º, da Constituição, deve ser concebido em uma dupla perspectiva. Em um primeiro sentido, estatui que o autor dos atos estatais é o órgão ou a entidade, e não a pessoa do agente (acepção ativa). Sob outra ótica, torna cogente que a Administração dispense igualdade de tratamento a todos aqueles que se encontrem em posição similar, o que pressupõe que os atos praticados gerem os mesmos efeitos e atinjam a todos os administrados que estejam em idêntica situação fática ou jurídica, caracterizando a imparcialidade do agente público (acepção passiva). Com isto, preserva-se o princípio da isonomia entre os administrados e o princípio da finalidade, segundo o qual a atividade estatal deve ter sempre por objetivo a satisfação do interesse público, sendo vedada qualquer prática que busque unicamente a implementação de um interesse particular.

Caráter Normativo dos Princípios Administrativos

6. Rompendo com os alicerces estruturais do positivismo jurídico, a doutrina contemporânea não mais tem visto os princípios como meros instrumentos de interpretação e integração das regras, as quais esgotariam o conteúdo das normas, identificando-se com elas. Atualmente, os princípios deixaram de ser estudados como complementos das regras, sendo concebidos como formas de expressão da própria norma, a qual é subdividida em regras e princípios [2]. Na lição de Jorge Miranda [3], "os princípios não se colocam, pois, além ou acima do Direito (ou do próprio Direito positivo); também eles - numa visão ampla, superadora de concepções positivistas, literalistas e absolutizantes das fontes legais - fazem parte do complexo ordenamental. Não se contrapõem às normas, contrapõem-se tão-somente aos preceitos; as normas jurídicas é que se dividem em normas-princípios e normas-disposições."

7. Aqueles que se opõem ao caráter normativo dos princípios normalmente acenam com sua maior abstração e com a ausência de indicação dos pressupostos fáticos que delimitarão a sua aplicação, o que denotaria uma diferença substancial em relação às normas, as quais veiculam prescrições dotadas de maior determinabilidade, permitindo a imediata identificação das situações, fáticas ou jurídicas, por elas reguladas [4]. Em nosso entender, tais elementos não são aptos a estabelecer uma distinção profunda o suficiente para dissolver a relação de continência existente entre normas e princípios, figurando estes como espécies daquelas. Inicialmente, deve-se dizer que o maior ou o menor grau de generalidade existente em duas normas, a exemplo do maior ou do menor campo de aplicação, é parâmetro incapaz de estabelecer diferenças de ordem ontológica entre elas.

8. Os princípios - incluindo o da impessoalidade - a exemplo das regras, carregam consigo acentuado grau de imperatividade, exigindo a necessária conformação de qualquer conduta aos seus ditames, o que denota o seu caráter normativo (dever ser). Sendo cogente a observância dos princípios, qualquer ato que deles destoe será inválido, conseqüência esta que representa a sanção para a inobservância de um padrão normativo cuja reverência é obrigatória. Em razão de seu maior grau de generalidade, os princípios veiculam diretivas comportamentais que devem ser aplicadas em conjunto com as regras sempre que for identificada uma hipótese que o exija, o que, a um só tempo, acarreta um dever positivo para o agente - o qual deve ter seu atuar direcionado à consecução dos valores que integram o princípio - e um dever negativo, consistente na interdição da prática de qualquer ato que se afaste de tais valores. Constatada a inexistência de regra específica, maior importância assumirão os princípios, os quais servirão de norte à resolução do caso apreciado.

9. Os princípios se distanciam das regras na medida em que permitem uma maior aproximação entre o direito e os valores sociais, não expressando conseqüências jurídicas que se implementam automaticamente com a simples ocorrência de determinadas condições, o que impede que sejam previstas, a priori, todas as suas formas de aplicação [5]. Enquanto as regras impõem determinado padrão de conduta, os princípios são normas jurídicas impositivas de uma otimização, ordenando que algo seja realizado na melhor medida possível, podendo ser cumpridos em diferentes graus [6], sendo que a medida de seu cumprimento dependerá tanto das possibilidades reais como também das jurídicas [7].

10. À luz dessas breves considerações, conclui-se que o princípio da impessoalidade é uma norma de conduta, sendo cogente a sua observância por todos os agentes públicos. Tratando-se de norma de conduta, poderá o Ministério Público insurgir-se contra a sua inobservância? É o que veremos.

Dever do Ministério Público de Zelar pelo Primado da Ordem Jurídica

11. Sendo o Estado Democrático de Direito uma organização política sedimentada sob o império de normas emanadas da vontade popular, afigura-se evidente que todos os atos praticados pelos órgãos que congregam os atributos da soberania popular haverão de manter-se fiéis à ordem jurídica, isto sob pena de rompimento do elo de legitimidade que une o detentor do poder aos seus representantes. Maculada a ordem jurídica pelos próprios agentes do Poder Público, restarão enfraquecidos os princípios basilares do ideal democrático. Sensível a essa realidade, outorgou o Constituinte originário, ao Ministério Público, o dever de "defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis." [8] E ainda, de forma mais específica, elencou, dentre as suas funções institucionais, o dever de "zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados nesta Constituição, promovendo as medidas necessárias à sua garantia" [9] e a obrigação de "promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos" [10].

12. Assim sendo, maculados os princípios basilares do Estado Democrático de Direito, encontra-se o Ministério Público, por determinação constitucional, incumbido de defender o primado da ordem jurídica, a qual abrange os princípios constitucionais que delimitam o atuar da Administração Pública. A análise dos princípios estruturantes da República Federativa do Brasil demonstra que a observância do princípio da impessoalidade é imprescindível ao regular desenvolvimento da atividade administrativa, tratando-se de princípio essencial a ela. As normas constitucionais anteriormente referidas são dotadas de total eficácia, devendo ser interpretadas em busca de uma efetividade máxima. Desrespeitando a Administração Pública os princípios que norteiam seu obrar, está o Ministério Público legitimado a ajuizar todas as medidas cabíveis para a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais.

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13. Como desdobramento lógico do preceito constitucional, tem-se o art. 5º, I, da Lei Complementar nº 75/93 (Lei Orgânica do Ministério Público da União), segundo o qual "são funções institucionais do Ministério Público da União: I- a defesa da ordem jurídica, do regime democrático, dos interesses sociais e dos interesses individuais indisponíveis, considerados, dentre outros, os seguintes fundamentos e princípios: (...) h) a legalidade, a impessoalidade, a moralidade e a publicidade, relativas à administração pública direta, indireta ou fundacional de qualquer dos Poderes da União". No que concerne aos instrumentos de atuação, dispõe o art. 6º, XIV, do mesmo diploma legal, que compete ao Ministério Público da União "promover outras ações necessárias ao exercício de suas funções institucionais, em defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis, especialmente quanto: (...) f) à probidade administrativa." Essas regras, por força do art. 80 da Lei nº 8.625/93 (Lei Orgânica Nacional do Ministério Público dos Estados), são subsidiariamente aplicáveis aos Ministérios Públicos dos Estados, ainda merecendo lembrança o art. 25, IV, "b", desse diploma legal, que dispõe ser incumbência do Ministério Público promover o inquérito civil e a ação civil pública, na forma da lei, "para a anulação ou declaração de nulidade de atos lesivos ao patrimônio público ou à moralidade administrativa do Estado ou de Município, de suas administrações indiretas ou fundacionais ou de entidades privadas de que participem". No mais, cumpre dizer que esses preceitos estão em prefeita harmonia com o texto constitucional, o qual é expresso no sentido de que o legislador infraconstitucional poderia conferir ao Ministério Público funções outras, desde que compatíveis com a sua finalidade [11].

14. Apesar da absoluta desnecessidade das regras referidas no item anterior, pois elas se limitam a clarear aquilo que estava implícito no texto constitucional, entendeu o Tribunal de Justiça de Minas Gerais que o Ministério Público não poderia utilizar-se da ação civil pública para a defesa da impessoalidade na Administração, sob o argumento de que, sendo matéria afeita à ação popular, não teria legitimidade para ajuizá-la, ainda que sob o nomen iuris de ação civil pública. Por evidente, ao instituir a legitimidade do cidadão para o ajuizamento da ação popular, não excluiu o Constituinte a legitimidade disjuntiva e concorrente do Ministério Público para a tutela do mesmo objeto, ainda que venha a se utilizar de instrumento diverso. Entendimento como esse criaria antinomias onde se visualiza uma perfeita e indiscutível harmonia. E, ainda, em prevalecendo tão curiosa tese, negar-se-ia ao Ministério Público o instrumento necessário à consecução de suas finalidades institucionais, o que esvaziaria os preceitos constitucionais que lhe conferiram o dever de zelar pelo primado da ordem jurídica e pela sua efetiva observância por parte dos poderes constituídos.

15. Em suma, o Ministério Público, por força de preceito constitucional, tem o dever de zelar pela ordem jurídica. A legislação infraconstitucional é expressa no sentido que a impessoalidade é um princípio integrante da ordem jurídica. Tanto a Constituição, como as normas que nela buscam o seu fundamento de validade, dispõem que o Ministério Público deverá ajuizar as medidas necessárias à consecução de suas atividades finalísticas.

Irrelevância do Nomen Juris Atribuído à Ação Ajuizada pelo Ministério Público

16. Como se sabe, a ação "é um direito público subjetivo dirigido contra o Estado para dele obter a tutela jurídica mediante sentença favorável" [12]. É igualmente corrente o entendimento de que deve ser separada a ação processual, que somente se dirige contra o Estado, da pretensão que atua frente ao réu na demanda ajuizada, distinção esta inexistente no Direito Romano, que por actio designava ambas as classes. Assim, para a concepção processualista, segundo a qual o fim do processo é tornar evidente o direito discutido, a ação é, antes e durante o processo, o direito de perseguir em juízo aquilo que se deve [13]. Em síntese, a ação, a exemplo da relação processual, não é um fim em si mesma, mas, antes de tudo, um instrumento utilizado para a concreção de determinada pretensão. Desse entendimento não se afasta Eduardo Couture, para quem o direito "se desdobra em duas manifestações autônomas: de um lado, o direito subjetivo à prestação (ou seja, a obrigação) e que se realiza mediante a prestação do obrigado; do outro, o direito subjetivo de ação que, nesse sentido, não é senão a maneira de dar eficácia à vontade da lei consentida pelo direito processual do tempo e do lugar" [14]. Diz-se que o direito de ação é autônomo porque ele não se confunde com o direito material que originou a pretensão formulada, sendo abstrato pelo fato de seu exercício não depender do reconhecimento da existência do direito substancial.

17. Não obstante ser o direito de ação autônomo e abstrato, seu caráter instrumental o torna umbilicalmente ligado a uma pretensão de direito material, sendo o meio necessário à realização desta. "Daí dizer Luigi Sansò, com base nos ensinamentos de Leibman, que a ''concepção exata do ponto de vista processualístico'' é aquela que ''considera a ação um direito substantivo instrumentalmente conexo a um caso concreto" [15]. Na lição de José Frederico Marques [16]: "Se a ação não se confunde com o direito subjetivo material, distingue-se ela também da pretensão. Esta consiste na exigência de subordinação de um interesse alheio ao próprio [17]. A pretensão a que se liga o direito de agir pela conexão instrumental tem conteúdo substancial e se dirige ao sujeito passivo do direito material. A pretensão do credor é contra o devedor, e não contra o Estado. Na ação, ao revés, o autor quer uma prestação do Estado, que é justamente o julgamento da prestação que ele tem, no plano do direito material, contra aquele a quem efetuou o empréstimo ou de quem reclama o cumprimento de uma obrigação." (...) "Como ação se exerce perante os órgãos judiciais, e tem por fim obter o julgamento de uma pretensão, deduz-se esta em juízo através do pedido. O pedido, portanto, nada mais é que a pretensão deduzida em juízo, através do exercício da ação. O instrumento em que o pedido se formaliza é a petição".

18. Considerando que a ação veicula uma pretensão, delimitada pelo pedido contido na petição inicial, que será apreciada pelo Estado, pode-se dizer que a ação será individualizada em conformidade com os elementos pertinentes à pretensão deduzida, sendo tais elementos de natureza subjetiva e objetiva. O elemento subjetivo refere-se às partes no processo e o objetivo à causa de pedir e ao pedido.

19. O direito de ação, embora autônomo e abstrato, somente confere ao demandante o direito à obtenção de uma sentença de mérito em sendo observados determinados requisitos, que consubstanciam as condições para o legítimo exercício do direito de ação. Tais requisitos, não obstante os debates doutrinários, vêm sendo identificados como sendo a legitimidade das partes, o interesse processual e a possibilidade jurídica do pedido, classificação esta que terminou por ser encampada pelo art. 267, VI, do Código de Processo Civil.

20. Tendo o direito processual distinguido o judicium da res in judicium deducta, esta, que consubstancia a pretensão do autor, somente será apreciada em estando presentes as condições para o legítimo exercício do direito de ação e, ainda mais, que tenha sido regularmente constituída a relação processual que instrumentalizará o exercício da função jurisdicional. A existência e a regularidade da relação processual serão aferidas com a verificação da presença dos pressupostos processuais, os quais recaem sobre a demanda, as partes e o órgão jurisdicional. A presença desses elementos denota a existência dos pressupostos processuais de constituição, sendo que a relação processual somente terá curso regular caso possuam eles as aptidões conferidas pelos pressupostos de desenvolvimento, os quais podem ser condensados da seguinte forma: a) demanda - citação validamente efetivada (aperfeiçoando-se a relação processual), procedimento adequado e inexistência de fatos impeditivos (litispendência, coisa julgada, inépcia da petição inicial, perempção, compromisso e não ter sido efetuado o pagamento ou o depósito das custas e dos honorários em processo anterior extinto sem julgamento do mérito); b) partes - legitimidade ad processum (capacidade de estar pessoalmente em juízo) da parte ou de seu representante, e representação por advogado, profissional que possui o ius postulandi; e c) juiz - competente e imparcial (ausência de impedimento e de suspeição).

21. Como desdobramento dessas singelas observações sobre o direito de ação, podemos dizer que o estudo desse direito subjetivo, acaso dissociado de qualquer elemento a ele extrínseco, permitirá a identificação de características que em muito se assemelham à água: é inidoro, insípido e incolor. Em outras palavras, a ação, como instrumento utilizado para se alcançar a tutela jurisdicional, é elemento vital à sobrevivência da pretensão amparada pelo direito material, tal qual ocorre com a água em relação ao ser humano; no entanto, somente em sendo analisada em conjunto com a pretensão que lhe é conexa, assumirá a ação colorido próprio. Com isto, procuramos demonstrar que independentemente dos penduricalhos que sejam adicionados e dos adornos que venha a ostentar, a ação será invariável, sendo o seu colorido fornecido exclusivamente pela pretensão deduzida. Assim, de nenhuma relevância a conduta do demandante que deduz uma pretensão de cobrança de dívida e intitula sua inicial de ação de despejo, isto porque não é o nomen iuris de sua actio que individualizará os respectivos elementos desta, e sim a pretensão. Do mesmo modo, também a aferição das condições para o legítimo exercício do direito de ação se distanciará do nomen iuris declinado pelo autor, já que a sua presença é igualmente informada e delineada pela pretensão e pelos elementos periféricos desta.

22. Em que pese a absoluta irrelevância do nomen iuris da ação para a sua individualização ou para a identificação das condições para o seu legítimo exercício, não raras vezes assume ele uma relativa importância para o regular desenvolvimento da relação processual. Como vimos, dentre os pressupostos processuais de desenvolvimento da relação processual encontra-se a exigência de que seja observado o procedimento que se adeqüe à natureza da pretensão deduzida. O procedimento, por vezes, é indicado pelo próprio demandante ao atribuir uma denominação à ação ajuizada, denominação esta que assumirá múltiplas variantes conforme a classificação que seja prestigiada.

23. Por certo, não causaremos nenhuma surpresa ao leitor com a assertiva de que inúmeras são as classificações existentes quanto às ações. Soltas as rédeas da imaginação e abertas as portas da criatividade humana, difícil será avistar um ponto de harmonia entre a doutrina, a lei e os praxistas. Não obstante a multiplicidade, não se pode deixar de observar o maior prestígio que possui a classificação que se baseia na natureza da pretensão deduzida: condenatória, declaratória e constitutiva, isto para ficarmos apenas no âmbito do processo de conhecimento. A essa classificação, que se mantém circunscrita ao pedido imediato, podemos acrescer aquelas que avançam e se interpenetram com o pedido mediato, vale dizer, com o benefício que pretende auferir o autor: ação de reparação de danos, ação de despejo etc. Classificação existe, ainda, que apresenta como ponto nodal a natureza do objeto postulado, resultando na subdivisão das ações em imobiliárias e mobiliárias, ou mesmo em reais, pessoais, reipersecutórias e penais. Dentre os antigos, como anota Frederico Marques [18], ainda se divisava uma classificação baseada em uma acepção subjetiva, distinguindo as ações em privadas, populares e públicas, conforme fossem propostas pelo titular do direito subjetivo material de que nasce a pretensão, por qualquer do povo ou por órgãos estatais ou paraestatais.

24. Como dissemos ao final do item 23, não raro o nomen iuris atribuído à ação atuará como elemento identificador de determinado procedimento especial a ser seguido, justificável em razão da maior complexidade da relação processual ou mesmo por motivos de segurança e de celeridade. Assim ocorre, verbi gratia, com as ações possessórias [19], de consignação em pagamento [20], de prestação de contas [21], de demarcação [22] etc. Daí a lição de Frederico Marques [23]: "uma vez que a classificação das ações, em razão da natureza da pretensão, interessa ao Direito Processual na medida tão-só em que cada uma das respectivas categorias tenha reflexo na órbita do procedimento, cumpre focalizá-la em termos menos amplos que os da antiga doutrina. Não há necessidade, assim, de se manter, nos domínios do processo, o que neste seja estéril ou inócuo". No direito positivo pátrio, esse enfoque deve ser ainda mais restrito, pois o art. 295, V, do Código de Processo Civil somente autoriza o indeferimento da petição inicial quando, cumulativamente, o tipo de procedimento escolhido pelo autor não corresponder à natureza da causa e não for possível adaptá-lo ao tipo de procedimento legal. Somente em estando presentes esses dois requisitos, será dado ao órgão jurisdicional extinguir o processo sem julgamento do mérito [24]. Acresça-se, ainda, que não merece maior sorte eventual argüição de nulidade, pois esta pressupõe que o procedimento escolhido não tenha alcançado a finalidade própria daquele previsto em lei [25] e que seja provada a existência de prejuízo [26], o que nem sempre ocorrerá com a mera utilização de um procedimento equivocado.

25. No caso sob comento, torna-se tarefa assaz difícil identificar um motivo idôneo à extinção do processo sem o julgamento do mérito. A justificativa, por certo, é tão singela quanto a afirmação: as ações civis públicas seguem o procedimento ordinário. Tal conclusão deflui da ausência de previsão de rito específico na Lei nº 7.347/85 (Lei de Ação Civil Pública) e da expressa remissão ao Código de Processo Civil [27] realizada pelo art. 19 daquela Lei [28]. Como única peculiaridade, tem-se a possibilidade de emissão de provimento liminar, no bojo da própria ação [29], de natureza cautelar ou mesmo antecipatória do mérito, o que não chega a desvirtuar o procedimento ordinário em sua integridade, máxime quando constatamos a inserção do instituto da tutela antecipada no direito processual pátrio [30].

26. Seguindo a ação civil pública o rito ordinário, o processo jamais poderia ser extinto sob o argumento de impropriedade da via eleita, pois a relevância do nomen iuris da ação se exaure na identificação do rito a ser seguido, e este, no caso, é o comum. Assim, dizer que não foi negada a legitimidade do Ministério Público para o ajuizamento da ação civil pública, mas unicamente reconhecido que a utilização desta era imprópria, soa como mero eufemismo, pois, independentemente da denominação atribuída à ação, de injustificável importância para muitos, deveria o órgão jurisdicional unicamente perquirir se à Instituição foi outorgada atribuição para a defesa da ordem jurídica e, em caso positivo, se o rito processual indicado estava correto. Como desdobramento do exposto, deduzimos que se o valoroso Parquet mineiro tivesse denominado sua inicial de ação melhor sorte teria na obtenção de um provimento jurisdicional. Esperamos, no entanto, que daí não se evolua à anulação de contratos, acaso identificada a ausência de palavras sacramentais por ocasião de sua celebração, tal qual dispunha o bom e velho Direito Romano!

Da Propriedade da Ação Civil Pública para a Tutela do Princípio da Impessoalidade

27. A ação civil pública, como se sabe, destina-se à defesa dos denominados interesses difusos e coletivos, isto sem olvidar os denominados interesses individuais homogêneos, nomenclatura introduzida no direito positivo pátrio pela Lei nº 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor) e que, ao nosso ver, é uma subespécie dos referidos interesses coletivos. Interesse, sob o prisma jurídico, denota a idéia de necessidade de satisfação de um direito, o qual deverá ser difuso ou coletivo para que se tenha um interesse de igual natureza. Há muito a doutrina tem identificado duas características essenciais a tais direitos: a transindividualidade - pois devem ser tratados em conjunto e não em conformidade com interesses individuais dos componentes do grupamento - e a indivisibilidade - o que pressupõe a impossibilidade de se identificar a parcela do direito de cada integrante do grupamento. Mantendo-se fiel à doutrina já sedimentada, a Lei nº 8.078/90 definiu os interesses difusos como os "transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato" [31]; e os coletivos como os "transindividuais de natureza indivisível de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base" [32]. Não divisada a presença de interesses difusos ou coletivos, não haverá que se falar em utilização da ação civil pública e das regras processuais que lhe são inerentes.

28. No caso apreciado pelo Colendo Superior Tribunal de Justiça, afigura-se tarefa assaz difícil sustentar a ausência do intitulado interesse difuso. A uma, ao exercerem o direito de sufrágio, verdadeiro instrumento de concretização da democracia, os eleitores confiaram a administração dos interesses municipais ao ilustre Prefeito Municipal, o que o tornou mandatário daqueles. A duas, a Administração Pública municipal, comandada por seu Prefeito, como célula autônoma de um Estado de Direito, como pensamos ser a República Federativa do Brasil, deve render estrita observância à ordem jurídica, em especial àquelas normas diretamente a ela relacionadas e que foram igualmente produzidas pelos mandatários do povo [33]. A três, além do dever de observância do ordenamento jurídico por parte dos agentes públicos, existe o correlato direito da população a que tal ocorra, não se permitindo ao agente atitude outra que não o exercício do mandato em conformidade com os limites traçados pelo mandante. A quatro, a malversação do dinheiro público comprometerá a realização de políticas públicas e o próprio bem-estar do povo, tornando letra morta o estatuído no art. 3º da Constituição, que considera princípio fundamental da Federação, a qual abrange o Município de Rio Preto, a promoção do bem de todos. A cinco, toda a atividade administrativa, qualquer que seja ela, deve visar à consecução do interesse público, o que consubstancia uma diretiva positiva que impõe aos administradores uma certa filosofia, um certo estado de ânimo [34], e denota a indisponibilidade deste por parte da Administração e o direito dos administrados à sua observância [35]. A seis, o próprio texto constitucional, em seu art. 129, III, considera a proteção do patrimônio público e social um interesse difuso [36]. A sete, o espírito voltado à ilegalidade e a paulatina degradação moral dos agentes públicos gera o enfraquecimento do regime democrático, fazendo com tais características sejam associadas às próprias instituições, o que representa a semente indesejada de regimes de exceção, de triste lembrança para os brasileiros.

29. O princípio da impessoalidade, a exemplo dos demais princípios e regras que regem a atividade estatal, consubstancia valor comum a toda a coletividade, de natureza transindividual, indivisível e indeterminada, sendo elemento integrante do patrimônio social, o que torna evidente a existência de um direito subjetivo a uma administração proba, o qual pode ser perquirido em juízo pelo Ministério Público, na condição de substituto processual de todos os detentores da facultas agendi ou, como preferem alguns, na condição de legitimado autônomo [37]. Maculada a ordem jurídica, comprometido o regime democrático e desvirtuados os interesses sociais, torna-se imperativa (e não facultativa, frise-se!) a atuação do Ministério Público, sendo a ação civil pública o instrumento adequado à preservação de tais interesses difusos.

30. Não sem certa resistência, o Superior Tribunal de Justiça terminou por sedimentar sua jurisprudência no sentido de que a ação civil pública é instrumento adequado à defesa do patrimônio público, in verbis: "Processual Civil. Ação Civil Pública; Defesa do Patrimônio Público. Ministério Público. Legitimidade Ativa. Inteligência do art. 129, III, da CF/88 c/c o Art. 1º, da Lei nº 7.347/85. Precedente. Recurso Especial não Conhecido. I – ‘O campo de atuação do MP foi ampliado pela Constituição de 1988, cabendo ao parquet a promoção do inquérito civil e da ação civil pública para proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos, sem a limitação imposta pelo art. 1º da Lei 7.347/85’(Resp. nº 31.547-9-SP). II – Recurso Especial não conhecido" [38]. Patrimônio público, por evidente, veicula noção eminentemente ampla, alcançando todos os princípios que regem a atividade estatal, inclusive a impessoalidade.

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Sobre o autor
Emerson Garcia

Membro do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GARCIA, Emerson. O Ministério Público e a defesa do princípio da impessoalidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 316, 19 mai. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5270. Acesso em: 22 dez. 2024.

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