1. Introdução: linguagem e acepções da palavra "direito" na modernidade.
Pode-se dizer que o mundo ético, do qual se destaca a esfera jurídica, tem por um caráter básico a sua expressão através de signos, da linguagem. Tal linguagem toma para si, dentro de um estudo do positivismo clássico, uma idéia de cristalização de códigos e critérios que, em tese, garantiriam a chamada "plenitude hermética" do ordenamento jurídico estatal. Os trabalhos mais recentes na área da linguagem jurídica têm mostrado uma tendência cada vez mais acentuada em admitir a impossibilidade da observação do fenômeno jurídico através de uma estrutura única de linguagem. Tais estudos indicam que a língua possui em sua natureza uma estrutura polissêmica, em que temos várias palavras com um mesmo significado e, no mais das vezes, palavras diferentes que são entendidas como sinônimos(1).
Essa estrutura aberta - que possibilita a existência de diversidade na relação significante-significado nas mais diversas palavras - seria uma marca registrada do discurso jurídico. Tal assertiva, a princípio, iria de encontro às teses positivistas mais exacerbadas, utilizando o argumento de que essa "textura aberta" (2) seria uma forma de se admitir decisões que fugissem ao âmbito das fontes formais de produção do direito.
Tal afirmativa é, desde logo, rejeitada por Herbert Hart(3), que dá ao julgador o poder de, dentre as diversas formas que existem para a decisão de um conflito - formas essas fruto da estrutura aberta - a que mais se adequaria ao caso em análise. Com isso, na tese de Hart, o papel do julgador torna-se indispensável na aplicação do direito de acordo com essa multiplicidade de soluções. Abstraindo-se das possíveis críticas que teorias sociológicas fazem ao que chamariam de uma nova forma de positivismo, este trabalho, dentro das chamadas "acepções da palavra direito ", tem por escopo a análise de um dos estudos mais desenvolvidos pela clássica teoria geral do direito: a distinção entre as noções de direito público e de direito privado.
Sempre adotada como um paradigma de didaticidade no ensino da teoria geral do direito, tal forma de investigação epistemológica traz em seu bojo uma série de considerações críticas no sentido de se abolir por completo tal enfoque. Para verificarmos a veracidade de tal posicionamento, far-se-á uma investigação sobre o papel das esferas pública e privada na teoria de Hannah Arendt, a partir da análise dos conceitos que compõem a vita activa, do livro "A Condição Humana". Diante disso, teremos o arcabouço teórico suficiente para verificar as mutações da referida dicotomia pela história da humanidade, em especial com o surgimento do Estado moderno e seus respectivos pilares que passaram a caracterizar a modernidade ocidental(4).
Esboçada a teoria da vita activa de Hannah Arendt, nosso passo seguinte será a identificação do problema a partir do desenvolvimento do agir humano, tomado com a base na teoria do chamado direito natural. As observações de tal capítulo buscarão esclarecer o caminho de legitimação da ação humana a partir de argumentos próprios de cada tempo, e ver a ilação das idéias de público e privado em tais formas. Observaremos como as mudanças no quadro social favoreceram a emergência de critérios legitimadores os mais diversos da prática político-jurídica, tais como a vontade divina, a vontade da maioria etc, e como o espaço público foi se moldando a essas realidades, propiciando o surgimento da esfera social, que traria ao espaço público as esferas da vita activa que, nos antigos, não eram próprias dele, no entender de Hannah Arendt. Logo, tal capítulo também terá a influência da pensadora alemã no seu desenvolvimento.
Determinado, enfim, o arcabouço teórico de trabalho, fixaremos estudo sobre o tema em um ponto do direito dogmático, especificamente no dirigismo contratual, com a ascensão do chamado Estado social(5). Nesta parte do trabalho, a abordagem será concentrada ao instituto do dirigismo tal como entendido pelo direito civil, em que alguns exemplos serão dados a fim de esclarecimento a respeito de sua incidência no mundo empírico. A partir de então, aliaremos a teoria à praxis, demonstrando como o dirigismo pode fundamentar a inexistência prática da distinção entre direito público e privado, restando a sua utilização com um perfil eminentemente acadêmico, especificamente pela didaticidade da referida distinção.
Em virtude do tema objeto de análise, nossa pesquisa utilizará basicamente dados bibliográficos, não havendo a intenção de realizar estudos de caso para comprovar a possível utilização do dirigismo contratual nos dias de hoje, mas não é nosso objetivo tal estudo. Adotamos o sistema completo de citações bibliográficas, o que facilita ao leitor a identificação imediata das fontes pesquisadas sem a necessidade de interromper a leitura para a consulta da fonte na listagem de bibliografia contida ao final do trabalho. Apesar de o sistema autor-data vir sendo bastante utilizado hoje na Academia, preferimos a adoção do sistema completo, pelas facilidades já expostas supra.
O emprego das aspas neste texto tem utilização a destaque dos artigos científicos consultado e a palavras que carreguem um duplo sentido em seu emprego, dando a ele inclusive um certo caráter jocoso. O negrito e itálico, utilizados simultaneamente, destacam, nos dados bibliográficos, os títulos dos livros e das revistas especializadas manuseadas e citadas como fonte da pesquisa; no decorrer do texto, destacará passagens julgadas importantes para a compreensão das idéias ora esposadas. A função do destaque em itálico será destinado a palavras de língua estrangeira porventura mencionada no decorrer da exposição.
Vale ressaltar a importância do tema abordado no presente ensaio. Com ele, teremos a valiosa oportunidade de fazer uma análise crítica de um dos pontos mais clássicos do estudo da teoria geral do direito, visto sempre, no nosso entender, de uma maneira bastante analítica, sem sopesar o seu enquadramento em dados de História e de tópica(6) valiosos no estudo do direito, e, com isso, passaremos por pontos controvertidos não só na teoria, mas também nas práticas hodiernas no que diz respeito à aplicabilidade dos contratos no nosso sistema jurídico, o que nos permitirá uma reflexão atenta sobre as bases epistemológicas clássicas da teoria geral do direito e da efetividade do mundo contratual.
Assim, a primeira parte de nosso trabalho consistira em fixar esses pontos de abordagem do problema, para, em seguida, fixarmos a teoria do direito dogmático, com o dirigismo contratual aplicado a essa estrutura eminentemente teórica, permitindo uma investigação rígida desses fenômenos que nos acompanham todos os dias e que às vezes, pelas contingências próprias da vida, não paramos para refletir sobre suas implicações no nosso mundo.
PRIMEIRA PARTE
2. A dicotomia público x privado na antigüidade: a vita activa de Hannah Arendt.
2.1 Linhas gerais do trabalho de Hannah Arendt: natureza, mundo e vita activa.
Analisar as circunstâncias que criaram a distinção entre as esferas pública e privada na antigüidade é uma árdua tarefa, mas o auxílio de Hannah Arendt, nesse aspecto, torna-se fundamental para uma abordagem crítica a respeito. A análise de Arendt, além de detalhada e bem estruturada, favorece ao perfeito entendimento do tema, além de se ter um quadro das possíveis mudanças que a sociedade viria ater depois, com o avançar dos tempos.
O seu estudo, no que tange ao espaço público e ao privado - que criariam a distinção entre direito público e privado - é analisada a partir do conceito de vita activa, fundamental na obra da autora. Ou seja, toda a atividade do homem corresponde a uma porção da vita activa, tornando, pois, a ontologia de Hannah Arendt como sendo um estudo da "experiência existencial do homem" (7).
Assim, pois, a idéia de natureza é fundamental à obra de Hannah Arendt, mas não apenas ela. Natureza, no seu entender, constitui os meios dados ao homem para a vida, sem nenhuma interferência humana nesse proceder. A vita activa seria composta não apenas da natureza, mas também pela idéia de mundo, que aliaria à natureza toda a interferência do homem na transformação do estado bruto da natureza, formando objetos/bens que, em tese, não foram colocados à disposição do homem naturalmente(8). A atividade que forma o mundo insiste em modificar o estado de natureza. É nesse ponto específico, de transformação da natureza para a formação do mundo - ambos os conceitos formadores da condição humana - é que surge a noção de vita activa em Hannah Arendt.
Hannah Arendt nos fornece um conceito de vita activa - no capítulo justamente que versa sobre as esferas pública e privada - ao afirmar que se trataria da "vida humana na medida em que se empenha ativamente em fazer algo" (9). Logo, a atividade humana seria o grande pano de fundo da idéia de vita activa. Como assevera Adeodato, não se pode resumir a condição humana apenas nesse âmbito de atuar. Existe, também, a chamada vita contemplativa, que se encontram em outra obra da autora. Na obra ora em análise, diz Adeodato, a autora observa "apenas o lado ativo da condição humana" (10). Assim, a autora desmembra a idéia de vita activa conforme as atividades humanas na formação do mundo e transformação da natureza. Chega ela, então, a três esferas de vita activa: o labor, o trabalho e a ação.
2. Labor, trabalho e ação como integrantes da vita activa na condição humana.
Ressalte-se que o primeiro problema a ser enfrentado no estudo dessas esferas é trazido por Adeodato, dedicando boa parte de um capítulo de sua obra a dissecar a problemática da tradução desses termos, em especial aos dois primeiros, que trazem complicações na tradução(11). Escrito originalmente em inglês, os termos labor, work e action são difíceis de serem traduzidos com a fidelidade científica que se requer à matéria. Adeodato prefere traduzir labor como "trabalho" e work como "produção de objetos" (12). Optamos pelo posicionamento do tradutor para o português de A Condição Humana.
É na esfera eminentemente privada que se encontra o labor na antigüidade, segundo Hannah Arendt. Trata-se de uma atividade eminentemente de subsistência, que tem por escopo a manutenção das condições vitais do homem. Por isso, Hannah Arendt afirma que a condição humana do labor é a vida(13). O labor, pois, é praticado com o intuito básico de saciar as necessidades vitais do homem, e os instrumentos utilizados para a realização do labor ou estão no próprio corpo do homem ou são como uma extensão dele, chamado por Tercio Sampaio Ferraz Júnior de atividade ininterrupta de produção de bens de consumo(14).
Era chamado de animal laborans o homem que realizava o labor, com atividades realizadas no domínio da casa, onde não havia liberdade. Tal ausência de liberdade é vista sob as óticas interna e externa. A falta de liberdade interna está fundamentada na relação de mando que o pater familias detinha sobre os seus dominados, quer filhos e esposa, quer escravos(15). Ou seja, os que estavam sob o jugo do pater familias não tinham liberdade de espécie alguma, muito menos no sentido grego da palavra, que se restringe ao conceito de ação, como veremos mais adiante. No âmbito externo, não se pode dizer que o pater familias detinha liberdade, haja vista que ele não poderia tomas assento nas decisões que eram próprias do homem livre, entendido como animal político, o politikon zoon. Percebemos, nessa fase do atuar humano, que o labor está restrito à atividade do setor privado (privus) na antigüidade. Posteriormente, verificar-se-á como essas fronteiras se romperam no passar dos tempos, com o surgimento da chamada esfera social.
O trabalho, chamado por João Maurício Adeodato de produção de objetos(16), já diferenciava do labor no sentido de que aquele está centrado na produção de bens duráveis, bens estes que não têm a idéia de consumo imediato como os que são fruto do labor(17). O fruto do trabalho se consubstancia em bens de duração, que não se consomem instantaneamente no tempo, adquirindo permanência no mundo, como resultado de uma "relação meio/fim" (18). O objetivo do homo faber, aquele que trabalha, é produzir bens não de consumo, mas que tenham uma duração no tempo. Nesse sentido, pode-se dizer que a lex, tomando por base a análise dos antigos, seria fruto do trabalho do legislador, assim como a casa seria fruto do trabalho do que hoje conhecemos como engenheiro, e assim por diante. Trata-se de uma atividade com começo, meio e fim, o que a distingue sobremaneira do labor, em que, para a satisfação das necessidades, tinha que ser necessariamente uma atividade ininterrupta, caso contrário poderia haver o risco de desaparecimento da espécie(19). A posição do trabalho no mundo antigo seria um intermédio entre o público e o privado, mais próximo do público.
Chega-se, finalmente, ao último dos pólos componentes da vita activa: a ação. Esta caracterizaria o espaço público por excelência, e praticada pelos homens livres, aqueles que são iguais e que se autogovernam, sem as amarras próprias de quem vive unicamente para retirar o sustento. A ação não possui começo, meio e fim: trata-se de uma atividade imprevisível, pois não se sabe ao certo quais serão as conseqüências que hão de advir de sua ocorrência, diferenciando-se, em tal ponto, do trabalho(20). Outra característica da ação seria o fato de ser ilimitada, pois seu espaço é o da política, do diálogo, que já estaria inserido em sistemas de diálogo antecedentes, e que formariam um moto contínuo de ações, surgindo, desse modo, espontaneamente. A ação é sempre pensada entre homens, praticada pelo politikon zoon, necessitando do fenômeno de interação, o que não permite o isolamento da ação: ela se insere no contexto das demais(21).
Outra característica da ação seria a irreversibilidade, visto que a idéia de pluralidade e interação advertem que não se pode controlar as conseqüências advindas do início do desenrolar da ação, até pelo próprio princípio do "moto contínuo", não se pode pensar em ação que, uma vez iniciada, não possa ser concluída por razões alheias à própria razão. É o exercício político por excelência, "é a única que não pode sequer ser imaginada fora da sociedade dos homens" (22). A esfera pública, na antigüidade, é a esfera da ação por excelência. O espaço público é caracterizado pela liberdade, ou seja, pelo convívio do cives entre os seus, também livres, idealizando e pondo em prática a ação na polis através do discurso, ou seja, "tudo era decidido mediante palavras e persuasão, e não através da força ou violência" (23). Fica, pois, na seara jurídica, clara a distinção, em tempos antigos, entre jus e lex, direito e lei, esta sendo fruto do trabalho do legislador e aquele como o resultado de um moto contínuo da ação humana(24).
As esferas pública e privada, pois, possuíam traços nítidos de distinção entre os antigos, mas o advento da modernidade, dentre outras características próprias do nosso tempo, fizeram com que a distinção entre direito público e privado ficasse cada vez mais tênue.
3. O público e o privado no avançar dos tempos: as teses jusnaturalistas.
A teoria do direito natural nos rumos da filosofia do direito é um grande panorama de abordagem histórica para compreendermos o problema da distinção público x privado nos nossos dias. Tais teorias jusnaturalistas nos permitem uma espécie de "radiografia" da história política ocidental, aonde, conforme os desenvolvimentos de uma determinada tendência de poder, sempre se fez necessária a implantação de um mecanismo legitimador desse poder, com a finalidade precípua de justificá-lo. Nessa nossa observação, faremos ilações com os conceitos harendtianos de labor, trabalho e ação, que servirão de substrato teórico para a explicação do dirigismo contratual.
Inicialmente, o pano de fundo das teses jusnaturalistas está em se pensar numa ordem jurídica que seria superior aos ordenamentos jurídicos positivos, servindo de base de apoio desses direitos. Logo, havendo conflito entre a ordem natural e as ordens positivas, prevaleceria a norma de direito natural, que seria a base do surgimento destas. Além das próprias circunstâncias históricas, as teorias do direito natural, apesar de possuírem esse ponto em comum, na verdade diferem no que venha a ser esse postulado de base dos direitos positivos(25).
O jusnaturalismo, que surgiu da passagem do enterro de Polínice na tragédia Antígona, desenvolveu-se no decorrer da história, tendo como seu primeiro ponto de referência a época do exercício do poder temporal da igreja. É o chamado jusnaturalismo teológico, em que o direito superior que seria a base dos ordenamentos positivos seria a vontade divina, que seria imutável para todos os tempos e lugares, com um pequeno detalhe: no jusnaturalismo teológico, sempre existe a figura de um órgão oficial que seria o intérprete dos desígnios da divindade, como tal a igreja católica. Assim, o homem, por si só, não podia ser capaz de perceber tal "ordem natural", ficando sempre a mercê dos mandamentos da igreja católica(26). A ordem pública, pois, se é que a podemos chamar assim, estaria no desígnio de Deus.
Posteriormente, com o advento da reforma protestante, esquiva-se em parte da tese sustentada pelo jusnaturalismo teológico. Agora, muito embora não se negue a divindade, cada pessoa, se for pura de coração e dotada de razão, seria capaz de perceber os desígnios de Deus. Claro que as idéias de Lutero serviram de um grande pano de fundo para se legitimar certas ações do poder, como no caso de Henrique VIII, que criou a igreja anglicana para contrair núpcias que não eram permitidas pela Igreja católica. Ainda assim, começa a ser questionado o poder de Deus, com a convicção de que ele não seria tão poderoso quanto se pensava anteriormente. Hugo Grotius, um dos maiores mentores intelectuais dessa corrente chamada de jusnaturalismo antropológico, é um dos que salienta que o poder de Deus, apesar de supremo, não seria ilimitado, pois, segundo ele, nem Deus poderia modificar o direito natural. Em suas palavras: "...embora seja imenso o poder de Deus, podem-se, contudo, assinalar algumas coisas as quais não alcança...assim, pois, como nem mesmo Deus pode fazer com que dois e dois não sejam quatro, tampouco pode fazer com que o que é intrinsecamente mau não o seja...Por isso, até o próprio Deus se sujeita a ser julgado segundo esta norma..." (27). Como se vê, há uma limitação ao poder da divindade, muito embora não se negue a sua força de mecanismo legitimador da esfera pública.
Com o advento da Revolução Francesa, e surgimento da Era Moderna, começa a ocorrer um fenômeno curioso: a identificação dos conceitos de trabalho e ação, próprios da teoria de Hannah Arendt. A ação passa a perder a noção de virtude que lhe era intrínseca, passando a ser obsdervada como uma atividade voltada para a obtenção de fins a partir de determinados meios. Tal fenômeno traz em seu bojo uma crescente aproximação entre jus e lex, passando o direito a ser visto como sinônimo de norma, adotando-se uma razão meramente instrumental. O agir político, agora, é visto como um centro produtor de "bens de uso", como ordem, segurança, paz etc. Começa a surgir não uma esfera autônoma, intermediária entre a pública e a privada, a social, haja vista que tal esfera tem a finalidade de trazer elementos que, na antigüidade, eram próprios do mundo privado para a seara que era estritamente pública.
Pode-se dizer que o social, pois, seria como que uma junção de aspectos da esfera pública e privada(28). Logo, surge a dicotomia direito individual (privado) versus direito coletivo (público), com a idéia de prevalência deste sobre aquele, muito embora ambas as formas de observação são sociais. A forma de solucionar tal impasse consiste em se criar um ente que envolva ambas as partes da dicotomia social, que funcionará como um catalisador a equilibrar essas forças. Tal ente, fruto do trabalho, é o Estado(29). O fundamento de um direito natural dito democrático, pois, estaria na vontade da maioria, pois a maioria deteria a legitimidade do poder e seria apta a decidir os conflitos surgidos. Aqui, já se percebe o abandono da divindade como epicentro de um direito natural, em virtude do surgimento da modernidade ocidental com o Estado moderno e as respectivas diferenciações normativas. Nos dias de hoje, o que se observa é uma crescente identificação do labor com o trabalho.
A revolução industrial transformou aquele que trabalhava em um operário, numa atividade ininterrupta - característica própria do labor arendtiano - de produção de objetos de consumo. O labor passa então a ser mais uma força de produção do que quaisquer outras formas de conceituação, sendo o homem o próprio instrumento da consecução de seus fins. Transpondo tal conceito para a esfera pública, verificamos o Estado como interventor na atividade econômica, um dos pilares do dirigismo contratual, e o direito agora observado como objeto de consumo, ou seja, pouco importa a matéria regulada: o que interessa é a produção em larga escala, por parte do Estado, de normas jurídicas que venham a regular as condutas intersubjetivas relevantes. O problema está exatamente na questão da relevância, pois hoje em dia cada vez mais a máquina estatal serve mais para atender aos interesses de grupos setorizados, muito embora utilize um mecanismo de legitimação legal-racional que, no mais das vezes, é estritamente formal, pois a ilação entre labor e trabalho não permite uma observação de cunho material. A produção em larga escala é o que interessa. Como o povo parece estar ávido pela normatização, tenta-se resolver a questão através de fórmulas prontas, que não se coadunam às necessidades sociais, gerando o chamado jusnaturalismo de conteúdo variável como sendo aquele que acompanha as mudanças sociais, e como tal, não paira, no nosso entender, sobre o direito estatal, mas sim caminha lado a lado, dinamizando a estrutura de direitos que não se efetivam pela inércia do Estado. Como o Estado pretende deter o monopólio dessa produção, ele se encontra em um beco sem saída, pois a regulação formal, quando há, não possui mecanismos de efetivação no mundo empírico, gerando a atuação intensa da sociedade civil no sentido de se auto-regular, em função da inércia do Estado na tutela ao mundo da experiência(30), o que torna a distinção entre direito público e privado desprovida de rigor científico, pois a produção, por ser em série, pode abarcar tanto uma quanto outra esfera, indistintamente. Caso patente dessa realidade é o dirigismo contratual, ponto a ser analisado com mais vagar.