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Da necessidade da outorga uxória na renúncia da herança face aos regimes de bens do Novo Código Civil

07/06/2004 às 00:00
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I – OBJETO DO ESCRITO:

O presente trabalho tem como escopo apresentar e desenvolver as razões pelas quais se entende necessária ou desnecessária a outorga uxória na renúncia da herança por um dos cônjuges, questão com grande importância e utilidade prática.

Com efeito, um cônjuge casado que tenha direito a uma herança (de seu ascendente que falece, por exemplo) tem a faculdade de aceitá-la ou não, ato que, a depender do regime de bens, pode ter reflexos na esfera patrimonial do outro cônjuge, mormente considerando que a transmissão da herança ao patrimônio do herdeiro é automática, donde se verifica a importância da anuência deste ao ato de disposição daquele.

A renúncia da herança, a propósito, é situação não rara no cotidiano forense e suas razões são as mais variadas, e exemplo da tentativa de frustrar credores ou até por um sentimento pessoal do herdeiro, que apenas deseja guardar lembranças (e não bens!) do ente querido que lamentavelmente faleceu.

Assim, analisando principalmente temas de direito de família e sucessório, pretende-se demonstrar que a renúncia se aproxima do conceito de alienação de bem imóvel, de maneira que a anuência do outro cônjuge pode ser imprescindível.

Ao final, algumas consequências práticas relevantes serão trazidas à baila, fornecendo valiosos instrumentos para o operador da lei.


II – HERANÇA E SUA RENÚNCIA:

A herança é o conjunto de bens, direitos e obrigações deixados pelo de cujus [1], tratando-se de uma universalidade.

Pode-se dizer, com segurança, que até a partilha a herança é bem indivisível e imóvel (art. 80, II, do Código Civil).

Interessante anotar a regra do art. 1.784 do Código Civil. Assim é que, terminando a personalidade da pessoa natural com a morte, desde então abre-se-lhe a sucessão, transmitindo a herança aos herdeiros desde logo. De notar-se que nosso ordenamento acolheu o chamado princípio da saisine, originado do direito gaulês: le mort saisit le vif. Vale dizer, a abertura da sucessão ocorre com a morte do titular do direito, que transmite, imediata e automaticamente, a posse e a propriedade dos bens aos herdeiros.

Aberta a sucessão, a lei formula aos sucessores a seguinte pergunta: quereis, sim ou não, ser herdeiros? A resposta afirmativa ou negativa importará, respectivamente, aceitação ou renúncia da herança [2].

ITABAIANA DE OLIVEIRA pontifica que renúncia da herança é o ato pelo qual o herdeiro declara, expressamente, que a não quer aceitar, preferindo conservar-se completamente estranho à sucessão [3].

A renúncia da herança deve ser expressa e solene [4], tratando-se de ato jurídico em sentido estrito, ou negócio jurídico, de direito privado, unilateral, não dependendo, portanto, para sua configuração a aceitação de outra parte [5].

A doutrina costuma elencar duas espécies de renúncia: abdicativa e translativa. A renúncia abdicativa ou propriamente dita é aquela, pura e simples, praticada antes de qualquer ato que importe em aceitação tácita da herança. A translativa, por sua vez, é a renúncia precedida de aceitação, tácita ou expressa [6].

Finalmente, cumpre destacar que a renúncia da herança pode ser tida como uma forma de alienação (ou, ao menos, ato muito assemelhado a uma alienação), já que, como é cediço, a alienação tem conceito muito mais amplo do que outros institutos, como a compra e venda. É que a alienação envolve a transferência de coisa ou direito, real ou pessoal, a outra pessoa, a título gratuito ou oneroso [7].


III – REGIME DE BENS NO CASAMENTO. REFLEXOS NA SUCESSÃO:

É pelo pacto antenupcial, contrato solene firmado pelos próprios nubentes habilitados matrimonialmente antes da celebração do ato nupcial, que se dispõe a respeito da escolha de qual regime de bens deseja-se que vigore enquanto durar o casamento [8].

O regime de bens é o conjunto de relaciones juridicas de orden – o de interés – patrimonial que el matrimonio establece entre los conyuges y entre éstos y terceros, nas palavras de ZANNONI [9].

O atual Código Civil inovou na matéria, merecendo destaque a exclusão do regime dotal e a adoção do regime da participação final nos aqüestos [10].

Trata-se de matéria inserida no Direito Patrimonial de Família (Livro IV, Título II, do Código Civil) e é uma das principais consequências jurídicas do casamento, repercutindo sobre as relações econômicas e patrimoniais do casal, notadamente sobre os modos de participação de cada um, comunicação ou não de bens entre ambos, administração e titularidade dos que sejam comuns e particulares e as consequências jurídicas dos atos dos consortes em relação a terceiros até a dissolução da sociedade conjugal [11].

O regime de bens do casamento sempre teve importância decisiva em matéria de direito das sucessões, especialmente porque dele decorrem a meação do cônjuge supérstite e, consequentemente, o montante a que os demais herdeiros farão jus com a morte do autor da herança, pois a meação é excluída de seu total. Avultou-se o tema com a entrada em vigor do novo Código Civil, sobretudo em razão da redação do art. 1.829, I, que tem causado debates intensos na doutrina.

Aqui convém voltar a atenção ao que dispõe alguns dispositivos do novo Código Civil. Pelo art. 1.647, I, a contrario sensu, e art. 1.678, no regime da separação de bens podem os cônjuges alienar seus próprios bens imóveis independentemente da autorização do outro. Já no art. 1.656 fica claro que os cônjuges podem convencionar a mesma liberdade para os bens particulares no regime da participação final nos aqüestos.

No Código Bevilacqua (Código Civil de 1916) era incogitável essa liberdade, pois, qualquer que fosse o regime de bens, indispensável se fazia a outorga uxória, a teor dos arts. 235, I, e 242, II.

Desde logo resta claro como a luz solar que o novel diploma teve o mérito de dispensar a outorga uxória naqueles regimes de bens em que o patrimônio de cada cônjuge é perfeitamente delineado, não se confundindo com o do outro.


IV – ANOTAÇÕES SOBRE O PRINCÍPIO DA "SAISINE" NO NOVO CÓDIGO CIVIL:

Tecidas essas considerações, curial fazer uma digressão ao princípio da saisine, desta vez de maneira um pouco mais amiudada e sob o enfoque no novo Código Civil.

Lembre-se que esse princípio é originado do direito gaulês e revelado pelo adágio: le mort saisit le vif, de maneira que a abertura da sucessão ocorre com a morte do titular do direito, que transmite, imediata e automaticamente, a posse e a propriedade dos bens aos herdeiros.

Assim é que, reiterando o exposto acima, afirma-se que nosso ordenamento adotou expressamente o princípio no art. 1.784: Aberta a sucessão, a herança transmite-se, desde logo, aos herdeiros legítimos e testamentários.

Porém, no art. 1.804, e sobretudo no seu parágrafo único, há uma importante ressalva: art. 1.804. Aceita a herança, torna-se definitiva a sua transmissão ao herdeiro, desde a abertura da sucessão. Parágrafo único: A transmissão tem-se por não verificada quando o herdeiro renunciar a herança.

Tem-se, portanto, que o art. 1.804, parágrafo único, mitiga o princípio da saisine, pois considera que não houve transmissão caso tenha havido renúncia da herança. Anote-se, em tempo, que essa ressalva, segundo entendemos, diz respeito somente à renúncia abdicativa, pois na renúncia translativa há, inequivocamente, transmissão anterior da herança.

Idêntica conclusão não poderia resultar da leitura do Código Bevilacqua, pois, ainda que tenha acolhido o princípio da saisine no seu art. 1.572, não existe correspondente ao parágrafo único do art. 1.804 do Código Civil de 2002.


V – NECESSIDADE DA OUTORGA UXÓRIA NA RENÚNCIA DA HERANÇA:

Verificado que a herança é bem imóvel, que a sua renúncia é uma forma de alienação e que nosso ordenamento acolheu o princípio da saisine de forma mitigada, pode-se obter algumas ilações relevantes para os propósitos do presente trabalho.

Assim sendo, na renúncia abdicativa prescinde-se de outorga uxória qualquer que seja o regime de bens adotado pelos cônjuges, pois, não se verificando a transmissão da herança, não há qualquer ato de alienação por parte do renunciante.

Na renúncia abdicativa simplesmente não há aceitação, de sorte que não há propriamente uma renúncia. O que o outro cônjuge pode ter é uma mera expectativa de direito, condicionada à aceitação do herdeiro, ao seu livre arbítrio.

Solução diversa ocorre quando a renúncia é translativa, já que nela ocorre indubitavelmente a transmissão da herança, que passa a fazer parte do patrimônio do herdeiro.

Por isso, quando a renúncia é translativa deve-se excogitar qual o regime de bens adotado pelos cônjuges Então, insistindo na idéia de que a renúncia é ato de alienação de bem imóvel, nota-se que a outorga uxória é desnecessária apenas no regime da separação de bens e no regime da participação final nos aqüestos, neste último quando houver no pacto antenupcial autorizando a livre disposição dos bens imóveis particulares. Nos demais regimes a outorga uxória é imprescindível.


VI – CONSEQUÊNCIAS PRÁTICAS:

Diversas consequências práticas podem ser apresentadas a partir das conclusões até aqui feitas, valendo destaque as que doravante se apresentam.

Com baliza no art. 1.649, em primeiro lugar pode-se dizer que a falta de outorga uxória, quando necessária, gerará a anulabilidade do ato. O outro cônjuge poderá pleitear a sua anulação no prazo de 2 (dois) anos depois de terminada a sociedade conjugal [12].

A legitimidade para esta ação é do cônjuge a quem cabia conceder a autorização, ou de seus herdeiros, como reza o art. 1.650.

Por outro lado, sempre que necessária a outorga uxória e o cônjuge negá-la sem motivo justo, o outro cônjuge pode pedir ao juiz o suprimento da autorização. Idêntica solução ocorre quando seja impossível ao cônjuge conceder a outorga. É o que dispõe o art. 1.648.


VII – CONCLUSÕES:

De tudo que se expôs até o presente momento, pode-se elencar as seguintes conclusões:

1) a herança é bem imóvel e sua renúncia importa em ato de alienação;

2) a renúncia da herança pode ser abdicativa ou translativa, sendo que nesta há a transmissão da herança, mas naquela não há;

3) a aceitação da herança pode ser tácita; após a aceitação a renúncia só pode ser translativa, pois evidentemente houve anterior transmissão ao patrimônio do herdeiro;

4) adotou o direito pátrio o princípio da saisine, de maneira que a transmissão da herança aos herdeiros é automática com a morte de seu autor;

5) o princípio da saisine, contudo, foi mitigado pelo art. 1.804, parágrafo único, do Código Civil, de forma que a transmissão da herança não é automática se houver renúncia abdicativa;

6) pelo novo Código Civil, a alienação de bens imóveis independe de autorização do outro cônjuge, desde que o regime seja o da separação de bens ou, sendo da participação final nos aqüestos, desde que haja convenção autorizando a livre disposição de bens imóveis particulares;

7) a mitigação do princípio da saisine e a dispensa de outorga uxória nos casos acima apontados são duas importantes inovações trazidas no bojo do novo Código Civil.

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8) quando a renúncia for abdicativa, prescinde-se da outorga uxória para renunciar à herança, qualquer que seja o regime de bens;

9) quando a renúncia for translativa, a outorga uxória só é necessária no regime da comunhão universal, da comunhão parcial de bens e da participação final nos aqüestos, salvo se houver, neste último, convenção autorizando a livre disposição de bens imóveis particulares;

10) quando necessária a outorga, sua ausência gera anulabilidade do ato de renúncia, facultando ao outro cônjuge ação anulatória no prazo de 2 (dois) anos depois de terminada a sociedade conjugal;

11) pode-se suprir a outorga judicialmente quando o cônjuge negá-la sem motivo justo ou quando lhe for impossível concedê-la.


NOTAS

1 A herança não se confunde com o espólio, já que este é a denominação daquela sob a ótima jurídico-formal, de maneira que apenas o espólio, representando pelo inventariante, tem capacidade processual.

2 MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil (Direito das Sucessões). v. 6, 33ª ed., São Paulo: Saraiva, 1999, p. 38.

3 ITABAIANA DE OLIVEIRA, Arthur Vasco. Tratado de Direito das Sucessões. Vol. I, 4ª ed., São Paulo: Max Limonad, 1952, p. 104/5.

4 "Civil. Herança. Renúncia. A renúncia à herança depende de ato solene, a saber, escritura pública ou termo nos autos de inventário; petição manifestando a renúncia, com a promessa de assinatura do termo judicial, não produz efeitos sem que essa formalidade seja ultimada." (RSTJ 163/321)

5 BORGHI, Hélio. Da renúncia e da ausência no direito sucessório. Leud: São Paulo, 1997, p. 77.

6 Consequência prática dessa distinção é que na renúncia translativa, ocorrendo duas hipóteses de incidência diferentes, incidem dois impostos de transmissão de bens – um causa mortis, decorrente do princípio da saisine; outro inter vivos, decorrente da aceitação e posterior renúncia da herança. Nesse sentido:

"Herança. Renúncia translativa. Inocorrência face a ausência de menção ao destinatária da herança renunciada. Para haver a renúncia in favorem, é mister que haja aceitação tácita da herança pelos herdeiros que, em ato subsequente, transferem os direitos hereditários a beneficiário certo, configurando verdadeiro doação." (STJ, REsp 33698/MG, 3ª Turma, rel. Min. Cláudio Santos, j. 29/3/1994, DJU 16/5/1994 p. 11759, v.u.)

"Tributário. Direito a herança. Renúncia. Imposto de Transmissão. Código Civil (arts. 1.582 e 1.589). Se todos os filhos do autor da herança renunciam a seus respectivos quinhões, beneficiando a viúva, que era a herdeira subsequente, é incorreto dizer que a renúncia foi antecedida por aceitação tácita da herança. Não incidência do imposto de transmissão." (STJ, REsp 20183/RJ, 1ª Turma, rel. Min. Humberto Gomes de Barros, j. 01/12/1993, DJU 07/02/1994 p. 1131, maioria)

7 No sentido de que a renúncia é ato de alienação, ver VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil – Direito das Sucessões. 3ª ed., São Paulo: Saraiva, 2003, p. 36; WALD, Arnoldo. Direito das Sucessões. 8ª ed., São Paulo: RT, 1991, p. 26; e ITABAIANA DE OLIVEIRA, Arthur Vasco. op cit., p. 108; entre outros.

8 DINIZ, Maria Helena. Código Civil Anotado. 6ª ed., Saraiva: São Paulo, 2000, p. 266.

9 ZANNONI, Eduardo A. Derecho Civil – derecho de família. 2ª ed., Buenos Aires: Astrea, 1993, v. 1, p. 376.

10 CARLOS ROBERTO GONÇALVES, em arguta observação, esclarece que o regime da participação final nos aqüestos é contribuição original brasileira, sem nenhum correspondente alienígena, tendo apenas alguns pontos comuns com regime estabelecido pela lei que entrou em vigor em Quebec, em julho de 1970. (cf. Principais inovações no Código Civil de 2002. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 80). Ao contrário, JOSÉ ANTONIO ENCINAS MANFRÉ (Regime matrimonial de bens no novo Código Civil. Dissertação (mestrado), São Paulo: PUC, 2003, p. 104) expõe que esse regime é conhecido em outros países, como Alemanha, Espanha e França, e que suas origens remontam ao século XI, no direito franco, sob a denominação de conlaboratio.

11 MANFRÉ, José Antonio Encinas. op. cit., p. 10.

12 Trata-se de prazo decadencial, porque disposto na parte especial do Código, conforme anota CARLOS ROBERTO GONÇALVES, op. cit., p. 32. Aliás, o Código Civil de 2002 adotou integralmente o critério científico de AGNELO AMORIM FILHO, como observa CHARLES ANDRADE FROEHLICH em excelente artigo publicado (cf. Prescrição e decadência no novo Código Civil (2002) Um novo olhar sobre o critério científico de distinção a partir da classificação quinária das ações. Jus Navigandi, Teresina, a. 8, n.º 238, 2 de março de 2004, www.jus.com.br).

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Sobre o autor
Denis Donoso

Mestre em Direito Processual Civil pela PUC/SP. Membro efetivo do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP). Professor da Faculdade de Direito de Sorocaba (Fadi) e da Faculdade de Direito de Itu (FADITU). Coordenador do curso de pós-graduação "lato sensu" da Faculdade de Direito de Itu (FADITU). Professor convidado nos cursos de pós-graduação da Escola Superior da Advocacia de São Paulo (ESA/SP) e da Escola Paulista de Direito (EPD). Advogado e consultor jurídico.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DONOSO, Denis. Da necessidade da outorga uxória na renúncia da herança face aos regimes de bens do Novo Código Civil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 335, 7 jun. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5305. Acesso em: 23 dez. 2024.

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