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A teoria jurídica fundamental:

algumas especulações acerca do conceito de Direito (em linhas propedêuticas)

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13/06/2004 às 00:00
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4. Os Diferentes Enfoques acerca do Direito: Dogmática e Zetética

Como tivemos oportunidade de referir na Introdução deste livro, o direito pode ser enquadrado como um conhecimento cultural. Isto posto, verifica-se como construção do intelecto humano e variável, portanto, de acordo com o agrupamento social em que ele está inserido.

Em verdade, o problema gnoseológico do direito perpassa por dois enfoques distintos: o dogmático e o zetético. Compreenderemos, agora, um pouco mais acerca destes dois planos compreensivos acerca do fenômeno jurídico.

O idealizador da distinção entre o modo de pensar dogmático e o modo de pensar zetético foi Theodor Viehweg, da Universidade de Mainz (AL), em um artigo intitulado "Systemprobleme in Rechtsdogmatik und Rechtsforschung"(1968) [55]. No Brasil, teve especial destaque por meio de alguns discípulos de Viehweg, em especial Tercio Sampaio Ferraz Jr, da Universidade de São Paulo [56], e João Maurício Adeodato, da Universidade Federal de Pernambuco [57].

O pensamento dogmático está vinculado, diz Viehweg, à opinião e à formação de opinião, enquanto que o zetético liga-se à dissolução das opiniões pela investigação e seu pressuposto básico é a dúvida [58]. A origem etimológica das expressões referenciadas traduz, por si só, tal ideário, como bem esclarece Ferraz Jr: "Zetética" vem de zetein, que significa perquirir, ao passo em que "dogmática" deriva de dokein, que vem de ensinar, doutrinar [59].

A dogmática jurídica corresponde ao campo das normas vigentes em um dado ordenamento legal: são respostas pré-concebidas, produzidas pelo aparato estatal, que monopoliza a criação normativa. Daí algumas expressões recorrentes, tais como "direito dogmático", "direito estatal" ou "direito oficial". Equivale, assim, ao direito positivo. Questões dogmáticas têm uma função diretiva explícita e estabelecem parâmetros fechados, configurando um dever-ser (uma prescrição de como deve-ser algo?).

Um advogado, um juiz ou um promotor não podem especular de maneira ilimitada acerca da solução mais justa ou adequada para pacificar uma controvérsia posta ao conhecimento do Judiciário. Deverão opinar e decidir com base em uma norma válida do ordenamento, que será o ponto de partida para a interpretação e aplicação do direito. A inegabilidade desses pontos de partida é, portanto, a principal característica do pensamento dogmático [60].

Por seu turno, o enfoque zetético suscita a dúvida, sugere perguntas que melhor refletem a questão analisada. Assim, na esfera do saber jurídico cumpre uma função especulativa muito importante, visando saber o que é uma coisa, configurando um ser (o que é algo?) ao contrário da perspectiva dogmática dirige-se a "possibilitar uma decisão e orientar uma ação". [61]

A análise histórica do direito, a visão jusfilosófica, a psicologia forense, a antropologia e sociologia do direito são, entre vários outras, possíveis abordagens zetéticas do fenômeno jurídico, posto que descrevem a realidade de maneira explícita, especulando infinitamente sobre os dados tomados. Não se cingem a dizer o que algo deve ser, porquanto os pontos de partida são parâmetros da dogmática.

O papel da zetética seria, então, o de examinar criticamente os pressupostos que dão forma à dogmática, fornecendo-lhe assim condições de revisar seus pontos de partida, adaptando-os e fundamentando-os racionalmente. Para um saber jurídico completo, portanto, não se trata de eliminar ou de absorver um enfoque no outro, mas de compreendê-los como necessários e complementares.

A compreensão do direito depende, assim, do tipo de pensamento ou enfoque que se adotar. Tome-se como exemplo uma hipotética disposição normativa encontrada na entrada de um Restaurante de luxo, em Copacabana: "é proibida a entrada de animais". E se acaso um cego acompanhado de seu cão guia desejasse acesso ao recinto? Em uma perspectiva dogmática, estaria impedido de entrar nesse ambiente. Um outro enfoque, não-dogmático, poderia levar a um mais profundo questionamento do problema, em que, dentre as várias conclusões possíveis, uma delas indicaria não ser razoável que tal proibição fosse estendida ao cego, permitindo-lhe assim, entrar no guiado pelo seu cão. Num enfoque dogmático o problema estaria resolvido pela máxima dura lex sed lex, e, por conseguinte, o cego estaria proibido de entrar no restaurante. De outra banda, operando-se um enfoque zetético, configurar-se-ia uma exceção ao comando normativo geral, de sorte a permitir a entrada no cego e seu "acompanhante" canino.


5. Direito e Justiça: Breve Nota Preliminar [62]

Dentro do núcleo comum de princípios, aceitos pelas diversas escolas, situa-se o reconhecimento de que a justiça é o valor fundamental do direito. Podem algumas correntes, como o positivismo jurídico, considerá-la um elemento exterior ao direito, em sentido estrito. Mas, não se trata de negação da justiça, que foi amplamente estudada por Kelsen, mas da recusa em incluí-la no campo da investigação jurídica, definida em termos estritamente formais. [63]

No mundo do conhecimento jurídico, o problema da justiça, porquanto valor e objetivo do direito, é analisado pela axiologia jurídica (teoria dos valores jurídicos).

A justiça não é um conceito meramente formal e vazio de conteúdo, como pretendem alguns autores. Pelo contrário, em oposição às relações sociais de dominação e de submissão, ela representa a exigência concreta de respeito à personalidade de cada homem e de todos os homens. A justiça quer que cada homem seja reconhecido e tratado por todos os outros como um ser que é senhor de seus próprios atos. As exigências concretas da justiça se alimentam desse princípio; elas voltam continuamente à consciência dos homens; realizam-se por um trabalho permanente; transformam o direito em vigor. Imanente e sempre renovada em nosso espírito, a idéia de justiça se encontra em todas as leis, mas não se esgota em nenhuma. É ela que dá sentido e significação a todo direito positivo.

A idéia de justiça que nós, ocidentais, temos é herdada, em grande parte, de Platão, Aristóteles e dos juristas romanos. Os dois primeiros deram a ela o sentido ético e formal, enquanto os romanos o sentido jurídico e material. A justiça - pensa Platão - é virtude suprema, harmonizadora das demais virtudes. A harmonia é sua nota fundamental. Mas Platão também a considera como equilíbrio.

Como equilíbrio e proporção a definiu Aristóteles. É clássica a distinção que formulou entre justiça distributiva e justiça comutativa (sinalagmática ou corretiva) em função do critério da proporção e da igualdade. A primeira, pelo critério da proporção, distribui os bens correspondentes ao mérito e às necessidades de cada um, enquanto a segunda, com base no princípio de igualdade, torna justas as trocas entre as pessoas. A distributiva dependeria do Estado, que pode distribuir bens e honras, levando em conta o mérito de cada um. Já a comutativa preside as relações entre os homens, equilibrando-as de modo que cada um receba o que merece, o que lhe é devido.

Em síntese, de Aristóteles acolhemos duas notas formais características da justiça: igualdade e proporcionalidade.

Vieram depois os romanos, que, com seu espírito prático, não cogitaram dos aspectos formais da justiça, mas de seus princípios, de seu conteúdo. A definição romana de justiça: "justiça é a constante e perpétua vontade de dar a cada um o que é seu" (Ulpiano) [64]. "Dar a cada um o que é seu", eis a regra fundamental da justiça dos romanos, complementada com outra: "não causar dano injusto a outrem" ou "a ninguém ofender".

Com tais princípios, o Ocidente, através de sua história, criou a sua idéia de justiça, formulando, em função de situações histórico-sociais, um conceito do justo, que, variando com a modificação dessas situações, não se alterou em sua substância. Em síntese, justiça é igualdade de tratamento jurídico, bem como proporcionalidade da pena ao delito, da indenização ao dano, do preço à coisa vendida, da prestação à contraprestação etc.

Mas o Ocidente não se limitou a construir apenas uma teoria da justiça, pois, desde os romanos, vem elaborando teorias jurídicas para atender a necessidades sociais com o objetivo de legitimar a ordem jurídica dominante. Não se satisfez, portanto, em formular os elementos componentes da idéia de justiça, por ser muito mais importante encontrar o meio de realizá-la historicamente. Desse propósito resultou outra questão: a da relação entre justiça e direito.

Já vimos que o direito é norma executável coercitivamente, enquanto a justiça é finalidade, ou melhor, exigência moral de realizá-la no meio social (nem sempre atendida), valor, que pode ou não influir no legislador, apesar de dever influí-lo. A diferença, portanto, que existe entre direito e justiça é semelhante à que há entre ideal e realidade (fato). A justiça não é coercível, enquanto o direito é; a justiça é autônoma, pois não é imposta à nossa consciência, brotando nela como os demais ideais e valores, sendo, assim, valor moral, enquanto o direito é heterônomo, por termos a consciência de nos ser ele imposto pela sociedade (costumes) ou pelo poder público (legislação). A justiça é a meta a ser atingida pelo direito e, desta forma, distingue-se deste como o "meio" da "finalidade". É critério das leis, das condutas e das sentenças judiciais.

Mas, apesar de não se confundir com o direito, a justiça desempenha tríplice papel em relação ao mesmo: (i) meta do direito; (ii) critério capaz de julgá-lo e de aperfeiçoá-lo; (iii) fundamento do direito histórico. Torna-o problemático e revela, quantas vezes, a sua imperfeição, injustiça e desumanidade. O direito é um fato cultural, cujo "sentido" consiste em achar-se sempre a serviço da justiça.

Um conceito muito caro à justiça é o de eqüidade. Como afirma Nader, em Ética à Nicômaco, "Aristóteles traçou, com precisão, o conceito de eqüidade, considerando-a ´uma correção da lei quando ela é deficiente em razão da sua universalidade´ e comparou-a com a ´régua de Lesbos´ que, por ser de chumbo, se ajustava às diferentes superfícies: ´A régua adapta-se à forma da pedra e não é rígida, exatamente como o decreto se adapta aos fatos´". [65]

Na busca de uma necessária conciliação entre segurança jurídica e justiça, a substancialidade desta pode ser captada pelo intérprete legal, ainda que vinculado às leis vigentes, no sentido de conferir melhor valoração a um caso concreto. Assim, a eqüidade consiste na possibilidade de o juiz, devidamente autorizado por lei, julgar determinado caso com plena liberdade, circunstância na qual inocorre uma simples adaptação da norma ao caso concreto, mas a elaboração da norma e sua correta aplicação. [66]


6. Referências

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Sobre o autor
Gustavo Rabay Guerra

Mestre em Direito Público pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), doutor e pesquisador em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília (UNB), professor do Centro Universitário de Brasília (UNICEUB) e advogado em Brasília.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GUERRA, Gustavo Rabay. A teoria jurídica fundamental:: algumas especulações acerca do conceito de Direito (em linhas propedêuticas). Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 341, 13 jun. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5329. Acesso em: 19 dez. 2024.

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