INTRODUÇÃO
Cediço dizer que se vive, nos dias atuais, em constante mutação social. A velocidade propiciada pelos meios de comunicação, cada vez mais eficientes, tornam sempre necessárias novas perspectivas e adequações sociais, pois o mundo não mais tem desejo de “esperar” por mudanças: as mudanças devem ser feitas aqui e agora.
O atual estágio de nossa sociedade, que reclama por respostas céleres às suas demandas, repercute em todas as áreas do setor público, daí não se excluindo o Poder Judiciário. A sociedade exige que a Jurisdição lhe dê acesso amplo e que a ação reclamada seja, além de efetiva, também célere.
Além das decisões judiciais, o Poder Judiciário é instado a demonstrar sua sensibilidade às modificações sociais. A justiça deve estar “antenada” com a evolução do cotidiano.
E nesse cenário de constante modificação social, avulta o papel das mutações constitucionais, que podem ser conceituadas como espécie de mudanças informais na Constituição que alteram, dentro da observância de regras de hermenêutica, o sentido de normas constitucionais, mas sem alteração do seu texto escrito.
Tal paradigma de velocidade do mundo contemporâneo acaba por ser o combustível que faz avultar a questão da mutação constitucional dentro do Poder Judiciário brasileiro, que atua cada vez mais para atender a sua clientela, que exige serviços rápidos e também efetivos.
Cresceu, diante de tal panorama, o chamado ativismo judicial, de onde se tiram decisões criativas, mas que podem ser até mesmo contrárias às leis, ainda que tenham uma justificativa. Em síntese, o ativismo judicial em análise que deveria se evitar é aquele que pode ser expresso pelo seguinte brocardo: os fins justificam os meios.
Vê-se assim que a pressa acaba por fomentar a criação de teorias que podem desvirtuar o real papel que deve a mutação constitucional propiciar: mudanças reais da sociedade brasileira, que tornam premente a alteração de entendimento sobre questões constitucionais.
E de se dizer que essas escolhas, além de levar em conta a opinião de seus destinatários, devem também considerar as regras do jogo, mediante a realização de mudanças possíveis (legais) dentro do que possibilita o sistema jurídico.
Por outro lado, não se pode olvidar que a concepção das mutações constitucionais objetivou algo positivo, que era evitar o engessamento das normas constitucionais dentro da realidade.
Ademais, de se ter em mente que as mutações constitucionais foram verificadas dentro da prática constitucional, que permitiu detrair que quando há mudança de interpretação fundada pela realidade social, há, de fato, alteração de sentido, que pode assim ser considerada como certa alteração, ainda que só de sentido.
Modernamente, concebe-se o fenômeno da mutação constitucional como uma espécie de Poder Constituinte, denominado Poder Constituinte difuso “in casu”. Seus defensores entendem que a mudança de sentido dentro de interpretações possíveis faz com que o Poder Judiciário (especialmente o Supremo Tribunal Federal) acabe por alterar verdadeiramente a Constituição, o que motiva a adoção, assim, de mutação constitucional como sinônimo de Poder Constituinte difuso.
No entanto, prima facie, tal visão parece violar a Constituição Federal, eis que há alteração da norma sem o devido processo legislativo, o que se agrava ainda pela competência da própria Constituição de atribuir ao Supremo, basicamente, a última palavra sobre aquilo que é constitucional ou não. Ou seja: o Supremo, além de julgador, seria também legislador.
Além de violar a própria força normativa e supremacia da Constituição, a criação de normas pelo Supremo também viola o princípio democrático, eis que os juízes não possuem o necessário grau de representatividade popular para que possam extrair a vontade dos cidadãos. De fato, não há a necessária representação indireta, que legitima popularmente a criação das normas jurídicas.
Além do próprio sistema jurídico vedar a criação de normas jurídicas gerais e abstratas pelo Poder Judiciário, justificada a impossibilidade pela consagração da Teoria de Separação dos Poderes, referida vedação, por outro lado, acaba por respeitar o princípio democrático, pois reserva ao legislativo o mister de ordenar normativamente quais são os comportamentos esperados pela sociedade.
Ocorre que o respeito ao princípio democrático não exige apenas uma atuação passiva do Poder Judiciário. O princípio democrático também reclama a participação social em todas as decisões estatais, e entre elas estão as decisões soberanas emanadas pelo Estado-juiz.
Para a consagração da participação popular democrática nas decisões, melhor meio e caminho mais seguro para vedar intromissões indesejadas é possibilitar, por meio da teoria discursiva, a inserção de teses razoáveis, além daquelas trazidas pelas partes, para que o discurso contido na decisão abarque também pensamentos divergentes.
Lógico que tal proceder deve ser visto dentro da lógica e racionalidade, pois as teses a serem analisadas, afastadas ou acolhidas, sempre devem ser pertinentes ao tema tratado.
A teoria discursiva busca não a redundância ou atravancamento do Poder Judiciário, mas apenas objetiva alcançar o consenso, que traz a pacificação social, e tudo da forma mais democrática possível.
A sociedade brasileira, especialmente neste momento de total e completa insegurança institucional, exige por mudanças. A crise das instituições políticas atinge não só ao Poder Executivo e Legislativo, mas também ao próprio Judiciário.
Com efeito, em nosso atual sistema, qualquer problema institucional porque passe algum Poder diverso do judiciário acaba por refletir neste, que, fatalmente, deverá decidir algo sobre determinado problema, isso diante da premente necessidade de judicialização das questões políticas ainda que mais comezinhas.
Instado a se manifestar nesses casos, o Poder Judiciário diz o direito, e acaba por ter a responsabilidade social de ser o último recurso, de ter a palavra final, sobre determinado assunto litigioso. Em razão de toda judicialização por que passa nossa política pátria, fomenta-se na consciência da população que o Poder Judiciário seja, de fato, a última esperança de um povo sofrido, tanto pelas precárias condições de vida, quanto pela falta de acesso ou proteção do Poder Público, que se afunda cada vez mais na mazela da corrupção e dilapidação do patrimônio público.
Face ao conceito propagado pela mídia do princípio da igualdade, o povo também quer que suas demandas sejam conhecidas e tenham o mesmo grau de qualidade daquelas que tanto se vê nos noticiários. A população em geral, passando a ter noção do que a igualdade lhes propicia, ainda que formalmente, agora exige que também lhe seja concedido o mesmo tratamento jurídico que sempre é mostrado pela mídia, onde a resposta efetiva e dura mostra um Poder comprometido com a correção e exatidão.
Portanto, para esta nova clientela, além da celeridade, que demanda respostas quantitativas, clama-se por mudanças estruturais que impliquem em real mudança qualitativa.
Ocorre que tal mudança qualitativa não pode cair na tentação de ser resguardada a efetividade como razão primeira, e isso ainda antes daquilo que seja jurídico (legal ou normativo). Assim, não se pode cair na tentação do criacionismo, ou mesmo no ativismo judicial, mas da implementação da participação mediante a consagração do principio discurso democrático.
Não se pode olvidar, por outro lado, que o Judiciário permanece insensível aos reclames sociais. A seu modo, a resposta está sendo dada. Contudo, o ativismo parece conduzir ao caminho contrário do consenso. A sociedade não quer que a resposta rápida atropele seus direitos e garantias, pois, quase sempre, os fins não justificam os meios.
O que a sociedade quer e merece é a democracia real, efetiva e participativa, e isso em todos os Poderes do Estado.
SEÇÃO 1: MUTAÇÕES CONSTITUCIONAIS
Impende inicialmente salientar que a Constituição, enquanto documento fundamental da sociedade a qual rege, pode ser modificada por meio de processo formal ou informal. Os tipos de modificação formal são conceituados como a emenda e a revisão.
Por sua vez, o processo informal de modificação constitucional se dá quando há ocorre a chamada mutação constitucional, que, nos dizeres do jurista José Afonso da Silva, consiste num processo não formal de mudanças das Constituições rígidas, por via da tradição, dos costumes, de alterações empíricas e sociológicas, pela interpretação judicial e pelo ordenamento de estatutos que afetem a estrutura orgânica do estado[1].
Com efeito, embora a Constituição seja dotada de certa estabilidade, especialmente em razão da segurança jurídica que dela se espera e ainda por ser ela o fundamento de validade do sistema jurídico, tal estabilidade não pode ser causa de “fossilização do sistema”, o que demanda a atualização diante de uma realidade social orgânica e dinâmica.
Pensada em um sistema dentro da normalidade, a mutação como mecanismo informal de alteração não origina quaisquer alterações no texto da Constituição, que permanece íntegro[2].
Nos tempos atuais, fato é que a realidade social está, em muito, mais rápida e em constante evolução, o que faz surgir certas novas necessidades de proteção, tornando a demanda constitucional muito maior do que a que fora pensada pelo seu legislador constituinte.
Nesse sentido uma constituição é um organismo vivo, submetido à dinâmica da realidade social, e que, portanto, não se esgota por meio de fórmulas fixas e predeterminadas[3].
Assim, hoje, a mutação constitucional já é vista como realidade e aceita como uma própria necessidade, eis que não está a se tratar de uma mudança no texto formal, mas sim em uma alteração da interpretação de um dispositivo constitucional.
De fato, conforme assevera Bullos (2010, p.118), o fenômeno pelo qual os textos constitucionais são alterados sem revisões ou emendas, sendo que:
O fenômeno das mutações constitucionais, portanto, é uma constante na vida dos Estados. As Constituições, como organismos vivos que são, acompanham o evoluir das circunstâncias sociais, políticas, econômicas, que, se não alteram o texto na letra e na forma, modificam-no na substância, no significado, no alcance e nos seus dispositivos[4].
O primeiro estudo do fenômeno, ainda que possa ter nascido como realidade anteriormente, se deu por parte da doutrina alemã que constatou alterações que o Reich teria implementado mediante alteração do funcionamento e concepções das instituições do Estado sem a realização de qualquer reforma do texto da constituição.
Em nosso país, atualmente, e sem a pretensão de esgotar o tema, as mutações constitucionais podem ocorrer quando há mudança de interpretação em suas diversas modalidades e métodos; quando há construção constitucional, que seria quando se realiza uma interpretação objetivando suprir uma deficiência constitucional; as praxes constitucionais, que seriam convenções usos e costumes; e influências de grupo de pressão, que seria a hipótese em que certos momentos da vida constitucional dos Estados, os grupos de pressão podem influenciar na interpretação da carta maior[5].
Contudo, ainda que vista como uma realidade e como uma necessidade inexorável da manutenção saudável da própria Constituição, a ocorrência da mutação constitucional sem limites não está imune de críticas, eis que a interpretação do texto de forma diversa do que o mesmo esteja dizendo é forma clara e inequívoca de violação do texto formal.
Se por um lado, busca-se certo dinamismo, por outro, busca-se certa estabilidade, tensão que acaba por acarretar efeitos indesejados:
Sem embargo, o tema das mutações constitucionais é complexo, na medida em que se situa na confluência entre dois imperativos importantes do constitucionalismo democrático. Por um lado, existe a necessidade de dotar a Constituição de estabilidade, que é associada ao seu caráter rígido, o qual demanda um procedimento específico e difícil para alteração dos seus dispositivos. Do outro, há a necessidade de se conferir um certo dinamismo à Constituição, a fim de que ela possa se adaptar mais facilmente às mudanças sociais, sem que seja necessário recorrer, a cada momento, ao processo de reforma constitucional, que muitas vezes é excessivamente difícil, além de provocar efeitos colaterais indesejados, como o próprio retalhamento do texto magno[6].
Definida como mutação constitucional, a alteração do sentido sem alteração do texto é uma problemática real. Ingo Wolfgang Sarlet (2012, p. 136) aduz:
A problemática da assim chamada ‘mutação’ constitucional, situa-se, como já adiantado no item introdutório ao fenômeno da mutação constitucional, visto que ao lado das competências formais de alteração constitucional, no âmbito da reforma constitucional, existe a possibilidade de mudança do conteúdo e do alcance das normas constitucionais pela via informal, isto é sem que seja alterado o texto da Constituição. Tal processo foi originalmente identificado pela doutrina alemã sob o rótulo da Verfassungswandlung [...][7].
Tradicionalmente, nos exatos termos do que dispõe o artigo 2º da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro[8], nosso costume jurídico pátrio só admite a revogação de uma lei pela entra em vigor de outra de igual ou superior hierarquia.
Nessa esteira, tradicionalmente falando, a alteração do sentido do texto em desconformidade com o que está literalmente redigido não pode ocorrer, ao menos formalmente.
Contudo, conforme ainda ensina o supramencionado autor Ingo Wolfgang Sarlet (2012, p. 147):
[...] a mudança de sentido de uma norma jurídica não se trata de um problema exclusivamente constitucional, pois o déficit de sinergia de um texto normativo com a realidade fática que busca captar e regular não se revela apenas ao nível do direito constitucional, tratando-se, pelo contrário, de um problema científico do direito como um todo, embora, no caso da mutação constitucional, tenha alcançado uma dimensão particularmente relevante e dotada de aspectos peculiares em função da especial posição hierárquica e função da constituição da ordem jurídica[9].
O costume, a prática, não pode derrogar a lei. A interpretação, do mesmo modo, não pode ter o condão de ir contra o sentido de um texto normativo, de modo a contrariá-lo. Costume que assim se porta é ilegal ou inconstitucional, conforme o caso.
Ademais, [...] problemática a possibilidade de reconhecimento de um costume contrário ao sentido literal da constituição, o que, todavia, há de ser analisado no item sobre os limites da mutação constitucional[10].
Dentro da problemática da própria mutação, pode, hipoteticamente, ocorrer da mesma ser compatível com a realidade social, mas em contrariedade com o texto constitucional (costume versus texto normativo constitucional). E tal realidade pode ser reconhecida como válida pela Corte Constitucional, ainda que em detrimento do texto.
Do mesmo modo, pode ocorrer da mutação ser um equívoco de interpretação, ocorrido pela Corte Suprema sem que tal tenha respaldo na classe jurídica nacional.
No caso constitucional, só pode haver mutação pela via da interpretação, que ocorrem sempre que se altera o significado e alcance do texto constitucional sem que se efetue qualquer alteração textual[11].
A ocorrência de alteração do significado sem alteração de texto é conhecida com mutação constitucional.
Por outro lado, podem ocorrer mutações em descompassou com o texto escrito da constituição. Ainda como leciona Ingo Wolfgang Scarlet (2012, p. 149), nesses casos:
[...] A mutação constitucional poderá eventualmente ocorrer de modo a violar o sentido literal da constituição escrita, ou seja, tanto pela interpretação judicial, quanto pela atuação do legislador infraconstitucional e por meio de um costume ou prática por parte dos poderes constituídos, é possível, nesse sentido, falar em uma mutação inconstitucional[12].
E o maior problema é que:
Na prática mudanças manifestamente inconstitucionais (pelo menos no sentido, reitere-se, de violação da constituição escrita) podem ainda assim prevalecer, seja pela falta de controle (especialmente no âmbito do controle de constitucionalidade) de tais mudanças, seja pelo fato de tal controle ser o mesmo inviável em algumas hipóteses.[13]
Verifica-se, assim, a possibilidade de ocorrência de mutações inconstitucionais, que deveriam, em tese, ser solucionadas pelo próprio sistema, o que, também, pode não ocorrer, tornando o que deveria ser uma solução em verdadeiro problema.
As mutações que contrariem a Constituição podem certamente ocorrer, gerando mutações inconstitucionais. Em um cenário de normalidade institucional, deverão ser rejeitadas pelos Poderes competentes e pela sociedade. Se assim não ocorrer, cria-se uma situação anômala, em que o fato se sobrepõe ao Direito. A persistência de tal disfunção identificará a falta de normatividade da Constituição, uma usurpação de poder ou um quadro revolucionário. A inconstitucionalidade, tendencialmente, deverá resolver-se, seja por sua superação, seja por sua conversão em Direito vigente[14].
Contudo, ainda que a inconstitucionalidade eventualmente ocorrida nas mutações devesse ser solucionada por sua superação ou conversão em Direito Vigente, existe a possibilidade de sua permanência, criando uma situação anômala. Necessitaria assim haver a rejeição pelo Poder Competente, que, em última instância, seria a Corte Constitucional.
Nesse sentido, importante as conclusões de Bernardo Gonçalves Fernandes (2014, p. 157):
Tais pressupostos, então, também nos obrigam (em tom crítico) a repensar a prática constitucional levada a cabo pelo Judiciário, em especial pelas Cortes Constitucionais. O uso difundido da técnica de ponderação de valores acaba por transformá-las em uma espécie de Poder Constituinte anômalo, permeado por irracionalismos metodológicos e decisionismos subjetivistas. A compreensão adequada da atividade jurisdicional, como discurso de aplicação – e não criação – das normas contribui, ainda, para o problema das mutações constitucionais informais[15].
E como dito, a mutação constitucional pode ocorrer por vários fatores, não se limitando ao papel realizado tão-só pelo Poder Judiciário. Contudo, é aí que o problema se agrava: pode o Poder Judiciário criar interpretações contrárias à Constituição ou mesmo reconhecer como válidas criações outras que, majoritariamente, são reputadas como algo inconstitucional pela maior parte da classe jurídica nacional. Contudo, para serem reputadas válidas, as mutações constitucionais processam-se lentamente. Para serem constitucionais, não podem gerar deformações maliciosas nem subversões traumatizantes[16].
Assim, para serem consideradas legítimas, as mutações devem observar restritamente todas as regras hermenêuticas, pois:
[...] CANOTILHO sustenta que uma rigorosa compreensão da estrutura normativo-constitucional conduz, em princípio, à exclusão de mutações constitucionais operadas nesta hipótese, o que não significa que a Constituição deva ser compreendida como um texto estático e rígido, indiferente às alterações da realidade constitucional. Segundo o constitucionalista português, as mutações constitucionais silenciosas poderiam ser consideradas um ato legítimo quando decorrentes da ‘permanente adequação dialética’ entre o programa normativo e a esfera normativa e desde que não sejam incompatíveis com os princípios estruturais (políticos e jurídicos) da Constituição. O mesmo não se pode dizer no caso de uma interpretação constitucional criadora que, com base na força normativa dos fatos, pretenda ‘constitucionalizar’ uma alteração na Lei Maior inequivocamente contraditória com o seu texto[17].
Diante da inércia do Poder Legislativo em bem regular as situações da vida, cresce no cenário jurídico nacional o denominado ativismo judicial, onde o Poder Judiciário realiza interpretações objetivando suprir a falta de um comando normativo necessário à solução dos problemas que lhe são apresentados.
Contudo, tal atividade judicial, mesmo pensada em solucionar problemas, pode, por outro lado, criar inconstitucionalidades e ilegalidades. Assim:
Há, contudo, que se adotar uma certa cautela nesta questão, para não converter nenhum dos poderes do Estado em senhor da Constituição, titular de algum suposto poder constituinte permanente, que lhe permita reelaborar a Lei Maior de acordo com os seus valores ou preferências.[18]
Dentro do panorama constitucional, a criação de interpretações contrárias ao texto, decidido o caso concreto e fazendo lei entre as partes ou para todos, pode criar mais problemas do que soluções. Aí é que se deve pensar o papel do ativismo judicial.
SEÇÃO 2: ATIVISMO JUDICIAL
O ativismo judicial tem gerado grandes polêmicas na doutrina e jurisprudência nacionais, e, especialmente, no que se refere à origem e abrangência.
Em sua origem, têm-se as seguintes sustentações:
Para o Luiz Roberto Barroso o ativismo judicial surgiu na Suprema Corte americana quando da decisão da segregação racial. Para Carlos Eduardo de Carvalho, o termo surgiu na Bélgica, em 1916. Segundo a professora Vanice Regina Lírio do Valle, o termo ativismo judicial foi citado pela primeira vez pelo jornalista americano Arthur Schlesinger[19].
Já de início, na origem, o tema se revela bastante controverso, não havendo assim uma univocidade de entendimento acerca do nascedouro da denominação e do seu próprio surgimento.
Ainda que seja um tema bastante controverso e pouco consensual, atualmente, o ativismo judicial tem se revelado cada vez mais comum, especialmente na realidade brasileira, haja vista a prolação de decisões judiciais sem critérios jurídicos e hermenêuticos previamente conhecidos, ainda que, após, tais decisões possam ser aceitas como corretas e/ou legítimas.
A consagração do ativismo judicial como realidade da justiça brasileira decorre especialmente de demandas sociais não satisfeitas pelo Poder Legislativo, fazendo com que o Judiciário assuma um papel na esfera de politização, seja no campo processual[20].
No Brasil, pode-se seguramente firmar que o ativismo judicial, como hoje é concebido, teve origem a partir da:
[...] redemocratização e assimilação cultura-jurídica da supremacia dos princípios e valores consagrados na CF/88. Assim a redemocratização fortaleceu e expandiu o Poder Judiciário, bem como aumentou a demanda por Justiça na sociedade brasileira [...][21].
Conceitualmente:
Entende-se por ‘Ativismo Judicial’ o papel criativo dos tribunais ao trazerem uma contribuição nova para o direito, decidindo sobre a singularidade do caso concreto, formando o precedente jurisprudencial, antecipando-se, muitas vezes, à formulação da própria lei.
A doutrina traz vários conceitos para o ativismo judicial. Entretanto, o Ativismo Judicial é uma postura, ou seja, é uma escolha de um determinado magistrado que visa buscar através de uma hermenêutica jurídica expansiva, cuja finalidade é a de concretizar o verdadeiro valor normativo constitucional, garantindo o direito das partes de forma rápida, e atendendo às soluções dos litígios e às necessidades oriundas da lentidão ou omissão legislativa, e até mesmo executiva[22].
Por sua vez, quanto a dimensão, importante os seguintes delineamentos:
Segundo Luis Machado Cunha, o ativismo judicial possui quatro dimensões: O ativismo contra- majoritário que significa a relutância dos tribunais em aceitar as decisões dos poderes democraticamente eleitos, o fortalecimento da jurisdição constitucional, bem como o poder judiciário atuando como legislador negativo. A segunda dimensão é chamada pelo autor de ativismo jurisdicional, que consiste na ampliação dos limites jurisdicionais do poder judiciário e na correção, modificação ou complementação de leis e atos administrativos. Como terceira dimensão o autor cita o ativismo criativo que segundo ele consiste na utilização da hermenêutica como forma de novos direitos ou afirmação jurídica de direitos morais e na hermenêutica concretista e princípio da proibição da proteção insuficiente, bem como na fundamentação em conceitos do pós-positivismo e do neoconstitucionalismo. E por fim o ativismo remedial que seria a imposição pelo Poder Judiciário de obrigações positivas aos poderes eleitos e na determinação de políticas públicas, criação ou remodelação de órgãos e regulamentações legais.[23].
As dimensões supramencionadas fornecem boa sistematização da ocorrência do ativismo judicial. A terceira dimensão do ativismo, denominado criativo, vale-se da hermenêutica para criar novos direitos ou afirmar direitos morais não cumpridos. Vale-se também da proteção insuficiente e de conceitos pós-positivistas e neoconstitucionalistas.
Já a quarta dimensão, denominado ativismo remedial, também ganha cada vez mais espaço, com a imposição de obrigações positivas aos poderes eleitos e determinação de políticas públicas.
De se ressaltar, ademais disso, que o maior problema acerca do ativismo, onde avulta sua incorreção reside nas duas primeiras dimensões: o ativismo contra-majoritário e o ativismo jurisdicional.
No primeiro caso, há relutância do Poder Judiciário em aceitar decisões dos poderes democraticamente eleitos, com atuação do Poder Judiciário como legislador negativo.
No segundo, há ampliação dos Poderes Jurisdicionais objetivando corrigir, modificar ou complementar leis e atos normativos.
Ainda que a terceira e quarta dimensões do ativismo possam ser adjetivadas de “mais moderadas”, em todos os casos, há inúmeras críticas acerca desse novo modo de atuação jurisdicional.
Em síntese, as duas principais críticas atuais são a falta de legitimidade democrática do Poder Judiciário para, em suas decisões, insurgir-se contra atos criados por poderes eleitos; e a utilização de ponderação de princípios, subjetivamente, para interpretação da Constituição como método utilizado para realização do ativismo judicial.
De fato, a utilização reiterada de princípios em detrimento das regras cria alto grau de abstração e subjetivismo, sem que haja certa e necessária segurança jurídica, pois tudo depende da interpretação casuística.
Citando Daniel Sarmento, Geórgia Carmona, em seu artigo já citado: A propósito do ativismo judicial: super Poder Judiciário?, bem pontua a crítica a respeito da fundamentação principiológica:
E a outra face da moeda é o lado E a outra face da moeda é o lado do decisionismo e do "oba-oba". Acontece que muitos juízes, deslumbrados diante dos princípios e da possibilidade de através deles, buscarem a justiça – ou que entendem por justiça -, passaram a negligenciar no seu dever de fundamentar racionalmente os seus julgamentos. Esta "euforia" com os princípios abriu um espaço muito maior para o decisionismo judicial. Um decisionismo travestido sob as vestes do politicamente correto, orgulhoso com seus jargões grandiloquentes e com a sua retórica inflamada, mas sempre um decisionismo. Os princípios constitucionais, neste quadro, converteram-se em verdadeiras "varinhas de condão": com eles, o julgador de plantão consegue fazer quase tudo o que quiser. Esta prática é profundamente danosa a valores extremamente caros ao Estado Democrático de Direito. Ela é prejudicial à democracia, porque permite que juízes não eleitos imponham a suas preferências e valores aos jurisdicionados, muitas vezes passando por cima de deliberações do legislador. Ela compromete a separação dos poderes, porque dilui a fronteira entre as funções judiciais e legislativas. E ela atenta contra a segurança jurídica, porque torna o direito muito menos previsível, fazendo-o dependente das idiossincrasias do juiz de plantão, e prejudicando com isso a capacidade do cidadão de planejar a própria vida com antecedência, de acordo com o conhecimento prévio do ordenamento jurídico[24].
E dentre todos os problemas imagináveis na atuação no sentido de se vergar a norma em nome de um princípio, avultam as ofensas aos princípios democrático, separação dos poderes e da segurança jurídica.
Como apontou Daniel Sarmento, há diluição da fronteira entre as funções judicias e legislativas, há diminuição de previsibilidade do que é direito, e há ofensa à democracia em razão da imposição pelo magistrado de suas convicções pessoais acerca do que deveria ser considerado como norma.
Não se pode olvidar dos posicionamentos favoráveis à prática do ativismo judicial, inclusive, no sentido de se buscar uma postura ativista no sentido de existir uma inércia não razoável do legislador impedindo o exercício de direitos fundamentais[25].
Contudo, no intuito de esclarecer o objeto do presente trabalho monográfico, impende, neste momento, ressaltar que o conceito já apresentado de ativismo deve ser melhor complementado pela seguinte diferenciação proposta por Lênio Streck:
Se verificarmos bem, veremos que a judicialização é contingencial. Ela não é um mal em si. Ocorre na maioria das democracias. O problema é o ativismo, que, para mim, é a vulgata da judicialização. Enquanto a judicialização é um problema de (in)competência para prática de determinado ato (políticas públicas, por exemplo), o ativismo é um problema de comportamento, em que o juiz substitui os juízos políticos e morais pelos seus, a partir de sua subjetividade (chamo a isso de decisões solipsistas)[26].
Nessa passagem, Lenio Streck procurava estabelecer diferenciação entre ativismo e judicialização. Esta, ocorre quando o Estado brasileiro é ineficiente em solucionar suas políticas públicas. Por sua vez, como um problema de comportamento, ativismo judicial é a substituição pelo juiz dos juízos morais e políticos em favor das suas. Busca-se usar do sistema de decisão, em primeiro, para aplicar o sentimento moral e político do julgador em detrimento da aplicação do que está juridicamente estabelecido na lei, ainda que com ela, moralmente ou politicamente, o magistrado não concorde.
No âmbito constitucional, mais especificamente dentro da teoria constitucional, existem as concepções procedimentalista e substancialistas. Em ambas, dentre outros temas, se discute o espaço adequado da jurisdição constitucional.
Na concepção substancialista, de matiz substantiva, se dá mais ênfase aos direitos fundamentais e sua consagração, estando a constituição dirigente e o neoconstitucionalismo abarcados por essa concepção.
Por outro lado, a concepção procedimentalista sempre consagra em primeiro plano o princípio democrático, onde devem sempre ser valorizadas as liberdades de expressões e associação política.
Ainda dentro da concepção procedimentalista, busca-se evitar a constitucionalização de uma decisão futura, no campo da moral, econômico, político etc, pois não se quer possibilitar a supressão da deliberação das maiorias políticas no futuro[27].
Nesse sentido, pode-se assim dizer que o campo onde floresce o ativismo judicial, e onde possui fundamentos, é o da concepção substancialista. Por outro lado, a concepção procedimentalista busca conter o ativismo, tentando reconciliar a jurisdição constitucional com a democracia. Nesse sentido:
A obra de referência de Ely é o livro Democracy and distrust,139 publicado originariamente em 1980, mas que já se converteu num dos maiores clássicos da teoria constitucional norte-americana. Nesta obra, Ely busca reconciliar a prática do controle jurisdicional de constitucionalidade com a democracia. Para ele, o Poder Judiciário não deveria invalidar decisões legislativas recorrendo a valores substantivos, usados para atribuir sentido às cláusulas vagas de que é pródiga a Constituição norte- americana. A Constituição dos Estados Unidos é vista por Ely como uma norma cuja finalidade precípua é procedimental, destinando-se antes de tudo a viabilizar o autogoverno popular de cada geração. Portanto, as decisões fundamentais da sociedade devem ser tomadas por agentes eleitos pelo povo e não por juízes, que não devem ser concebidos como guardiões de direitos naturais, de princípios morais substantivos, das tradições ou de consensos sociais.140 Diante disso, Ely defende que, como regra geral, os juízes adotem uma posição autocontida (judicial self-restraint) no controle de constitucionalidade, apenas invalidando as leis quando for evidente a sua contrariedade à Constituição, sem se afastarem muito do texto constitucional. Essa regra, no entanto, não valeria para casos que envolvessem os pressupostos de funcionamento da própria democracia[28].
Mas mais sofisticada é a concepção procedimental de Jürgen Habermas, que, em apertada síntese, busca conciliar as duas principais tradições iluministas: a tradição constitucionalista liberal inspirada em Kant, que defende as liberdades individuais e a autonomia privada; e a tradição democrática inspirada em Rousseua, voltada para a defesa da soberania popular e autonomia pública do cidadão. Quer Habermans construir uma complementação mútua entre autonomia pública e privada, concebendo-as como co-originárias[29].
Ademais:
Na perspectiva habermasiana, a democracia não se identifica com o governo das maiorias. Ela não representa apenas uma forma de agregação de interesses individuais conflitantes, que permita a prevalência das posições que favoreçam ao maior número de pessoas. A democracia é deliberativa, baseada no diálogo social e nas interações travadas pelos cidadãos no espaço público. 145 É o embate entre argumentos e contra-argumentos no espaço público e nos fóruns oficiais que racionaliza e legitima o processo decisório democrático. Na deliberação, os diversos participantes podem expor os seus pontos de vista e criticar os argumentos oferecidos pelos demais, com liberdade e igualdade. Para que um contexto propício para essa troca de argumentos e contra-argumentos possa se instaurar, as garantias do Estado de Direito são fundamentais. Sem liberdade e sem igualdade — que o Estado de Direito deve assegurar — não há diálogo verdadeiro, e a deliberação perde o seu potencial legitimador e racionalizador.
Uma das suas premissas do pensamento habermasiano é a de que a legitimidade do Direito, nas sociedades plurais contemporâneas, não tem como se fundar em nenhuma concepção material. Para Habermas, o contexto de pluralismo faz com que “a fonte de toda a legitimidade” só possa repousar no processo democrático de produção normativa, 146 o qual deve garantir condições equânimes de inclusão na deliberação pública para todos os cidadãos. O Direito legítimo é apenas aquele em que os cidadãos sejam não apenas os destinatários das normas jurídicas, mas possam enxergar-se também como os seus coautores[30].
Impossível adotar quaisquer das dimensões do ativismo judicial sem que sejam feridos o princípio democrático, da segurança jurídica ou mesmo a separação dos poderes. A necessidade de tornar a Constituição cada vez mais efetiva, isso dentro da concepção substancialista, acaba por permitir ativismos judiciais cada vez mais permissivos contra as normas. Maquiavelicamente, o ativismo, na busca pela justiça, acaba por consagrar a máxima de que os fins justificam os meios.
No entanto, a Constituição da República Federativa do Brasil, em seu artigo 1º, consagra que o Brasil constitui-se em Estado Democrático de Direito[31]. E as palavras da Constituição não são inúteis. A democracia, ao lado do direito, é o valor mais importante de nossa República.
Ainda que se pense que o ativismo possa ser uma vertente do direito (como algo defensável juridicamente), no mínimo, ele viola ou violará o princípio democrático, eis que está ínsito para o ativismo, de algum modo, substituir o legislador em suas omissões.
Claro que, em não existindo norma ou diante de alguma inconstitucionalidade, a atuação visando corrigir a ausência normativa ou a ilegalidade estarão agasalhada pelo próprio sistema, não se constituindo tal em um ativismo.
O único e verdadeiro conceito de ativismo judicial que se pode detrair de tudo o que foi exposto é aquele no sentido de haver inovação/criação pelo magistrado de uma norma ainda não consagrada pelo direito, com a substituição da atividade inovadora do legislador. O juiz não pode inovar na ordem jurídica. Em nosso sistema, só o legislativo, democraticamente eleito, pode inovar na ordem jurídica.
Com efeito:
Destarte, sabendo ser impossível atingir um conceito uníssono de Justiça, a população elege seus representantes que, a partir de então, estão legitimados para positivar os valores éticos os quais são tidos como mais relevantes no tecido social. É aí que surge o problema da atuação criativa desmedida do Judiciário: este poder não foi investido pelo povo, detentor da soberania, para determinar quais as pautas axiológicas prevalecem no País. Não haveria, assim, legitimidade do Judiciário para infringir as regras criadas pelo poder competente tão somente porque essas regras desrespeitam o sentimento de justiça de um juiz individualmente considerado[32].
Face à tese defendida, não há espaço para o ativismo, pois cada ator deve fazer o seu papel, e se quer ser mais atuante, melhor ao Poder Judiciário buscar a celeridade na prestação jurisdicional do que entregar outra prestação jurisdicional sequer pensada por seus destinatários.
SEÇÃO 3: MUDANÇAS INFORMAIS NA CONSTITUIÇÃO
O próprio texto constitucional define a forma e em quais hipóteses podem ser alteradas suas disposições. Estes são os processos formais de reforma, onde há alteração do texto obedecendo às disposições constitucionais referentes ao devido processo legislativo de alteração.
Contudo, as alterações de sentido não se dão só por processos formais, mas também, como já explanado, por meio da mutação constitucional, que ocorre quando há uma evolução na situação de fato sobre o qual a norma incide, ou ainda por força de uma nova visão jurídica que passa a ser predominante na sociedade. Há mudança sem alteração do texto. Há mudança no sentido. Como a norma não se confunde com o texto, há atribuição de outro sentido, o que impende dizer que há certa alteração[33].
Ainda que a norma não seja propriamente o texto, há alteração do sentido e valores. Muda-se a semântica, objetivando fazer com que a letra tenha um novo e apropriado espírito, condizente com os valores atuais, assim:
Tais alterações na semântica normativa podem resultar:
a) do impacto de valorações novas, ou de mutações imprevistas na hierarquia dos valores dominantes;
b) da superveniência de fatos que venham modificar para mais ou para menos os dados da incidência normativa;
c) da intercorrência de outras normas, que não revogam propriamente uma regra em vigor, mas interferem no seu campo ou linha de interpretação; e
d) da conjugação de dois ou até dos três fatores acima discriminados”295. (apenas os grifos são nossos)
Vistas sob essa perspectiva, portanto, as mutações constitucionais são decorrentes – nisto residiria a sua especificidade – da conjugação da peculiaridade da linguagem constitucional, polissêmica e indeterminada, com os fatores externos, de ordem política, econômica, social e cultural, que a Constituição – pluralista por antonomásia –, intenta regular e que, dialeticamente, interagem com ela, produzindo leituras sempre renovadas das mensagens enviadas pelo constituinte[34].
Impende, no entanto, verificar se se pode dizer haver “alterações informais” na Constituição por conta da ocorrência da denominada mutação constitucional. Não se pode negar, contudo, que há situações em que se altera o sentido do texto, mas dentro de padrões semânticos racionais, e consagrados pela língua portuguesa. Ainda que se altere o sentido normativo já antes consagrado, não se pode cogitar de alterações que diminuam/neguem/alterem o sentido expresso no texto.
Com efeito:
No caso específico das Cartas Políticas, essas novas compreensões da fala constitucional mais não fazem do que exprimir o modo como os seus operadores, imersos em concretas situações hermenêuticas, vão transformando o direito legislado em direito interpretado, a compasso das alterações ocorridas no prisma histórico-social de concretização dos mandamentos constitucionais. Por isso, se por mutação constitucional se entender, apenas, a alteração do sentido de um texto em razão da modificação do contexto, então se pode afirmar que, a rigor, não há diferença substancial entre limites da interpretação constitucional e limites da mutação constitucional, porque não existe diferença entre mutações constitucionais e variações de interpretações constitucionais, não passando esses dois pares de expressões de vocábulos distintos com que nos referimos a uma só e mesma coisa, ou seja, às novas leituras – novas leituras, nada mais que isso – de um mesmo texto constitucional, em decorrência de uma causa comum, isto é, das transformações da realidade constitucional subjacente. [...]
Assentadas essas premissas, é de ter presente, também como problema de ordem geral e não apenas da experiência constitucional, em particular, a questão da legitimidade das mutações normativas, na medida em que, por exemplo, assim como no terreno da linguística a atribuição de novos significados a uma palavra equivale à criação de palavras novas, também no âmbito do Direito novas leituras de um texto velho implicam a criação de outras ordenações de conduta, dada a substancial distinção entre texto e norma, hoje tranquilamente aceita[35].
Pensando-se em mudança de sentido, mas dentre aqueles possíveis dentro de uma leitura semântica-gramatical, não se pode concluir pela alteração de texto, pois:
Por isso é que todos os juristas, e não apenas os intérpretes/aplicadores da Constituição, quando analisam os processos informais de criação do direito por via interpretativa, advertem, à partida, que uma coisa são as leituras que, mesmo novas, ainda se mantenham no espectro dos significados aceitáveis de um texto jurídico, e outra, bem distinta, são as criações arbitrárias ou sub-reptícias de novos preceitos, mediante interpretações que ultrapassam o sentido literal possível dos enunciados jurídicos e acabam por transformar os seus intérpretes em legisladores sem mandato.
Externando essa preocupação, Gomes Canotilho afirma que muito embora não se deva entender a Constituição como um texto estático e rígido, completamente indiferente às alterações da realidade constitucional – uma Carta Política textualmente cristalizada, diria António Cortês –, isso não significa entregar o seu texto à discrição dos intérpretes/aplicadores, liberando-os para leituras que, realizadas à margem ou além da fala constitucional, acarretem alterações não permitidas pela Constituição.[36]
Posicionando-se no sentido de que as alterações informais do sentido só possam ocorrer diante de uma nova leitura racional do texto constitucional, dentro de interpretações possíveis gramaticalmente, não se pode dizer que há propriamente mudança “informal” da Constituição, pois o que se muda é apenas o sentido da norma, e não o seu texto.
Há câmbio de valores subjacentes já contidos no texto. Impróprio, nesse sentido, dizer que tais interpretações constituam “mudanças informais na Constituição”, pois, como dito, não se muda o texto, mas apenas o sentido do texto.
Cediço que a Constituição só pode ser de fato alterada quando há alteração em seu texto, ou seja, formalmente. Mudar o sentido do texto dentro de interpretações cabíveis semanticamente não significa o mesmo que alterar a Constituição.
Se houverem alterações semânticas no sentido de inserir significações não cabíveis, de modo a criar palavras novas não existentes no texto, ou negando o sentido, ou ainda excluindo outros sentidos evidentes, aí sim se poderia cogitar em verdadeira mudança informal na Constituição.
Ocorre que alterar a Constituição sem obediência ao devido processo legislativo só ocorre em processos revolucionários ou de forma inconstitucional.
Assim, a expressão “mudanças informais na Constituição” só pode ser concebida como interpretação que altere o texto, o que, diante do sistema vigente, seria o mesmo que mutações constitucionais inconstitucionais.
Diante do sistema já consagrado, de que a alteração do texto constitucional expresso, escrito, só se pode dar mediante processo legislativo de emendas, e ainda onde são permitidas pela própria Constituição, revela-se impróprio cogitar haver mudanças informais na Constituição, eis que só se concebe da possibilidade de existirem mudanças formais, onde há clara alteração de texto e de sentido (e isso somente onde se é permitido).
Por outro lado, alterar o sentido da norma não é o mesmo que mudar informalmente a Constituição, eis que a possibilidade de escolha de outros valores que seriam possíveis e que poderiam ter sido anteriormente adotados, desde o início, revelam só a modificação de valores, o que é mutação constitucional, mas não uma mudança informal da Constituição.
Neste ponto, curial explicar: não há mudança da Constituição. Ela sempre continuou a mesma. O que muda é o sentido da norma, onde é possível, com a nova intepretação, chegar. Compatibilizam-se texto normativo e novos valores. Há certa abertura do texto para que novos valores sejam pela Constituição agasalhados, basicamente como ocorrem com as cláusulas gerais. Quando a cláusula geral incorpora determinado valor ou sentido, não se cogita em mudança da cláusula geral.
Assim, onde o valor pode ser agasalhado, é que há abertura da Constituição, mas não que existe a menor possibilidade de mudança informal da Constituição, sendo, assim, uma expressão absolutamente equivocada e descompassada com a realidade.
SEÇÃO 4: PODER CONSTITUINTE DIFUSO
Igualmente ao que acontece com a expressão mudanças informais na Constituição, o fenômeno da mutação constitucional também é descrito, superlativamente, como uma espécie de Poder Constituinte, classificado como difuso.
Tal criação foi inicialmente proposta por Geroges Burdeau, cientista político francês, que em sua obra Tratado de Ciência Política, vol. 4, propõe:
Se o poder constituinte é um poder que faz ou transforma as constituições, deve-se admitir que sua atuação não se limita às modalidades juridicamente disciplinadas de seu exercício. (...) Há uma exercício quotidiano do poder constituinte que, embora não esteja previsto pelos mecanismos constitucionais ou pelos sismógrafos das revoluções, nem por isso é menos real. (...) Parece-me, de todo o modo, que a ciência política deve mencionar a existência desse poder constituinte difuso, que não é consagrado em nenhum procedimento, mas sem o qual, no entanto, a constituição oficial e visível não teria outro sabor que o dos registros de arquivos’.
Como se abstrai da leitura do trecho supracitado o cientista político francês “propõe” o reconhecimento, e a conseqüente adoção, do conceito de Poder Constituinte Difuso. Este, ao contrário dos Poderes Constituintes Originário e Derivado, seria a raison d’etre das mutações constitucionais, isto é, das alterações de sentido das normas constitucionais realizadas durante os processos de interpretação e aplicação da Constituição[37].
Em análise da proposta de Geordes Burdeau, o Min. Luis Roberto Barroso passou a adotar a referida classificação, onde o Poder Constituinte difuso seria exercido em caráter permanente e por meio de mecanismos informais, não previstos na Constituição, mas admitidos[38]. Ademais, vale notar que grande parte da doutrina brasileira vem acolhendo a referida classificação. Contudo, acredito que a “proposta” de George Burdeau não merece acolhida por algumas razões de ordem científica e metodológica.[39]
Em que pese o respeito aos entendimentos contrários, há verdadeira incompatibilidade metodológica com a Ciência Jurídica atual a adoção do conceito de Poder Constituinte difuso como sinônimo de mutação constitucional.
Com efeito, pelo próprio fato de ser Georges Burdeau um cientista político, vê-se que o conceito de Poder Constituinte difuso proposto pelo referido cientista está imerso dentro da Ciência Política, que estuda os fenômenos sociais sob a perspectiva exclusiva do Poder, especialmente o político.
No contexto político, não seria de todo errado reconhecer a existência de um Poder Constituinte denominado difuso, em razão da necessidade que o Poder tem de adequar seus instrumentos normativos a fim de preservar sua legitimidade política. Contudo, a conceituação muda quando vista sob a ótica da ciência jurídica[40].
Em primeiro, cumpre sustentar que o papel exercido pelo Poder Judiciário quando da interpretação da Constituição nas mutações não pode ser caracterizado como um poder de fato. O sistema jurídico constitucional admite a interpretação, ainda que se pense na criação de novas interpretações.
A intepretação, nesses moldes, é absolutamente aceita pelo sistema, e é, por isso, jurídica. Não é de fato. Referida advertência é bem exposta por Lênio Streck:
Outra discordância minha diz respeito à relação que Lenza faz entre "mutação constitucional" e "Poder Constituinte Difuso". Tenho o dever de mostrar isso, em face, exatamente, da dimensão que a obra do autor assume no âmbito, principalmente, dos concursos públicos, cursinhos de preparação, etc, de todo o Brasil. Não esqueçamos que é dos concursos públicos que nascem juízes, promotores e demais agentes estatais. Nos termos apresentados por Lenza, o Poder Constituinte Difuso seria aquele que deriva a mutação constitucional, verbis: “o poder constituinte difuso pode ser caracterizado como um poder de fato e se manifesta por meio das mutações constitucionais” (Lenza,Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 16a. Ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 197.). Na medida em que a mutação constitucional acontece, no mais das vezes, através da ação do Poder Judiciário, seria de se perguntar: Pela tese do Poder Constituinte difuso, o judiciário seria um poder constituinte de fato? Mas, se assim o é, qual a importância do Poder Constituinte “de direito”? Ora, a teoria do Poder Constituinte tem uma razão de ser: Precisa justificar e legitimar a origem do poder político, fora dos contextos eclesiásticos ou aristocráticos dos modelos tradicionais. Nesse sentido, de que modo é possível justificar – coerentemente – a existência de um poder constituinte “de fato” (difuso) ao lado do poder constituinte “de direito” (originário/ de reforma)? Aliás, seria de se perguntar: Se o poder é difuso, ele é constituinte? Esse tipo de questão é cobrada em concursos públicos. A prova oral do Ministério Público de São Paulo, por exemplo, tematizou exatamente essa questão. Todavia, o fato de ter sido cobrada em concurso não atribui ao conceito o caráter de verdade científica. Ao contrário, nesse caso mostra como os concursos estão longe da ciência do direito. Por isso, penso que as obras de direito que se destinam a concursos deveriam ter notas de rodapé dizendo se a posição é só do autor, é de fulano, beltrano, do tribunal tal, é majoritária, etc[41].
Impende também salientar que o conceito de Poder constituinte, ainda que em maior ou menor grau segundo seus respectivos limites, objetiva mudar a regra jurídica estabelecida no texto constitucional, criando novos valores de forma textual e expressa. Segundo Canotilho, o poder constituinte, como próprio nome indica, visa constituir, criar, positivar normas jurídicas de valor constitucional[42].
E nesse conceito apresentado por Canotilho, o que mais interessa é justamente a prerrogativa que tem o Poder Constituinte de positivar normas jurídicas de valor constitucional. Há criação de direito positivo.
Nosso direito positivo consagra a lei escrita e emanada por autoridade competente como sua principal fonte[43], mas não de forma exclusiva[44]. Contudo, há taxatividade no sistema.
O Poder Constituinte, seja originário, seja derivado, ou ainda o de reforma, é um Poder que visa, respeitando seus respectivos limites, alterar não só a norma, mas o próprio texto escrito positivado. Cria direito novo e positivo (majoritariamente escrito em nossa tradição romana). A interpretação, por outro lado, ainda que com uma visão nova do direito, não cria algo novo, mas apenas revela algo já existente, ainda que antes não adotado (hipótese interpretativa excluída ou mesmo não imaginada), mas que poderia ter sido adotada caso condizentes com os valores culturais vigentes à época. Há casos em que a norma admite distintas interpretações, mas há casos que não. A primeira hipótese é onde atua a mutação constitucional, que escolhe um caminho diferente diante de hipóteses possíveis.
Não se concebe a criação de direito pelo Poder Judiciário por lhe faltar um componente essencial à imperatividade que todas as normas têm de ter para serem aceitas: o componente político da democracia.
De fato, a neutralização política do Judiciário significará a canalização da produção do direito para o endereço legislativo, donde o lugar privilegiado ocupado pela lei como fonte do direito. A concepção da lei como principal fonte do direito chamará a atenção para a possibilidade de o direito mudar toda vez que mudar a legislação. [...][45].
E além, e não menos importante, a própria teoria da separação dos poderes define claramente a função de cada um dos poderes. Tais definições são claras e de conhecimento primário dentro da ciência jurídica atual. Citando obra de João Mendes de Almeida Júnior em sua tese de mestrado, Eber de Meira Filho destaca:
O PODER JUDICIÁRIO distingue-se do Poder Legislativo, porque pressupõe a existência de lei, para aplica-la aos casos ocorrentes; o PODER JUDICIÁRIO não faz leis, dita as leis já existentes e as aplica a um caso hic et nunc. [...] A JURISDIÇÃO, função de declarar o direito aplicável aos fatos, é a causa final específica da atividade do Poder Judiciário. Assim como é função própria exclusiva do poder Legislativo a de fazer leis (jus dare como diziam os Romanos), - a do Poder Executivo executar as leis (jus executare), - é função própria e exclusiva do Poder judiciário dizer a lei existente e aplicável a um fato ocorrente nas relações entre indivíduos (jus dicere)[46].
Especificamente ao caso do Supremo, nossa mais alta corte e a última palavra no que diz respeito à interpretação constitucional, o mesmo supramencionado mestrando, agora citando Aliomar Baleeiro, em obra de meados de 1960, aduz:
Cúpula de todos eles, o Supremo carrega por precípua missão a de fazer prevalecer a filosofia política da Constituição Federal sobre todos os desvios em que Congresso e o presidente da República, Estados, Municípios e particulares se tresmalhem, quer por leis sancionadas ou promulgadas, que pela execução delas ou pelos atos naquela área indefinida do discricionarismo facultado, dentro de certos limites, a ambos aqueles Podêres, O traçado desses limites, quer quanto ao legislador quer quanto ao executor, nunca foi, não é, nem será nunca uma linha firma, clara e inconfundível. Há uma terra de ninguém desta faixa fronteiriça. Teoricamente, essa linhas jazem na Constituição. Mas como lei é obra de expressão do pensamento, ela padece de lacunas, antinomias e obscuridades, como os de qualquer outro país em qualquer época. E a ação do tempo, envelhecendo dispositivos ou desafiando o alcance de outros, senão o próprio silencio do texto, engedra os problemas que o Supremo Tribunal Federal há de enfrentar pelo futuro afora, às vezes como freio dos avanços temerários, outras vezes como acelerador das aspirações agudas e das reformas latentes.[47]
Ainda, e como já dito, a interpretação da Constituição levada a cabo do Poder Judiciário não pode ser realizada de modo a contrariar o texto expresso da Carta Magna, e o Poder Constituinte visa justamente alterar o texto normativo constitucional. Com efeito:
Especialmente quando se trata de mutação por via de interpretação judicial, verifica-se que os limites da interpretação são, em certo sentido, também limites da própria mutação, visto que como poder constituído, embora a atribuição para interpretar e aplicar de forma vinculante o direito constitucional, o Poder Judiciário não está autorizado (o que não significa que isso não possa vir a ocorre na prática!) a julgar contra disposição constitucional expressa. Valendo-nos da lição de Konrad Hesse, embora a possibilidade de uma mutação constitucional pela interpretação, a quebra da ordem constitucional encontra-se vedada, pois onde o intérprete se coloca acima da Constituição, não se trata mais de interpretação, mas sim, de alteração ou mesmo violação da Constituição. Por outro lado, como destaca Gomes Canotilho, as mutações constitucionais devem ser consideradas admissíveis quando não se pretenda simplesmente constitucionalizar fatos de modo a ensejar uma leitura contrária ao próprio texto constitucional, o que ao fim e ao cabo, acabaria por representar uma leitura constitucional de baixo para cima, corrosiva até mesmo da força normativa da constituição.[48]
Como se vê, o limite para a mutação constitucional é o próprio texto escrito. Em havendo divergência entre o texto escrito a interpretação adotada, haverá uma verdadeira mutação constitucional inconstitucional, que representa corrosão da própria força normativa da Constituição.
Ademais, Poder Constituinte é aquele que constitui algo, in casu, a Constituição. E o Poder Judiciário não é espécie de Poder que constitui a Constituição, mas que a preserva e a aplica.
Esta própria conclusão é mais um motivo para não adoção do conceito de Poder Constituinte difuso como sinônimo de mutação constitucional, considerando, ainda, a possibilidade de, futuramente, acabar se alargando cada vez mais a função jurisdicional no sentido de se possibilitar a alteração do próprio texto constitucional escrito que seja contrário a algum pensamento que venha ganhando espaço perante a opinião pública.
A esse respeito, de clareza solar os ensinamentos de Daniel Sarmento (2012, p. 308):
De toda sorte, é indiscutível que o Poder Judiciário representa um importante agente no processo de mutação constitucional. Nada obstante, não nos parece correta a visão que o converte no grande protagonista deste processo, transformando-o numa espécie de poder constituinte permanente. Neste ponto, há que se discordar da afirmação de que, como “intérprete final” da Constituição, o STF poderia ser concebido como uma espécie de poder constituinte. Trata-se de equívoco similar ao perpetrado pelo juiz da Suprema Corte norte-americana Charles Evan Hughes quando afirmou que “a Constituição é aquilo que a Suprema Corte diz que ela é”. Se, por absurdo, o STF afirmasse em algum momento que a ordem constitucional brasileira permite a escravidão ou adota o regime monárquico, isso não seria mutação constitucional, mas um grave erro da Corte. A visão excessivamente judicialista da mutação constitucional, conquanto frequente no Brasil, é equivocada, seja pelo ângulo descritivo, seja pelo prescritivo. Em outras palavras, ela não descreve corretamente como o fenômeno da mutação opera no mundo real, nem tampouco fixa uma orientação adequada sobre a forma como ele deveria funcionar[49].
Contudo, neste contexto, não se deve olvidar que a mutação constitucional, no sentido de mudança promovida sem alteração textual, pode ocorrer pela via da interpretação, ou seja, pela atuação de um órgão criado pela constituição [...][50], pois a realização de interpretação legítima, levada a cabo pelos órgãos competentes, encontra-se dentro da regra do jogo, de onde se depreende a possibilidade da mudança de sentido, mas dentro de um caminho constitucional previamente possibilitado pelo próprio texto.
Adotar o conceito de Poder Constituinte difuso como sinônimo de mutação constitucional levada a cabo pelo Poder Judiciário em suas interpretações conduz a um risco latente de, a cada dia, pela própria falta de compreensão do conceito, se ir conduzindo a possibilidade de alteração do texto escrito diante de uma interpretação inovadora.
Contudo, como demonstrado, a intepretação que se realize em contrariedade ao texto expresso/escrito constitui-se em verdadeira mutação constitucional inconstitucional[51].
Denota-se assim que a própria lógica do sistema constitucional impede a criação de normas constitucionais pelo Poder Judiciário. Possibilitar a criação de normas constitucionais causaria inexorável corrosão à força normativa da Constituição, que deve bastar a si própria.
Seus sistemas de reforma são claros, previstos e precisos no sentido de se manter a integridade do sistema, que além de manter sua higidez jurídica, deve também manter a higidez política. Eis aí a consagração do Estado Democrático de Direito.
Contudo, em que pese faltar ao Poder Judiciário o componente político da democracia representativa (indireta) – o que o impede de criar normas gerais e abstratas - isso não significa que o exercício da Jurisdição não deva também observar o princípio democrático, que, neste caso, se deve dar mediante a utilização dos postulados da teoria discursiva, possibilitando a participação argumentativa como forma de formação e aceitação de ideias, o que reforça a legitimidade da atuação jurisdicional.
Fazendo uma breve incursão na questão da teoria discursiva, deve o Poder Judiciário atuar no sentido de permitir a participação dos atores envolvidos para que sua decisão se dê da forma mais democrática possível.
Possibilitando-se a participação de forma ampla e efetiva, mediante a inserção do discurso de outros atores ao processo decisório, há um salto efetivo da qualidade da decisão, que será muito mais facilmente aceita pelos cidadãos, inclusive daqueles que se encontrarem fora do processo.
Neste aspecto, importante o seguinte resumo:
Em resumo: num Estado Democrático de Direito, as atividades estatais e as decisões públicas delas oriundas adquirem legitimidade se e quando conformes aos vetores constitucionalmente estabelecidos. E isso não se dá apenas mediante um único critério, apesar de incluídos todos numa única categoria denominada legitimidade pelo devido processo. Assim é que, no âmbito da atividade jurisdicional, fala-se em legitimidade pelo contraditório – ou legitimidade pela participação, ou legitimidade pela cooperação – o que denota a indispensabilidade daconstrução participada dos provimentos e a consequente abolição de decisões elaboradas segundo os padrões encontrados unicamente num espaço metafísico não fiscalizável decorrente da subjetividade do juiz (messianismo judicial e tirania dos juízes). Também se alude em doutrina à legitimidade da decisão pelos direitos fundamentais materiais – ou legitimidade pelo conteúdo da decisão, ou legitimidade pela própria decisão –, proveniente do imperativo de se verificar a constitucionalidade da norma abstrata antes de propriamente aplicá-la em prol da solução ao caso concreto, assegurando a esta, ademais, exegese que, conquanto oriunda do debate travado ao longo do iter procedimental, se afigure hábil para concretizar, na maior medida possível, os princípios materiais constitucionais (incluídos aí, sobretudo, os direitos fundamentais materiais)[52]
Neste sentido, em se observando a teoria discursiva para realização dos processos hermenêuticos, especialmente quando da realização da mutação constitucional, além da legitimidade das conclusões, haverá grande avanço para o acerto da decisão, que, com a participação comunicativa, conduzirá inarredavelmente para a certeza de que a mutação foi colhida do seio da realidade social.
SEÇÃO 5: TEORIA DISCURSIVA
De início cumpre asseverar que a vastidão dos temas contidos nas obras de Jürgen Habermas não permite mais do que uma aproximação do seu pensamento[53]. Quanto à obra habermasiana:
É possível dividir a obra habermasiana em três fases distintas: a primeira, de índole eminentemente epistemológica, é marcada pela crítica à neutralidade científica; a segunda, pela preocupação com as situações de alienação e despolitização humanas; e a terceira, pela busca da sistematização dos resultados obtidos nas pesquisas da primeira e segunda fases por meio da aplicação da teoria do agir comunicativo ao Direito.[54]
No período denominado como “primeira fase” teórica, Habermas critica o empirismo puro, buscando substituir pela compreensão todo enfoque típico de neutralidade, onde o intérprete estaria imerso em seu objeto de estudo[55]. “Isso porque, na ótica habermasiana, a ideia de ‘neutralidade’ conduziria à desumanização da ciência e à sua desconexão com a realidade, impondo uma forma de saber único, calcado no método matemático”[56]. Pela teoria dos interesses imanentes, Habermas busca ampliar os espaços de discussão científicos, bem como a tradução do saber técnico de forma a ser acessível, tanto aos mandatários do povo quanto ao próprio povo[57].
No período denominado segunda fase, Habermas busca a libertação humana de situações de alienação e despolitização. Propõe um modelo de gestão comunicativa de poder para se conseguir a emancipação humana, onde não mais se funda na mera transferência do poder político para instâncias representativas, mas pela assunção desse poder pela cidadania[58].
Surge, nessa fase, a teoria do agir comunicativo, com a propositura de uma teoria pragmática de linguagem que viabilize a compreensão da filosofia, mediante um processo de cooperação dialética, coletiva e interdisciplinar[59]. Inclui-se o outro, esta, por excelência, a forma de se legitimar as relações sociais.
A linguagem passa a ser usada com meio de incorporar a razão, e como fonte de integração social. Desloca-se da razão prática pela teoria do agir comunicativo:
É nisso que consiste o ‘agir comunicativo’. Neste caso, os atores, na qualidade de falantes e ouvintes, tentam negociar interpretações comuns da situação e harmonizar entre si os seus respectivos planos através de processos de entendimento, portanto pelo caminho de uma busca incondicionada de fins ilocucionários. Quando os participantes suspendem o enfoque objetivador de um observador e de um agente interessado imediatamente no próprio sucesso e passam a adotar o enfoque performativo de um falante que deseja entender-se com uma segunda pessoa sobre algo no mundo, as energias de ligação da linguagem podem ser mobilizadas para a coordenação de planos de ação. Sob essa condição, oferta de atos de fala podem visar um efeito coordenador da ação, pois da resposta afirmativa do destinatário a uma oferta séria resultam obrigações que se tornam relevantes para as consequências da interação[60].
Para Habermas, a linguagem é instrumental para obtenção de consenso entre os homens. Caso não existisse o interesse de compreensão recíproca, a linguagem perderia o sentido, sem razão instrumental. Para possibilidade de discurso, contudo, devem estar presentes: simetria de posições, igualdade na oportunidade de fala, respeito às diferenças e ao pluralismo, a delimitação de um lapso temporal necessário para que se obtenha um consenso, a sinceridade entre os falantes e a ausência de qualquer forma de coação[61].
Diante de tais premissas, passa Habermas para sua terceira fase, onde busca aplicar a teoria do agir comunicativo para o Direito. De fato, o agir comunicativo pode também influenciar o funcionamento dos sistemas instrumentais de ação, por meio das instituições jurídicas democráticas[62]; noções de positividade e formalismo são insuficientes para a legitimação do Direito moderno:
É assim que Habermas busca demonstrar que, afastados fundamentos metafísicos ou religiosos para o Direito, ele só pode ser legitimado na medida em que se realiza por meio do agir comunicativo, de forma que sua força integradora somente se mantém na medida em que os destinatários das normas jurídicas sintam-se na condição de autores dessas normas. Ou seja, os membros do Direito devem supor que são eles mesmos que, por meio da expressão livre da sua opinião e vontade política, autorizam as regras da quais são destinatários[63].
A legitimidade do Direito, segundo Habermas, advém do processo legislativo democrático, no qual todos os cidadãos se sentem autores das normas. A racionalidade do processo legislativo não se encontra à disposição dos órgãos de aplicação do Direito, eis que se está sob as condições de divisão dos Poderes do Estado:
A lógica da divisão de poderes, fundamentada numa teoria da argumentação, sugere que se configure auto-reflexivamenete a legislação, de modo idêntico ao da justiça e que se revista com a competência do autocontrole de sua própria atividade. O legislador não dispõe da competência de examinar se os tribunais, ao aplicarem o direito, se servem exatamente dos argumentos normativos que encontram eco na fundamentação presumivelmente racional de uma lei. De outro lado, o controle abstrato de normas é função indiscutível do legislador[64].
Sem a observância das funções dos Poderes, poder-se-ia abrir as portas para que os tribunais criassem o Direito. Contudo, pela lógica, é função reservada ao legislador democrático[65]. Na visão de Habermas, os meios e os fins das normas deveriam ser sempre estabelecidos pelo legislador, competindo ao judiciário, diante da presunção democrática de origem das normas, apenas examinar o nível de correspondência entre os significantes contidos nos textos das normas e os elementos descritivos dos casos que lhes são apresentados[66].
De fato, [...] a lógica da divisão dos poderes não pode ser ferida pela prática de um tribunal que não possui meios de coerção para impor suas decisões contra uma recusa do parlamento e do governo[67]. No entanto, também não se pode esquecer que a concretização do direito constitucional através de um controle judicial da constitucionalidade serve, em última instância, para a clareza do direito e para a manutenção de uma ordem jurídica coerente[68].
É claro que a atividade jurisdicional de aplicação da Constituição pelo Poder Judiciário é importante e relevante para a clareza do direito e para manutenção da ordem jurídica. Contudo, a realização da jurisdição constitucional, ainda que dentro dos seus limites hermenêuticos, não pode se constituir, por si só, em fundamento último para se dizer o que seja constituição sem um argumento jurídico racional. A interpretação correta deve ser encontrada, isto é, elaborada numa ‘argumentação racional’.[69] No mais:
Ingebor Maus teme, de um lado, que a justiça intervenha em competências legislativas para as quais não possui legitimação democrática e que ela promova e confirme, de outro lado, uma estrutura jurídica flexível, a qual vem ao encontro da autonomia dos aparelhos do Estado – de tal modo que a legitimação democrática do direito também pode ser solapada por este lado[70].
Qualquer interpretação de sentidos válidos demonstra-se possível dentro do processo hermenêutico. Contudo, o que extrapola esse limite (de interpretação possível) acaba por tornar flexível por demais toda estrutura jurídica, o que faz com que seja criada uma nova regra comportamental, em descompasso com a legitimação democrática.
Embora se reserve a não ingressar na discussão complexa de como, de fato, procede o Tribunal Constitucional Federal alemão, Habermas aponta como solução - também de certo modo:
[...] a dogmática alemã dos direitos fundamentais ocupa-se principalmente com o ‘conteúdo essencial’ dos direitos intocáveis e as simples leis; com ‘os limites imanentes dos direitos humanos’, que atingem também os direitos público-subjetivos absolutamente válidos; com a ‘irradiação dos direitos fundamentais para todas as esferas do direito; com os encargos da ação, deveres de proteção e de prevenção do Estado, que podem ser inferidos do caráter jurídico objetivo dos direitos fundamentais para todas as esferas do direito; com os encargos da ação, deveres de proteção e de prevenção do Estado, que podem ser inferidos do caráter jurídico objetivo dos direitos fundamentais, como princípios elementares de ordem; finalmente, com ‘a proteção dinâmica do direito fundamental’ e com o processo que liga o conteúdo subjetivo e objetivo do direito fundamental[71].
E após fazer uma breve digressão sobre as conceituações de normas e valores, Habermas aponta para a problemática de se conduzir exclusivamente pela ideia de valores (princípios), pois:
Ao deixar-se conduzir pela ideia da realização de valores materiais, dados preliminarmente no direito constitucional, o tribunal constitucional transforma-se numa instância autoritária. No caso de uma colisão, todas as razões podem assumir o caráter de argumentos de colocação de objetivos, o que faz ruir a viga mestra introduzida no discurso jurídico pela compreensão deontológica de normas e princípios do direito. [...]
Na medida em que um tribunal constitucional adota a doutrina da ordem de valores e toma como base de sua prática de decisão, cresce o perigo dos juízos irracionais, porque, neste caso, os argumentos de uma colisão de normas, certos princípios, tais como, por exemplo, ‘a capacidade funcional’ do exército alemão, o cuidado do direito, ‘a paz’ especifica de certas esferas, a ‘segurança do Estado como poder de ordem e de paz’, o comportamento fiel à federação ou a ‘fidelidade à federação’, fornecem certamente pontos de vista que permitem introduzir argumentos num discurso jurídico; todavia, esses argumentos não ‘contam’ mais do que os princípios jurídicos, à luz do quais esses bens e princípios podem ser justificados.[72]
Mas para esse embate e momento limite (de crise), a tarefa consiste em encontrar entre as normas aplicáveis prima facie aquela que se adapta melhor à situação de aplicação descrita de modo possivelmente exaustivo e sob todos os pontos de vista relevantes[73]. No mais:
Uma jurisprudência orientada por princípios precisa definir qual pretensão e qual ação deve ser exigida num determinado conflito – e não arbitrar sobre o equilíbrio de bens ou sobre o relacionamento entre valores. É certo que normas válidas formam uma estrutura relacional flexível, na qual as relações podem deslocar-se segundo as circunstâncias de cada caso; porém, esse deslocamento está sob a reserva da coerência, a qual garante que todas as normas se ajuntam num sistema afinado, o qual admite para cada caso uma única solução correta. A validade jurídica do juízo tem o sentido deontológico de um mandamento, não o sentido teleológico daquilo que é atingível no horizonte de nossos desejos, sob circunstâncias dadas. Aquilo que é melhor para cada um de nós não coincide eo ipso com aquilo que é igualmente bom para todos.[74]
Feita a análise do caso versado diante de um processo totalmente exaustivo de hipóteses, a jurisdição realiza sua própria função de modo democrático, pois possibilita a escolha da melhor decisão dentro de certo consenso. Por outro lado, age também de forma democrática quando observa a origem democrática das leis do parlamento, pois somente as condições processuais da gênese democrática das leis asseguram a legitimidade do direito[75].
E ainda:
Partindo dessa compreensão democrática, é possível encontrar um sentido para as competências do tribunal constitucional, que corresponde à intenção da divisão de poderes no interior do Estado de direito: o tribunal constitucional deve proteger o sistema de direitos que possibilita a autonomia privada e pública dos cidadãos. O esquema clássico não corresponde mais a essa intenção, uma vez que a função dos direitos fundamentais não pode mais apoiar-se nas concepções sociais embutidas no paradigma do direito liberal, portanto não pode limitar-se a proteger os cidadãos naturalmente autônomos contra os excessos do aparelho estatal. A autonomia privada também é ameaçada através de posições de poder econômicas e sociais e dependente, por sua vez, do modo e da medida em que os cidadãos podem efetivamente assumir os direitos de participação e de comunicação de cidadãos do Estado. Por isso, o tribunal constitucional precisa examinar os conteúdos de normas controvertidas especialmente no contexto dos pressupostos comunicativos e condições procedimentais do processo de legislação democrática. Tal compreensão procedimentalista da constituição imprime uma virada teórico-democrática ao problema de legitimidade do controle jurisdicional da constituição. Neste aspecto, a discussão americana é mais fecunda que a alemã[76].
Diante da observância das “regras do jogo”, com integral respeito à Constituição, o Poder Judiciário como um todo faz o seu papel democrático. Precipuamente, sendo o guardião da Constituição, se a Supreme Court tem como encargo vigiar a manutenção da constituição, ela deve, em primeira linha, prestar atenção aos procedimentos e normas organizacionais do quais depende a eficácia legitimativa do processo democrático[77].
E, como dito, só a observância da legitimidade de criação de normas não resume a atuação democrática de qualquer Corte, mas também possibilitar a inserção do máximo possível de teses jurídicas (opiniões), pois o tribunal tem que tomar precauções para que permaneçam intactos os ‘canais’ para o processo inclusivo de formação da opinião e da vontade, através do qual uma comunidade jurídica democrática se auto-organiza [...][78].
Portanto, para que se possa observar o princípio democrático, deve o Poder Judiciário, e em especial a Corte constitucional, ter atitude passiva no sentido de respeitar a origem democrática das normas as quais deve aplicar (especialmente as constitucionais “in casu”), e, também, atitude positiva no sentido de incluir no discurso jurídico todas as teses coerentes possíveis, considerando que a análise de todas as vertentes pensáveis fazem com que sejam incluídas no discurso, ainda que indiretamente, a classe jurídica nacional e o próprio povo.
Nesse sentido, a Constituição vem do povo, que, por meio de seus representantes legais, coloca sua vontade no texto constitucional. Como vimos anteriormente, é na Constituição que encontramos a fonte dos três poderes da República, a própria disciplina da República e os fundamentos do Estado, Logo, nada mais justo que o povo desse Estado tenha o poder de determinar, pela vontade da maioria, as principais características relativas ao Estado.[79]
Permitir a participação (ao menos a indireta) dos cidadãos nas decisões, mediante a abertura do máximo de teses possíveis, ainda que não acolhidas, ao menos, consagra a virtual participação democrática nas decisões. Mesmo que o cidadão não tenha ido sustentar pessoalmente sua tese, seu posicionamento foi conhecido pela justiça. Em tal proceder não há só consagração da participação por meio do discurso (direto ou indireto), mas há ainda um aumento qualitativo significativo da decisão resultante de um processo jurisdicional democrático.
[...] uma interpretação apoiada numa teoria do discurso insiste em afirmar que a formação democrática da vontade não tira sua força legitimadora da convergência preliminar de convicções éticas consuetudinárias, e sim de pressupostos comunicativos e procedimentos, os quais permitem que durante o processo deliberativo, venham os melhores argumentos.[80]
Nessa linha, para que também sejam consideradas como democráticas, as mutações constitucionais que sejam reconhecidas pela Corte constitucional devem ser exaustivamente discutidas para que seja verificado se, realmente, tal entendimento se constitua em verdadeira mutação constitucional social e não em mero casuísmo judicial. O debate amplo, com teses contrárias, deve estar no bojo dessa decisão de mutação para que dela se convença a sociedade. A fundamentação serve para convencer, e não só para justificar.
Contudo, o que muito se vê são severas críticas da opinião jurídica em decisões constitucionais sem que seja convencida a classe do acerto, ou, ao menos, das razões únicas e absolutamente necessárias da mudança de valores.
Dizer que tal coisa seja mutação constitucional é muito simples. Igualmente simples é também arrumar argumentação para sustentar qualquer tese. Por outro lado, não se revela igualmente fácil demonstrar democraticamente que aquela decisão é realmente a “vontade” do povo.
Aparência de legitimidade não é o mesmo que legitimidade democrática.
SEÇÃO 6: DEMOCRACIA CONSTITUCIONAL E CIDADANIA PARTICIPATIVA
Resta, por fim, verificar os pontos em que temos um verdadeiro Estado Democrático de Direito e participação cidadã nas decisões judiciais.
Sob a ótica de Habermas, tal se funda no discurso e comunicação:
De um lado, a teoria do direito, fundada no discurso, entende o Estado democrático de direito como a institucionalização de processos e pressupostos comunicacionais necessários para uma formação discursiva da opinião e da vontade a qual possibilita, por seu turno, o exercício da autonomia política e a criação legítima do direito. De outro lado, a teoria da sociedade fundada na comunicação entende o sistema político estruturado conforme o Estado de direito como um sistema de ação entre outros[81].
Antes, contudo, resta esclarecer sobre a obra de Habermas que:
Inicialmente, parte Habermas da análise dos conceitos empiristas e normativistas de democracia. Isso porque ao expor o seu modelo de democracia, Habermas pretende desenvolver a sua teoria do Direito sob um viés externo da facticidade e da validade. No primeiro, legitimidade do direito e necessidade de legitimação não são descritas a partir da perspectiva dos participantes. Já no segundo, as práticas democráticas são legitimadas a partir da perspectiva dos próprios participantes.
Posteriormente, Habemas faz uma análise dos modelos democráticos liberal e republicano. Essa análise é importante na medida em que Habermas irá formular a democracia procedimental pela união daqueles dois modelos[82].
Com base nos modelos democráticos liberal e republicano, Habermas constrói o seu modelo de democracia procedimental, onde a teoria do discurso entra em cena para que seja imprimida maior conotação normativa do que ao modelo liberal e mais fraca que o modelo republicano.
Assim:
À guisa de conclusão desta parte, o que podemos afirmar é que na democracia procedimentalista não há lugar totalmente para a visão republicana, na medida em que essa reforça o papel do Estado, estabelecendo uma sociedade com vontades e finalidades homogêneas, com valores dados a priori, fazendo-se necessário apenas que os atores sociais, através da comunicação, desvelem esses valores preexistentes. Também não há lugar para a perspectiva liberal, pois a democracia não pode ser reduzida a um governo legitimado pela maioria, cujo paradigma é a idéia de mercado, com a autonomia pública considerada como meio para possibilitar a autonomia privada. Na mescla entre os dois modelos, Habermas propõe uma democracia que parte da visão heterogênea da sociedade, acolhendo, a outro giro, a necessidade de deliberação formulada pela visão republicana, rejeitando, contudo, o modelo de certeza postulado por essa tradição, afirmando que a força legitimadora reside na institucionalização de procedimentos e das condições de comunicação, contribuindo para a formação da vontade e opinião pública, estabelecendo uma política deliberativa que se apoia na formação democrática da vontade e na formação informal da opinião[83].
Tudo no Estado deve estar voltado à consagração da democracia, eis que nosso Estado constitui-se em um Estado Democrático de Direito, que tem assim na democracia um de seus elementos constituidores. Por essa razão, é que todos os procedimentos devem albergar qualquer forma de comunicação, ainda que mais primária, como o caso do próprio princípio contraditório.
Contudo, o sistema constitucional não esgota a participação do cidadão apenas mediante o respeito ao contraditório. Por exemplo, há ainda o princípio da publicidade, que torna possível a todos, respeitados outros direitos, o conhecimento daquilo que ocorre nas decisões do Estado, objetivando que tudo se dê às claras, e que possam mais e mais cidadãos tenham conhecimento do que, de fato, ocorre.
E como até então se demonstrou, para consagração da democracia, pensada sob a ótica procedimental, e especificamente na esfera jurisdicional das Cortes Constitucionais, as decisões devem levar em conta o máximo de discursos reais e hipotéticos possíveis, considerando que os efeitos da decisão em controle concentrado de normas, pode repercutir em todos os cidadãos.
Permite-se a criação do conhecimento: fomenta-se a existência de um número crescente de observadores, que, com sua atividade racional (de opinião crítica) possam tecer juízos de valores que influenciam na atividade criadora de decisões do Estado, e não só as jurisdicionais. A democracia, portanto, também irradia, não só por dentro, mas por fora a criação das decisões.
Importantíssimo, nesse sentido, lembrarmos da elaboração de nosso novo Código de Processo Civil, de onde:
No que se refere ao princípio democrático, nota-se que o legislador do Projeto n.º 166/2010 se conscientizou de sua importância, tanto que está previsto em diversos dispositivos. Ali, em seu corpo normativo, atesta-se que as partes têm direito de participar ativamente no ambiente processual, cooperando com o juiz, fornecendo-lhe subsídios para que profira decisões, realize atos executivos ou determine a prática de medidas de urgência (art. 5.º). Veda-se ao juiz, no mesmo rumo, proferir decisão ou sentença contra uma das partes, desimportante a natureza da matéria envolvida, sem que antes seja ela previamente ouvida, excepcionados os casos de medida de urgência ou concedida a fim de evitar o perecimento de direito (art. 9.º). Tampouco é aceitável à autoridade judicial decidir em qualquer grau de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual tenha que se decidir de ofício (art. 10).[84]
Assim é que a decisão, além de possibilitar o discurso como forma de consagra a participação da sociedade nas decisões, deve, também, se resumir à observância da legitimidade de produção das normas constitucionais sem que haja indevida intromissão sobre o conteúdo essencial daquela norma democraticamente consolidada.
A cidadania, neste aspecto instrumental, se consagra mediante o discurso (direto/ indireto). De forma direta, tanto as partes quanto os “amicus curiae” podem dar excelentes contribuições para a escolha da melhor decisão. De forma indireta, mediante a refutação das teses relevantes sobre o caso, tornando possível a participação da diversidade do pensamento jurídico.
Desse modo, é:
Neste ponto é que vislumbra-se a legitimidade das Cortes Constitucionais em sede de controle de constitucionalidade, como decorrente desse mister de dar a última palavra nas questões constitucionais que é possibilitada pela aceitação dos participantes do discurso do papel que é previsto na Constituição Federal aqueles tribunais, eliminando qualquer possibilidade de se questionar o caráter democrático da atuação das Cortes Constitucionais que, apenas de não terem seus membros eleitos pelo voto direto, tem a sua atuação avaliada e fiscalizada pelos cidadãos quando efetivamente se exerce uma jurisdição aberta à participação de todos os interessados no processo de construção das decisões constitucionais[85].
Além da competência das Cortes Constitucionais e dos juízes para dizer o que seja a Constituição, a busca pelas mutações constitucionais, para se legitimarem, somente podem ser dar mediante a extração democrática de um novo paradigma, e isso dentro do seio social.
Muito simples é mudar qualquer interpretação constitucional em gabinete, sem verificação do sentimento jurídico nacional, alegando que tal mudança deriva de mutação constitucional.
A mutação, para ser efetiva, deve estar patente no sentimento nacional, ainda que tal entendimento seja até mesmo minoritário, mas que, pela consagração do principio discursivo, se possa respeitar a decisão por sua elaboração qualitativa.
A adoção do princípio discursivo, além de fornecer uma proteção contra fatores externos de poder, também possibilita encontrar as reais circunstâncias e valores da sociedade em evolução. Nesse sentido:
Não se deve, sob o pretexto da mutação constitucional, possibilitar que os fatores reais de poder atropelem a força normativa da Constituição, nem tampouco adotar-se uma leitura imobilista da Lei Maior, insensível às novas circunstâncias e valores de uma sociedade em permanente evolução[86].
Com exemplo de entendimento minoritário, que poderia dificultar a legitimidade democrática, temos o seguinte:
A legitimidade democrática da jurisdição constitucional tem sido questionada em razão da apontada “dificuldade contramajoritária” do Poder Judiciário, que decorre do fato de os juízes, apesar de não serem eleitos, poderem invalidar as decisões adotadas pelo legislador escolhido pelo povo, invocando, muitas vezes, normas constitucionais de caráter aberto, que são objeto de leituras divergentes na sociedade. Pessoas diferentes, de boa-fé, podem entender, por exemplo, que o princípio constitucional da igualdade proíbe, que é compatível, ou até que ele impõe as quotas raciais no acesso às universidades públicas. Como podem considerar que o princípio da dignidade da pessoa humana importa no reconhecimento do direito à prática da eutanásia, ou que o veda terminantemente. Casos como estes revelam a possibilidade de que se estabeleça um profundo desacordo na sociedade sobre a interpretação correta de determinadas normas constitucionais[87].
De toda a digressão até então feita, fica claro que somente mediante a consagração do discurso como forma de participação das decisões é que se torna legítimo e democrático qualquer entendimento acerca de normas constitucionais. Nesse sentido:
Se o diálogo travado processualmente é pelo juiz considerado na formulação da norma jurídica pacificadora, é evidente que o contraditório assume mesmo função de controle do poder estatal jurisdicional. Como meio de controle do ativismo judicial, hoje difundido e necessário, nada melhor, e mais democrático, do que investir na imposição de um ativismo também das partes, num viés voltado à cooperação na construção do provimento jurisdicional. Afinal, segundo esse modelo, as partes não se surpreenderão com decisionismos oriundos exclusivamente de reflexões solitárias do juiz. De antemão, terão consciência de que a decisão, como manda um adequado regime democrático, será proveniente do debate travado no processo, relativo a questões de fato e de direito por elas mesmas suscitadas ou provocadas pelo próprio juiz na busca da (utópica) verdade real. Abaliza-se, desta forma, o princípio da segurança jurídica, pois às decisões judiciais confere-se previsibilidade e, por consequência, resguardam-se as expectativas das partes no que toca ao resultado oriundo da atividade jurisdicional.[88]
O respeito à Constituição pelo Poder Judiciário deve ser irrestrito: só assim se consagra o Estado Democrático de Direito; as decisões devem contar com respaldo popular: mediante procedimentos que viabilizem o discurso, ainda que de forma indireta, mas de forma exaustiva e coerente (juridicamente); o ativismo judicial, desde que se constitua em procedimento que viole Constituição, deve ser totalmente evitado: lógico que a atividade jurisdicional com enfoque criacionista deve ser vista com a mais absoluta restrição, a fim de que se evite deixar de observar o texto constitucional.
Guardar a Constituição é, antes de mais nada, respeita-la, pois o quebramento do espírito da Constituição configura a maior das inconstitucionalidades [...]. [89] Mas não se pode deixar de lembra que:
Isto não significa, contudo, que o papel das cortes na mutação constitucional seja ou deva ser apagado. Além de atuar no reconhecimento das mutações ocorridas, as decisões judiciais servem também para injetar valores constitucionais na cultura política e social de uma Nação, estimulando certas transformações. Há, na democracia, um espaço legítimo para que o Tribunal pratique uma espécie de “pedagogia constitucional”, auxiliando a disseminar pela sociedade, por meio da autoridade da sua argumentação, o discurso constitucional voltado para os direitos fundamentais. Certamente um julgamento como Brown v. Board of Education, nos Estados Unidos, ao invalidar a discriminação racial nas escolas públicas, teve um efeito cultural e político importante, sensibilizando a sociedade em relação a um tema candente de justiça e estimulando a mobilização social em favor de uma agenda transformadora. Papel similar poderá ter, no Brasil, a memorável decisão do STF no julgamento sobre união homoafetiva[90].
Com isso, claramente se pode concluir que a teoria discursiva aplicada à atuação do Poder Judiciário na criação de mutações constitucionais é, dentro da atual sistemática, a melhor forma de consagrar o princípio democrático, pois possibilita a participação cidadã, que é um preceito fundamental para a legitimidade da atuação jurisdicional. Ainda, à guisa de conclusão, impende, nesse contexto, asseverar que:
Conquanto inserido num regime democrático, o cidadão brasileiro ainda é vítima de expressões do poder estatal que se apresentam estranhas à soberania popular, capazes de atingi-lo em sua esfera física, psíquica e patrimonial de maneira absolutamente arbitrária, o que se dá quando lhe é negado o direito de participação ativa na construção das decisões públicas. Não é, por isso, exagero algum afirmar que há, sim, alguma manifestação embrionária de absolutismo instalada no regime democrático do País. Estar-se-á a referir-se em específico a algumas decisões judiciais proferidas em manifesto atentado ao contraditório, direito/garantia constitucional que estabelece a democracia participativa no ambiente processual e, por conseguinte, colabora flagrantemente para a legitimidade da jurisdição e dos resultados dela oriundos.[91]
O Estado brasileiro, a muito, tem escolhido a democracia como um de seus principais postulados estruturais constituintes, e nada poderá afastar o modo de ser deste nosso próprio Estado, que, frise-se, é democrático.
CONCLUSÃO
Notório o atual estágio social brasileiro. Os meios de comunicação possibilitam a todos o conhecimento claro sobre os avanços políticos, sociais e econômicos de nosso país. A informação exponencial possibilita aos cidadãos estarem sempre bem informados acerca dos principais problemas sociais.
Assim, em nossa realidade social “aumentada”, a demanda pela prestação de serviços de qualidade é cada vez mais comum. E a tecnologia é fundamental para que esse processo ocorra, pois a rapidez com que as informações chegam aos cidadãos propicia a tomada de posição no sentido de cobrar a adequada implementação das políticas públicas.
Não está sendo fácil se eleger no mundo conectado, que permite que as informações, outrora esquecidas, sejam guardadas para serem posteriormente requentadas para um futuro próximo, onde, antes, as a reeleições eram facilmente pela conquistadas pela falta de lembrança.
E tal cobrança não se resume só ao executivo e legislativo. O Poder Judiciário também passa a ser cobrado pelo povo, que quer a resolução de todos os seus problemas de forma célere, mas também de maneira adequada, sem excessos e abusos.
Não se pode esquecer que a sociedade, seja por falta de informação ou por informações incompletas, também acabam por reclamar por soluções que são juridicamente impossíveis e até mesmo imorais, mas condicionadas por um desejo social inflamado de vingança. Nestes casos, tem o Poder Judiciário atuado de forma a coibir lesões contra direitos a garantias fundamentais, eis que o abuso de direito é conduta reprimida em nosso sentimento jurídico. O sistema jurídico coíbe a selvageria, e não é preciso ser um grande estudioso do direito para saber disso.
As decisões judiciais, diante de tais circunstâncias, precisam sempre se mostrar moderadas em prol da pacificação. A preocupação em dar a também necessária satisfação social deve vir por último, pois a base de qualquer decisão é o ordenamento jurídico, que se encontra alicerçado por princípios de direito a muito consagrados, merecedores de respeito e permanência.
Ainda sob o enfoque das decisões judiciais, existem aquelas que consagram mudanças de valores sociais, inclusive, em nível constitucional. Essas decisões judiciais que reconhecem a mudança de postura da sociedade frente aos seus valores constitucionais objetivam reconhecer a existência de mutações na constituição.
Contudo, esses novos valores, em observância à própria manutenção da Constituição, só podem ser concebidos como meio de alterar interpretações possíveis dentre de hipóteses extraíveis do texto normativo. Não pode haver interpretações que subvertam o texto, especialmente o Constitucional, que é base do ordenamento jurídico positivo.
Assim, reconhecendo as mutações como forma de alteração do sentido, mas sem alteração do texto, além de integridade da Constituição, se estará observando o princípio democrático, este o criador da norma fundamental, e de onde provém todo o respeito ao diferente.
E conceber as mutações constitucionais como espécie de Poder Constituinte, chamado de difuso, torna aberta a porta para que surjam teorias justificadoras de alteração jurisdicional do texto constitucional escrito. Basta se ter uma boa justificativa para que se inicie corrente no sentido de ser adotado no Brasil um sistema de revisão judicial do texto escrito da Constituição. Além de julgar, passaria o Poder Judiciário a criar regras originárias, o que também sepulta a teoria da separação dos poderes.
Mudanças “homeopáticas” possibilitam a subversão de regras consagradas. Isso não significa dizer que tal mudança irá de fato ocorrer, mas não se pode duvidar que tal possibilidade passaria a existir.
A regra de alterações das normas constitucionais já é restrita até mesmo para o Poder Legislativo. Contudo, levada a cabo pelo Poder Judiciário a possibilidade de alteração do texto pela Corte Suprema ou por seus juízes na aplicação direta da Constituição, não haveria limite senão aquele dito pelo próprio Poder Judiciário, que, também, poderia mudar seus limites a seu bel prazer. Não haveria limites.
E mais: mutações constitucionais não inovam o ordenamento. A norma sempre esteve lá, inclusive a interpretação modificada. O que a mutação faz é trocar a interpretação de uma norma com base na troca de valores sociais, e para o reconhecimento democrático desses valores, somente mediante a implementação da teoria discursiva.
Com efeito, o respeito pela norma pelo Poder Judiciário também deriva do princípio democrático, pois a observância da regra também observa a vontade popular. Aplicar as regras do jogo é a melhor forma de se agir democraticamente, pois o Judiciário não estará impondo a sua exclusiva vontade, mas, apenas, a vontade popular consubstanciada pela norma jurídica devidamente criada pelo parlamento.
A vontade popular está nas normas que produz e nas normas que também ela modifica. Mudar a Constituição com base em um suposto sentimento social não legitima a decisão como um sentimento da maioria. Por isso, qualquer mutação deve ser vista com a mais absoluta reserva.
No entanto, quando for o caso, e o aplicador da Constituição se deparar com a possibilidade de reconhecer alguma mutação constitucional, diante da atual sistemática, a única forma de legitimar a decisão é mediante a aplicação da teoria discursiva, que insere à fundamentação racional todas as variantes possíveis, refutando aquilo que se revele contrário ao direito, e reconhecendo aquilo que, além de se mostrar jurídico, se revele como o único meio de chegar a um resultado racionalmente esperado.
Consagrando a aplicação do discurso na criação das decisões referentes à mutação constitucional, o Poder Judiciário estará inserindo todas as vertentes representativas possíveis, inclusive, podendo mostrar aos seus destinatários os motivos que afastam a adoção de uma opinião minoritária.
Com efeito, segundo Habermas, a linguagem é instrumental para obtenção de consenso entre os homens. E se não houvesse o sentimento de compreensão recíproca, o discurso perderia o seu próprio sentido. Trazido o conceito do discurso para o Direito, se vê que sua produção se dá mediante sua discussão, eis que a democracia proporciona o debate de ideias. Eis aí o motivo de haver o contrário. No entanto, diante da divergência, como regra para conclusão, se chega ao consenso da maioria.
Ainda que o mesmo esteja presente no processo judicial, quando a decisão afetar a um número indeterminado de pessoas, sua aplicação torna-se absolutamente necessária, pois do discurso se extrai a melhor decisão, e nela se encontra o melhor fundamento.
Não se pode deixar de observar que, mesmo com a aplicação do discurso dentro das decisões que atuem no sentido de encontrar a real mutação constitucional, a mesma não está imune de críticas ou falhas. No entanto, dirigir-se rumo ao discurso é o melhor meio de se evitar a criação de hipóteses descompassadas da realidade social que permeia a mutação.
Portanto, diante de todo o estudo monográfico, para que as decisões judiciais tenham legitimidade democrática, especialmente aquelas que encontram mutações constitucionais, devem consagrar a teoria do discurso, que, por sua vez, consagra a aplicação democrática do direito positivo.
Se tudo o que for contrário ao texto escrito da Constituição é inconstitucional, a teoria discursiva aplicada à produção das decisões judiciais é mais um meio de se evitar a criação de intepretações equivocadas, com o seu devido “recall”, seja pelo debate, seja pela lembrança dos sentidos equivocados (mas não pensados) que uma dada intepretação pode levar.
O discurso, ainda que indiretamente, possibilita a participação da opinião pública na tomada de decisões, o que, como demonstrado, deve ser ainda mais consagrado quando se trata de uma decisão que irá reconhecer espécie de mudança de costumes e valores, que modifiquem aquilo que a sociedade quer para si.
Desse modo, diante do atual panorama social, que exige modificações estruturais para a produção das coisas que lhe são úteis, ainda que se trate de bens abstratos, não pode o judiciário apenas se limitar em assegurar a participação dos atores processuais constitucionais, mas deve também possibilitar aos cidadãos a mínima participação para que possam escolher os rumos que desejam para si.
Logicamente, melhor seria que tais modificações de valores constitucionais pudessem ser, de fato, colhidas de forma mais direta do seio social. Mas, diante da vastidão de nosso território nacional, da diversidade de ideias, e do sistema jurídico positivo brasileiro, tal procedimento seria de todo muito difícil, eis que o processo de onde se retiram as mutações (contencioso e judicial) revela ser prudente não abrir de tudo o discurso, mas, apenas, possibilitar que tais reclames tenham perpassado pela mente do julgador, que vai, na sua satisfação social (publicidade), demonstrar os motivos que fizeram ser acolhido aquele posicionamento, e também os motivos que revelam não se prudente escolher outro determinado sentido.
O certo é demonstrar que o cidadão foi ouvido, e que o julgador está “antenado” com o pensamento das minorias.
Sustentar a teoria discursiva para o discurso contido nas decisões judiciais parece até mesmo óbvio, pois com a linguagem é que se detrai o sentido daquilo que se quer expressar.
Ocorre que o discurso aqui empregado não se restringe ao que consta expresso na decisão judicial, ou ao argumento que fora utilizado pelas partes, mas permitir o ingresso de teses possíveis e razoáveis dentro daqueles processos que tenham repercussão para os cidadãos.
Nesse sentido de participação social mediante ingresso de teses racionais variadas, adotar o discurso para extração das mutações é o mínimo que um Poder Judiciário preocupado pode fazer pela sociedade.
A sociedade não quer invenções. Não necessita de ilações nem criacionismos.
O corpo social exige respostas. Mas tais respostas devem ser democráticas, racionais e sempre consensuais.
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