Marbury vs madison:controle de constitucionalidade

07/11/2016 às 16:01
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O caso Marbury versus Madison introduziu o modelo de controle difuso de constitucionalidade de leis, o judicial review, no constitucionalismo moderno, assentando na Suprema Corte dos Estados Unidos o princípio da supremacia da Constituição.

O controle difuso de constitucionalidade, que nasceu de um leading case da Suprema Corte Americana em 1803, jungiu-se de uma importância sem precedentes ao conceder a qualquer juiz a capacidade de verificar a compatibilidade das normas infraconstitucionais com a Constituição Federal.

A feitura desse juízo de reprimenda, no bojo do judicial review americano, só era possível como incidente processual. Eis que não se analisava a lei em tese, mas apenas sob a influência de um caso concreto. Nessa expectativa, para que a questão jurídica fosse liquidada, era imprescindível que se encarasse, como preliminar de verificação, o embate constitucional que se colocava.

Portanto, pode-se dizer que o controle difuso de constitucionalidade foi desenhado nos Estados Unidos, desde o princípio, com contornos eminentemente particulares uma vez que a decisão prolatada no caso específico, irradiava, em princípio, apenas para os sujeitos daquela relação.

Apesar disso, esse aspecto tradicional subjetivo cedeu lugar a um perfil de índole mais objetiva em razão do surgimento de alguns fenômenos que se agregaram ao controle judicial de constitucionalidade. Dentre os tais, destacam-se, por exemplo, a força vinculante das decisões, implementada pelo stare decisis; a abertura processual advinda com o amicus curiae e o writ of certiorari, que eliminava o direito subjetivo da parte em levar a sua aflição constitucional ao tribunal, impondo um procedimento diferenciado para avaliar a gravidade da questão constitucional [1]. 

Nessa avaliação, o ponto nuclear do assunto, ora eleito, transcorre a análise desses fenômenos, que tiveram o objetivo de imprimir ao controle judicial de constitucionalidade um aspecto mais objetivo, em contraponto à feição subjetiva que lhe era característico.

 DO JUDICIAL REVIEW.

Como forma de romper com a tradição inglesa da soberania do Parlamento, a partir de 1803, no famoso caso Marbury v. Madison, passou-se a admitir, em solo estadunidense, o judicial review ou a jurisdição constitucional, que era, portanto, a intenção de o Poder Judiciário assumir o direito de controlar a constitucionalidade das leis.

judicial review  é um legado de concepção genuinamente jurisprudencial e teve como ponto de partida o julgamento do apontado caso, até porque, a Constituição americana não prevê a existência do controle de constitucionalidade em seu texto.

Como visto, essa quebra de paradigma, que resultou na adoção da jurisdição constitucional nos Estados Unidos, desenvolveu-se a partir da discussão que se engendrou em torno do Marbury v. Madison, julgado pelo Juiz John Marshall da Suprema Corte americana.

De tal modo, pode-se afirmar que a ciência e ideia de controle difuso de constitucionalidade, historicamente, deve-se ao famoso caso julgado pelo Juiz John Marshall da Suprema Corte norte-americana, que, apreciando o caso Marbury v. Madison, em 1803, decidiu que, havendo conflito entre a aplicação de uma lei em um caso concreto e a Constituição, deve prevalecer a Constituição, por ser hierarquicamente superior [2].

Para BARROSO, Marshall, ao expor suas razões, enunciou os três grandes fundamentos que justificam o controle judicial de constitucionalidade:

Em primeiro lugar, a supremacia da Constituição: “Todos aqueles que elaboraram constituições escritas encaram-na como a lei fundamental e suprema da nação”. Em segundo lugar, e como consequência natural da premissa estabelecida, afirmou a nulidade da lei que contrarie a Constituição: “Um ato do Poder Legislativo contrário à Constituição é nulo”. E, por fim, o ponto mais controvertido de sua decisão, ao afirmar que é o Poder Judiciário o intérprete final da Constituição: “É enfaticamente da competência do Poder Judiciário dizer o Direito, o sentido das leis. Se a lei estiver em oposição à constituição a corte terá de determinar qual dessas normas conflitantes regerá a hipótese. E se a constituição é superior a qualquer ato ordinário emanado do legislativo, a constituição, e não o ato ordinário, deve reger o caso ao qual ambos se aplicam”. [3]

Observe que, a jurisdição constitucional ou judicial review apareceu na conjuntura de um caso concreto. Ou seja, só era possível o enfrentamento da questão constitucional na presença de um caso específico reclamador desse juízo de reprimenda.

   Assinala-se, doutra baliza, que o controle de constitucionalidade americano pode aparecer sob o signo de controle difuso, concreto ou incidental.

Controle difuso porque qualquer juiz ou tribunal, competente para resolver a questão jurídica, também o é, para enfrentar a questão constitucional; controle concreto, pois a discussão sobre a constitucionalidade de uma norma só é apreciada no bojo de um caso concreto, e ainda, incidental, porque a discussão em torno da lei inconstitucional é apenas um incidente em relação à questão principal.

O controle difuso verifica-se em um caso concreto, e a declaração de inconstitucionalidade dá-se de forma incidental (incidenter tantum), prejudicialmente ao exame do mérito.

Pede-se algo ao juízo, fundamentando-se na inconstitucionalidade de uma lei ou ato normativo, ou seja, a alegação de inconstitucionalidade será a causa de pedir processual [4].

Conveniente atinar, como já aludido, que a verificação da constitucionalidade das leis, no direito americano, por estar largamente ligada a questões jurídicas pessoais, reveste-se de contornos altamente subjetivos, que pode se verificar por meio do caso concreto que se assenta.

Importante assinalar que Alexander Hamilton, no Federalista, já resguardava a ideia da consonância de leis frente à Ingente Carta, advertindo que nenhuma lei que afrontasse a constituição poderia progredir: “O próprio Alexander Hamilton, após a aprovação da carta americana de 1787, advertiu que nenhum ato legislativo que lhe fosse contrário poderia ser válido (O federalista, p.312)”. [5]

No Brasil, o critério de controle difuso foi introduzido pela primeira vez em um texto constitucional através da Constituição Republicana de 1891. A princípio, realizado unicamente através de recurso extraordinário, e a seguir, também por meio de mandado de segurança. [6]

Entretanto, como revés a esse modelo, ao modelo americano, aparece o modelo europeu, kelseniano ou concentrado.

No molde europeu, a atribuição para se verificar a constitucionalidade das leis é fiel a um órgão jurisdicional superior ou a uma Corte Constitucional.

Nesse caso, o juiz singular ao se defrontar com uma pretensão, cuja fundamentação seja uma lei supostamente inconstitucional, não julgará de pronto a lide, ele remeterá a questão à Corte Constitucional que, após solver a suspeita constitucional, devolverá o processo ao juiz que o remeteu para que se enfrente a questão jurídica. Percebe-se, então, que, ao contrário do controle americano, o juiz competente para resolver a pendência jurídica, não o é, para solucionar a controvérsia constitucional.

Relevante assinalar, que esses dois modelos, aparentemente excludentes, acabaram por promover o surgimento de sistemas mistos de controle, a propósito do que ocorre no Brasil.

O controle de constitucionalidade americano, logo, ao contrário do sistema europeu, ao proporcionar a qualquer juiz o status de garantidor do texto constitucional no âmbito de uma situação concreta, traz como corolário o seu perfil eminentemente subjetivo.

Dessa forma, ao se aferir o perfil tradicional do judicial review com a sua feição atual, percebe-se uma espécie de objetivação do controle de constitucionalidade, cujo eco se nota também no sistema jurídico brasileiro, através de uma espécie de mimetismo institucional [7], que se concretiza pela repetição dos institutos no âmbito de incidência do direito pátrio, como ocorre, por exemplo, com a repercussão geral [8] no Recurso Extraordinário, que, mutatis mutandis, traz certo grau de similitude com o certiorari americano, um dos fenômenos responsáveis pela objetivação do controle difuso, a ser estudado mais adiante.

CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE NO SISTEMA AMERICANO.

Por ser admirador da corrente do common law (direito inglês ou anglo-saxão), o direito americano tem em grande estima as jurisprudências dos tribunais, ao contrário do que ocorre no sistema brasileiro, que adotou o civil law (direito romano-germânico).

Eis que a linha delicada que raciona ambos os sistemas é, justamente, a fonte do direito. Enquanto no civil law a lei é a fonte principal, no common law, é a jurisprudência quem prevalece.

A adoção do common law e, por conseguinte, a supervalorização dos precedentes judiciais no direito americano, fez brotar a doutrina do stare decisis (doutrina do precedente), derivada do Direito inglês.

stare decisis, portanto, é o meio pelo qual os efeitos da decisão de inconstitucionalidade de uma lei ou ato normativo transbordam os interesses das partes envolvidas, vinculando e atingindo direitos de pessoas estranhas àquela relação processual. Ele é um dos acontecimentos que socorreu na objetivação do controle concreto, que, a rigor, possui nuance subjetiva.

No Brasil, a Súmula Vinculante e a fórmula do Senado [9] são institutos que demonstram esse gracejo.

Entenda-se que, embora a corrente adotada no direito pátrio seja a do sistema romano-germânico ou codificado-continental (civil law), a introdução da súmula vinculante indica a aproximação de aspectos oriundos do modelo do precedente judicial anglo-saxão (common law). É a famosa commonlawlização do direito brasileiro.

Mas, será que toda a decisão prolatada em sede de controle difuso possui esse efeito vinculante ou objetivo? Ou apenas parte dela?

Não é toda a decisão que possui esse caráter erga omnes, mas tão somente a ratio decidendi, parte da sentença em que o juiz explica as razões que o levaram a prolatar aquele julgado. Nessa medida, aquele fragmento que não guarda pertinência direta com a decisão engendrada, e que não foi essencial para a feitura da sentença, é chamada de obter dictum e, por conseguinte, não possui caráter vinculante.

Dessa feita, insta consignar que a presença do stare decisis, no direito americano, imprimiu, ao controle concreto de constitucionalidade, uma feição objetiva, vez que partes outras, que não aquelas envolvidas diretamente no imbróglio jurídico, podem ser afetadas pela decisão prolatada.

Esse envolvimento de terceiros, fez surgir outra figura, que também se insere no contexto da mitigação da subjetividade tradicional do controle concreto, qual seja o amicus curiae [10] 

Oportuno salientar que essa figura, cujo assento doutrinário se dá no magistério de Peter Haberle, precisamente no que atine à interpretação pluralista da Constituição, refere-se a uma abertura do controle de constitucionalidade difuso americano, onde terceiros interessados se habilitam no processo com o escopo de auxiliar na argumentação e debates, uma vez que, embora de caráter eminentemente pessoal, a decisão proferida no controle concreto pode lhe afetar.

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Sobre a utilização do amicus curiae pela Suprema Corte Americana, GILMAR MENDES, em passagem lapidar, afirma:

“a prática americana do amicus curiae brief permite à Corte Suprema converter o processo aparentemente subjetivo de controle de constitucionalidade em um processo verdadeiramente objetivo (no sentido de um processo que interessa a todos) -, no qual se assegura a participação das mais diversas pessoas e entidades” [11].

Assinala-se também que, o amicus curiae encontrou guarida na legislação brasileira com o advento da Lei nº 9.868, de 10 de novembro de 1999. Onde o relator, considerando a relevância da matéria e a representatividade dos postulantes, poderá admitir manifestação de outros órgãos. Tais órgãos ou entidades poderão juntar memoriais, participar de audiências públicas e, se for o caso, proceder sustentação oral perante o STF.

Outra forma engendrada pela Suprema Corte dos Estados Unidos que coloriu mais objetivamente as decisões proferidas em sede do controle incidental de constitucionalidade foi o writ of certiorari.

No vocabulário da Suprema Corte, o sentido originário do termo foi expandido. Certiorari refere-se, de forma genérica, ao processo de revisão discricionária pela Suprema Corte de uma decisão de corte inferior. Essa revisão é buscada por meio de uma petição que requer writ of certiorari [12]

Tal fenômeno americano é responsável por filtrar as ações endereçadas ao tribunal, avaliando, de forma discricionária e casuística, a relevância e seriedade das questões expostas.

Essa espécie de juízo de admissibilidade retira da parte o direito subjetivo de procurar a Corte Suprema levando consigo as suas angústias constitucionais.

Nessa perspectiva, quando o certiorari se aplica ao controle difuso de constitucionalidade, suaviza mais uma vez o caráter restrito e subjetivo que deveria imperar em torno do pleito levado ao tribunal, vez que exige a prova de relevância em relação a terceiros.

No caso do Brasil, a repercussão geral possui certa similitude com o instituto em comento, até porque, impõe também a demonstração de relevância política, econômica, social ou jurídica, como pressuposto de conhecimento do recurso extraordinário [13].

A disciplina normativa ocorreu com a promulgação da Lei nº 11.418/06, que dispõe que o STF só conhecerá o recurso extraordinário quando a questão constitucional oferecer repercussão geral, ou seja, quando discutir questões relevantes do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico, ultrapassando, assim, os interesses subjetivos da causa [14].

MEDINA exemplifica o que seria repercussão geral, sob o ponto de vista da relevância econômica, política, social ou jurídica [15]:

“A repercussão geral jurídica no sentido estrito existiria, por exemplo, quando estivesse em discussão o conceito ou a noção de um instituto básico de nosso direito, de molde a que aquela decisão, se subsistisse, pudesse significar perigoso e relevante precedente, como, por exemplo, o de direito adquirido. Relevância social haveria numa ação em que se discutissem problemas relativos à escola, à moradia ou mesmo à legitimidade do Ministério Público para a propositura de certas ações. Pensamos, aliás, que essa repercussão geral deverá ser pressuposta em um número considerável de ações coletivas, só pelo fato de serem coletivas. Repercussão econômica haveria em ações que discutissem, por exemplo, o sistema financeiro de habitação ou a privatização de serviços públicos essenciais, como a telefonia, o saneamento básico, a infra-estrutura etc. Repercussão política haveria quando, por exemplo, de uma causa pudesse emergir decisão capaz de influenciar relações com Estados estrangeiros ou organismos internacionais”[16].

Enfim, percebe-se com o exposto, que a objetivação do controle de constitucionalidade difuso americano restou fielmente demonstrada pelos institutos do stare decisisamicus curiae e writ of certiorari, cujo modelo pode-se notar, no direito brasileiro, por meio do cotejo de fenômenos como a fórmula do senado (art. 52, X, CF) e a repercussão geral.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A adoção da jurisdição constitucional, nos Estados Unidos, a partir de 1803, foi marcada pelos debates surgidos em torno do caso Marbury v. Madison.

A polêmica constitucional que se colocou, por ter sido empreendida no bojo desse caso concreto, acabou por desenhar contornos altamente subjetivos no controle difuso de constitucionalidade americano.

Ao proferir a sentença em Marbury versus Madison, Marshall interpretou e dilatou a Constituição americana, num legítimo exercício de construção constitucional (construction). [17]

O controle de constitucionalidade norte-americano transmitiu para o mundo a reverência à força da constituição e sua hegemonia frente aos atos do legislativo eivados de vício, segundo esse modelo, atos viciados, que não encontrem sua validez frente ao texto constitucional, são reputados nulos desde a sua origem. 

O modelo americano de controle de constitucionalidade assegurou a qualquer órgão judicial (forma difusa) incumbido de aplicar a lei a um caso concreto o poder-dever de afastar a sua aplicação caso tal normativo seja incompatível com a ordem constitucional. [18]

Entretanto, esse aspecto de índole subjetiva, como restou demonstrado, foi duramente vergastado pelo surgimento do stare decisis, do amicus curiae e do writ of certiorari.

Eis que tais fenômenos contribuíram para o alargamento dos efeitos das decisões prolatadas em âmbito restrito, atingindo assim, não apenas os sujeitos da relação processual, mas, também, indivíduos outros, cujas lides guardavam semelhança com o caso em questão. 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 8.

BUENO, Cássio Scarpinella. Amicus curiae no processo civil brasileiro: um terceiro enigmático. São Paulo: Saraiva, 2008;  

BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de direito constitucional. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 189. 

DE LIMA, Francisco Meton Marques. Reforma do Poder Judiciário. São Paulo: Malheiros, 2005;

LEAL, Saul Tourinho. Controle de constitucionalidade moderno. Niterói: Impetus, 2010;

LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 2011;

MEDINA, José Miguel Garcia. Prequestionamento e repercussão geral: e outras questões relativas aos recursos especial e extraordinário, 5 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009.

MEDINA, Damaris. Amigo da Corte ou da Parte? Amicus curiae no Supremo Tribunal Federal. São Paulo: Saraiva, 2010;

MELLO, Vitor Tadeu Carramão. A repercussão geral e o writ of certiorari: breve diferenciação. Revista da SJRJ, Rio de Janeiro, nº 26, p. 139-146, 2009;

MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2011.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 34. ed. São Paulo: Malheiro Editores, 2011. p. 50-51.

           

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Sobre o autor
Gilliard Mariano Horongozo

Graduado em Direito pela Universidade do Vale do Itajaí (SC). Especialista em Direito Processual Civil pela Universidade Uniderp/Anhanguera (MT). Mestre em Direito Processual Constitucional pela Universidad Nacional Lomas de Zamora (ARG.)

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