A Política e o Direito

08/11/2016 às 00:48
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O artigo busca analisar a censurável, porém necessária, relação entre a política e o direito, explorando o modo como o fenômeno jurídico extrai eficácia do poder político, que, por sua vez, obtém validade dessa relação.

O direito e a política são duas áreas intimamente ligadas. Tão ligadas que, para Norbert Bobbio, enquanto a ação política se exerce por meio do direito, este a delimita e disciplina. Ainda segundo Bobbio esse mutualismo é tão intenso que “Onde não há poder capaz de fazer valer as normas por ele (o ordenamento jurídico) estabelecidas recorrendo também em última instância à força, não há direito” (BOBBIO, 2000, p.232)

Essa ligação pode ser vista com enorme clareza na constituição que para Gilberto Bercocivi e Dalmo Dallari se trata de uma “(...) declaração da vontade política de um povo, é um ato de soberania, um ato constituinte” (DALLARI apud BERCOVICI, 2008, p.14) e que “(...) pressupõe a unidade política do povo, que a gera pelo poder constituinte” (BERCOVICI, 2008, p. 14).

Segundo Raymundo Faoro, em consonância com o entendimento de Bobbio de direito como delimitador da ação política:

Depreende-se do movimento histórico que deu lugar ao constitucionalismo e do papel que as constituições desempenharam na sociedade moderna que o controle do poder – o banimento do arbítrio - é a pedra angular de todo o processo. Sem a existência de freios reais não se pode falar de governo constitucional, freios que, para que controlem o poder, se articulam a partir do consentimento e das decisões dos destinatários do poder. (FAORO, 1985, p.15)

Contudo, apesar dessas evidências claras de correlação entre constituição e política, há “(...) hostilidade da teoria da constituição em relação à política e ao Estado (...)” (BERCOVICI, 2008, p. 18).

Essa hostilidade pode ser observada no fato de que:

 Ao proclamarem a soberania popular, as constituições tentam dar um caráter jurídico a soberania, no sentido de que a soberania deve ser exercida constitucionalmente. No entanto, como destaca Aragon Reyes, isto não significa que a constituição seja a fonte da soberania. Afirmar a soberania da constituição é falsear a titularidade democrática da soberania, substituindo a soberania do povo pela soberania do direito. O princípio da soberania popular significa que a constituição é fruto da soberania popular, e não o contrário. Negar a soberania popular é separar constituição da soberania, pretendendo um sistema jurídico auto-regulado e partindo da visão do direito limitado a mero exercício interpretativo (REYES apud BERCOVICI, 2008, p. 20).

Tal como vimos anteriormente, onde não haja poder que assegure o cumprimento das normas, não há direito, ou seja, ao se tentar conter a soberania a um nível formal, ainda que constitucional, trocando a soberania popular, real, por uma soberania da constituição, artificial, estar-se-ia retirando a fonte do poder, a eficiência, a própria legitimidade da constituição.

O soberano é o verdadeiro detentor do poder político e não a constituição. Ele pode fazer e desfazer a constituição, ou seja, ele é titular do poder constituinte, portanto não pode ser um poder constituído. É dele que sai a legitimidade da constituição, sem ele a constituição se transforma em “letra morta”.

A existência do soberano como instância concreta é indissociável do Estado que o mantém e é beneficiário de sua ação. O Estado é o locus da ação, a instância de realização do poder, mas não o seu gerador, assim como o direito é o condutor que transforma a vontade do soberano em determinação do Estado. (BERCOVICI, 2008, p. 24)

Em conformidade com a concepção aqui defendida, Carl Schmitt, então:

(...) percebeu que no estado constitucional, ao contrário do que afirmam Kelsen e Kriele, há soberano. E este soberano se manifesta nas duas situações limites do estado constitucional, daí a dificuldade da doutrina constitucional lidar, a partir dos métodos exclusivamente jurídicos, com a questão da soberania na constituição. Como destacou Olivier Beaud, o soberano no estado constitucional surge no momento da fundação e no momento da crise. O poder constituinte e o estado de exceção (...) são as duas grandes manifestações da soberania no estado constitucional. (BERCOVICI, 2008, p. 29)

O poder constituinte, para Luís Roberto Barroso, consiste no “(...) poder de elaborar e impor a vigência de uma Constituição. Situa-se ele na confluência de direito e política, e sua legitimidade repousa na soberania popular” (BARROSO, 2010, p.98). Os cenários políticos em que mais comumente ocorre a manifestação do poder constituinte são: “(...) a) uma revolução; b) a criação de um novo Estado (...); c) a derrota na guerra; d) uma transição política pacífica” (BARROSO, 2010, p.99).

Gilbert Bercovici, por sua vez, defende que “O poder constituinte é a manifestação da soberania. É um poder histórico, de fato, não limitado pelo direito. Como tem caráter originário e imediato, o poder constituinte não pode ser reduzido juridicamente” (BERCOVICI, 2008, p. 30).

Interessantemente, apesar desse poder ser constituinte, ou seja, se tratar de um poder cuja finalidade é a de fundar uma nova ordem político-jurídica, ele não se esgota no momento da criação de uma constituição, permanecendo de forma latente mesmo sob a vigência de uma ordem constituída, esperando o momento que mais uma vez irá ser chamado.

Porém, em que circunstâncias esse poder constituinte “dormente” é despertado?

O poder constituinte fundador de uma nova ordem se faz presente quando a ordem anterior já não é mais respeitada, ou seja, “O poder só se mantém pela força e dura enquanto se mostra eficiente em se fazer obedecido” (FAORO, 1985, p.43).

Essa perda de obediência da ordem ocorre porque já não mais possui legitimidade. Para Raymundo Faoro:

   A legitimidade (...) supõe que, por meio dela, atue a comunidade social, dotada de autoridades, que atuam com o apoio dos governados, decisivo para a continuidade política nas horas de crise. É a legitimidade e não a justificação do poder que resiste, renovando-se no retorno à consulta popular, na longa permanência dos estatutos políticos, que se sustentam ainda nos colapsos de eficiência, nos inevitáveis colapsos de todos os tempos. (FAORO, 1985, p. 44)

Portanto, em momentos de crise institucional, situações inevitáveis, regimes que não possuem legitimidade, ou seja, regimes que não contam com o apoio dos governados, os verdadeiros detentores da soberania, acabam abrindo espaço para a atuação do poder constituinte. Mesmo que um regime ilegítimo seja eficiente, sua duração será inevitavelmente limitada.

Quando um governo é legítimo, ele, então, se traduz em uma autoridade, que, segundo Faoro, “existe não porque emita ordens peremptórias, mas porque é aceita. As decisões dos dirigentes são validadas e eficazes pelo fato de que os destinatários as aceitarem” (FAORO, 1985, p. 52).

A legitimidade, segundo Faoro, “(...) se funda em valores, historicamente realizáveis e socialmente atuantes” (FAORO, 1985, p.53). E em razão de a legitimidade ser histórica e socialmente construída, é possível falar em diferentes tipos de governos legítimos na história humana.

No início da humanidade, “(...) o poder se legitimava na força bruta (...)” (BARROSO, 2010, p. 105). “O caráter divino do poder foi outro fundamento histórico de sua justificativa” (BARROSO, 2010, p. 106). Já no final da idade média, passou a haver a “(...) afirmação da soberania do monarca (...)” (BARROSO, 2010, p.106). Sieyés, então, formulou a “(...) ideia de soberania nacional (...)” (BARROSO, 2010, p.108). Por fim, na sociedade contemporânea, “(...) não há outra legitimidade possível e universalmente consagrada senão a legitimidade democrática, que, embora suponha o consentimento dos cidadãos, não se esgota em tal apoio” (FAORO, 1985, p. 53)

Governos autocráticos, como os regimes militares, por sua vez, tentam se manter por meio de seu aparelhamento coercitivo. Para Raymundo Faoro

A relação entre poder e legitimidade demarcará as fronteiras da coerção, que, usada em alta dose, destrói não só a legitimidade mas o próprio poder. O poder repousa menos na força do que na legitimidade e a legitimidade se mede pelo grau de consentimento e aceitação. (FAORO, 1985, p. 53)

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Portanto, “Governo forte não é o governo poderosamente armado com um eficiente aparelhamento coercitivo, mas governo incontestável na sua legitimidade” (FAORO, 1985, p. 53).

Na história brasileira, é possível detectar um governo que tentara se manter por meio do aparelhamento coercitivo, da proibição da resistência individual e coletiva e da perseguição e censura de seus governados, o regime militar. Contudo, tal como repetimos várias vezes ao longo do texto, um governo que não possui legitimidade, consentimento dos governados, não é capaz de se sustentar por muito tempo, logo, o regime militar acabou se enfraquecendo de tal maneira que abriu espaço para a atuação do poder constituinte.

Paulo Bonavides compreende, porém, que o poder constituinte do povo brasileiro é meramente formal, sendo controlado pelas elites. Nas palavras dele:

(...) a constante contestação da legitimidade do poder e da ordem social no Brasil é reflexo não da crise de constituição, mas da “crise constituinte”, que diz respeito à inadequação do sistema político e da ordem jurídica ao atendimento das necessidades básicas da ordem social. O poder constituinte do povo, na crise constituinte, é condenado a tornar-se um mero símbolo formal, referendando, segundo Bonavides, os conteúdos constitucionais de um outro poder constituinte, o das forças reais de poder. Esta crise não se exaure com adoção de uma nova constituição, pois diz respeito ao próprio estado e à sociedade, manifestando-se com a contraposição entre a constituição e a realidade social. (BERCOVICI, 2008, p. 35)

A concepção de Bonavides pode ter sido verdade até certo ponto da história brasileira, contudo, com a constituinte de 1987-1988, inaugura-se no Brasil uma nova forma de fazer constituição, marcada pela profunda participação popular. Segundo Leonardo Augusto Andrade Barbosa, esse novo modelo de feitura de constituição:

  (...) materializou uma recusa à Constituição de “notáveis”, à ideia de um texto “técnico”, a serviço de um programa já definido, portador de um saber confiável sobre o que é “bom para nós”. Esse saber deveria, agora, ser construído e, para isso, constituir as próprias condições de sua constituição. O pronunciamento do povo soberano não seria encarnado pelo uníssono da voz autoritária, chancelada pelo verniz bacharelesco, mas por uma autêntica polifonia, cujo sentido somente pode ser apreendido em movimento, em seu próprio fazer-se. (BARBOSA, 2012, p. 147)

Apesar do revés de não se ter estabelecido uma constituinte exclusiva, que consistia na convocação de um órgão formal e materialmente distinto do congresso, a vocação democrática da assembléia constituinte de 1987-1988 pode ser percebida em vários momentos. Seja em sua gestação, que mobilizou vários movimento sociais, entre eles a Ordem dos Advogados do Brasil, os sindicatos, a igreja, o empresariado brasileiro, a luta pela anistia e as manifestações populares pelas eleições diretas; seja em sua própria estruturação que teve uma:

(...) abertura à participação da sociedade civil e dos cidadãos em geral, (...) A abertura da Constituinte não foi um acaso nem um arroubo de “generosidade” de representantes bem-intencionados. Ela foi conquistada após a aplicação de intensa pressão popular sobre o Congresso, cujo ápice se deu entre 1984 e 1985, com a votação da Emenda Dante de Oliveira e da Emenda Constitucional nº 26, que convocava a Assembleia Nacional Constituinte. Em 1987, a mobilização popular para exercer influência sobre os parlamentares era uma prática que havia adquirido certo grau de maturidade e articulação nos movimentos organizados. Dessa forma, além da pressão exercida pelos lobbies populares, em especial por meio das caravanas a Brasília, formas institucionais de participação foram asseguradas no curso da elaboração do regimento interno: a possibilidade de apresentação de sugestões oriundas de entidades representativas de segmentos da sociedade, de audiências públicas perante as comissões e subcomissões e, principalmente, de oferecimento de emendas populares (BARBOSA, 2012, p. 230) 

         

 A constituinte representou, então, um importante processo de autorreflexão da sociedade realizado não apenas pelos constituintes, mas também pela sociedade brasileira graças à abertura popular que caracterizou a assembléia constituinte.

Referências Bibliográficas

BERCOVICI, Gilberto. No Estado Constitucional Há Soberano? In:_____. Soberania e Constituição: para uma crítica do constitucionalismo. São Paulo: Quartier Latin, 2008, p. 13-46.

BARBOSA, Leonardo Augusto Andrade. A emergência do processo constitucional democrático: convocação, processo e significado da Constituinte de 1987-1988. In:_____. História constitucional brasileira: mudança constitucional, autoritarismo e democracia no Brasil pós-1964. Brasília: Câmara dos Deputados, 2012, p. 145-247.

FAORO, Raymundo. Assembléia Constituinte: a legitimidade recuperada, 3ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1985.

BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção de um novo modelo. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010.

BOBBIO, Norberto. Teoria Geral da Política: a filosofia política e as lições dos clássicos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2000.

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