Um dos temas que mais atormentam o estudioso do Direito Civil no novo milênio, em decorrência da entrada em vigor da Lei n. 10.406/2002 (novo Código Civil brasileiro), sem sombra de dúvida, é a aplicação do novo ordenamento em conjunto com as várias leis especiais e extravagantes até então em vigor, por meio do fenômeno chamado: antinomia.
A doutrina conceitua a antinomia jurídica como sendo a oposição que ocorre entre duas ou mais normas (total ou parcialmente contraditórias), emanadas de autoridades competentes num mesmo âmbito normativo, as quais colocam o destinatário numa posição insustentável devido à ausência ou inconsistência de critérios aptos a permitir-lhe uma saída nos quadros de um ordenamento dado [1]. Entre as várias classificações das antinomias, podemos destacar a existência de antinomias reais, isto é, antinomias insolúveis, para as quais não há, no ordenamento, qualquer regra pronta para a solução do caso concreto. Isso não significa que incide o non liquet para a hipótese, apenas que cada caso precisa ser decidido de forma particular. As antinomias aparentes, por sua vez, são aquelas para as quais o ordenamento encontra forma sistêmica de solução [2].
Entre os critérios de solução das antinomias, temos:
-O critério hierárquico, por meio do brocardo lex superior derogat legi inferiori (norma superior revoga inferior), de forma a sempre prevalecer a lei superior no conflito.
-O critério cronológico, por intermédio do brocardo lex posterior derogat legi priori (norma posterior revoga anterior), conforme expressamente prevê o art. 2.º da Lei de Introdução ao Código Civil.
-O critério da especialidade, por meio do postulado lex specialis derogat legi generali (norma especial revoga a geral), visto que o legislador, ao tratar de maneira específica de um determinado tema faz isso, presumidamente, com maior precisão.
As antinomias aparentes são facilmente solúveis por intermédio dos critérios já enunciados [3], porém a grande dificuldade está na solução das antinomias reais, entre as quais estão as de segundo grau. Podemos conceituar a antinomia de segundo grau como aquela cujos critérios de solução abaixo enumerados são insuficientes para a solução do conflito, tendo em vista o fato de ele envolver dois critérios simultâneos de solução, como no caso de uma norma superior anterior conflitar com uma norma inferior posterior. O sistema está aparelhado a solucionar prontamente apenas a antinomia simples ou antinomia de primeiro grau, que é aquela cujos critérios são suficientes para a solução do caso concreto. As antinomias de segundo grau, portanto, implicam no conflito entre os três critérios de solução, cabendo desde já afirmarmos que o critério hierárquico é soberano no conflito com os demais [4]. Isso significa que a norma superior prevalece sempre. O grande dilema está no caso de uma norma geral posterior conflitando com a norma especial anterior, exatamente o caso do novo Código Civil, o qual, no conflito com as leis especiais, prevalece no critério cronológico, mas não no critério da especialidade.
O problema é tão árido que os estudiosos, normalmente, esquivam-se dele ou procuram ignorar a dúvida. maria helena diniz nos ensina: "Não há uma regra definida, pois, conforme o caso, haverá supremacia ora de um, ora de outro critério" [5].
Da nossa parte, cremos que o critério cronológico prevalece sobre o critério da especialidade por várias razões.
Em primeiro lugar, porque a Lei de Introdução ao Código Civil só previu o critério cronológico. Para essa aferição, basta a simples leitura do art. 2.º o qual apresenta a revogação expressa e tácita no caput e no § 1.º, estabelecendo, no § 2.º, que, com a ausência de incompatibilidade, a lei nova (qualquer que seja a sua natureza) se harmoniza e não revoga a anterior, passando ambas a incidir no sistema jurídico.
Em segundo lugar, porque as normas gerais, os Códigos, tais como o Civil, o Penal, o Processual, por tratarem de ramos do ordenamento, ao entrarem em vigor, não podem nascer esfacelados ante a impossibilidade de revogação de normas especiais já existentes e que petrificariam o sistema. Podemos citar como exemplo um novo Código Penal o qual não pudesse, a não ser de forma expressa, revogar crimes previstos no Código de Trânsito.
Em terceiro lugar, porque, caso houvesse a prevalência da lei especial anterior sobre a geral posterior, obrigaria o legislador a conhecer todas as leis especiais anteriores, para revogá-las expressamente, sob pena de criar letra natimorta de lei.
Em quarto lugar, a presunção segundo a qual o legislador, ao tratar das leis especiais, faz isso com maior acuidade é acadêmica, sem qualquer previsão sistêmica.
Por fim, aplica-se sempre a fórmula "revogam-se as disposições em contrário". No escólio de vicente ráo aprendemos: "Que é que significa revogar disposições em contrário, senão revogar as disposições das leis anteriores, inconciliáveis com a lei posterior? Ora, a revogação tácita não é outra coisa; resulta da incompatibilidade entre a lei antiga e a lei nova. Aquilo que a fórmula diz é, efetivamente, isso e nada mais. Se o não dissesse, o efeito seria idêntico; porque, ainda assim, estariam, na verdade, revogadas todas as disposições em contrário. Em suma, há uma revogação, mas é preciso ir procurar, segundo o critério da incompatibilidade, as disposições revogadas. Por isso, Planiol reputa inteiramente inútil a precaução usual de declarar revogadas as disposições em contrário: ‘c’est parler pour rien dire’" [6].
Solucionando as antinomias de segundo grau do novo Código Civil, podemos concluir:
1.º) Prevalecem sempre as regras do novo Código Civil, por ser lei posterior, a não ser que fira alguma norma hierarquicamente superior. Com essa primeira conclusão, por exemplo, não podem casar-se os colaterais em terceiro grau (tio – sobrinha), por força do art. 1.521, IV, do Código, por ter revogado os arts. 1.º e 2.º do Dec.-lei n. 3.200/41, que autorizava tal ação mediante laudo médico, contrariando alguns doutrinadores [7].
2.º) O Código Civil não revoga leis especiais compatíveis, por força do art. 2.º da Lei de Introdução ao Código Civil em seus parágrafos. Podemos citar como exemplo o próprio Dec. n. 3.200/41 (Lei de Proteção da Família) quando trata de abonos familiares (art. 28), não há revogação por não haver incompatibilidade com o Código.
3.º) O Código Civil pode expressamente determinar a prevalência de lei especial. Podemos citar como exemplo o art. 1.377, que mantém vigente o direito de superfície, quando constituído por pessoa jurídica de Direito Público, aplicando não o Código, e sim a Lei n. 10.257/2001, para essa hipótese específica. Caso não houvesse a ressalva, estaria revogado o Estatuto da Cidade nessa matéria.
4.º) O Código Civil incorporou os institutos civis de leis especiais mistas, por força do seu art. 2.043, como em matéria de adoção, até então regulada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente.
5.º) As omissões do Código em relação ao anterior, por expressa revogação (art. 2.045), implicam em não-recepção. Podemos exemplificar ao citar que a omissão do art. 1.º do Código anterior implica em que as normas de Direito Civil não estão mais limitadas quanto ao seu alcance, como ocorria no sistema anterior.
Esperamos ter contribuído, com essas breves considerações, nas diversas discussões sobre a incidência das normas do novo Código Civil no ordenamento jurídico, a fim de gerar a tão almejada pacificação social.
Notas
1 ANTINOMIA. In: Enciclopédia Saraiva do Direito. Coord. Rubens Limongi França. São Paulo: Saraiva, 1977. vol. 7, p. 14.
2 FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do Direito. 2.ª ed. São Paulo: Atlas, 1994. p. 212.
3 DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do Direito. 13.ª ed. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 472.
4 BOBBIO, Norberto. Des critères pour résoudre les antinomies. In: PERELMAN, C. Les antinomies du Droit. Bruxelles: Editions Bruylant, 1965. p. 250.
5Op. cit. p. 475.
6O Direito e a vida dos Direitos. 5.ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. p. 340-341.
7 Vide Maria Helena Diniz: "(...) e, por isso, recepcionada pelo novo Código Civil, apesar de anterior a ele" (Curso de Direito Civil brasileiro. 17.ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 72).